Fabrício Motta
Na semana passada o Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) divulgaram os resultados do Censo Escolar 2023. O Censo Escolar é descrito, na apresentação do INEP, como “o principal instrumento de coleta de informações da educação básica e a mais importante pesquisa estatística educacional brasileira”[1]. Trata-se de uma grande pesquisa feita por meio de dados declaratórios que abrangem todas as escolas públicas e privadas do país. Podemos enxergar o censo como um retrato do estado da educação básica e profissional do país – esse retrato é composto sobretudo por indicadores que permitem acompanhar o cumprimento dos muitos deveres estatais para com a educação. Com relação a esses deveres estatais, não é demais relembrar que nossa Constituição caracteriza a educação como direito de todos e dever do Estado e da família (art.205), e que os diversos deveres do Estado são previstos expressamente (art.208), assim como os recursos vinculados para seu custeio.
O Censo Escolar é essencial para o acompanhamento das metas do Plano Nacional de Educação – PNE[2]. O PNE é o principal instrumento de planejamento das políticas públicas nacionais, com vigência decenal, lhe cabendo definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para atingir os seguintes objetivos principais: erradicação do analfabetismo; universalização do atendimento escolar; melhoria da qualidade do ensino; formação para o trabalho; promoção humanística, científica e tecnológica do País, e estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto (art.214 CF).
Passo a comentar duas questões importantes a partir da análise de dados do censo escolar referentes à gestão de pessoal da educação pública, ambas destacadas na apresentação coletiva do MEC e INEP e também pela imprensa[3].
A primeira questão é o grande número de docentes das redes estadual e municipal com vínculos precários – contratados temporariamente. Nas redes estaduais, na maioria dos Estados brasileiros o número de professores vinculados por contratos temporários é maior do que o de professores ocupantes de cargo efetivo (como tal, provido por concurso público). Há casos gritantes como o de Minas Gerais (80,8% de temporários) e o do Tocantins (79,9% de contratados temporários), ao passo em que no Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte, por exemplo, predominam efetivos (95,6% e 93,7%, respectivamente)[4].
Há um problema grave de desobediência ao regime determinado pela Constituição. Com efeito, um dos princípios que orienta a oferta do ensino é a “valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas” (art.206, V).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96), no mesmo sentido, estatui:
“Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:
I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;
II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim;
III – piso salarial profissional;
IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho;
V – período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho;
VI – condições adequadas de trabalho”.
A contratação por prazo determinado existe somente para o atendimento de necessidade temporária causada por excepcional interesse público (art.37, IX da CF). Trata-se de excepcionalidade, como qualificado pela Constituição, carecendo de fundamento jurídico a perpetuação de contrato sem excesso em detrimento da valorização da carreira e provimento por concurso. A predominância dos vínculos precários pode até atender o interesse fiscal de determinados Estados (despender menos recursos, não comprometer o limite de despesas com pessoal, por exemplo), mas jamais atenderá ao interesse público – por isso, deve ser objeto de atenção por parte das instituições de controle e da sociedade.
A segunda questão observada se refere à forma de escolha dos diretores e diretoras das escolas públicas. Primeiramente, as boas notícias: nas redes estaduais, 23% dos diretores são selecionados por meio de processo seletivo qualificado e eleição com participação da comunidade escolar (um crescimento de 5,7% com relação ao ano de 2022) e 13,7% são selecionados por meio de processo seletivo qualificado de escolha (crescimento de 6,3% com relação ao ano anterior). Agora, o dado mais preocupante nesse quesito: nas redes municipais, 45,8% dos diretores e diretoras são escolhidos exclusivamente por indicação/escolha da administração (tendo sido constatado, é verdade, diminuição nesse percentual).
Há farta literatura demonstrando a importância dos diretores escolares para a qualidade da educação, incluindo a materialização da gestão democrática[5].
As boas notícias sacadas dos dados relativos à escolha de Diretores certamente devem ser creditadas à criação de uma complementação financeira da União para as redes públicas que cumpram determinadas condicionalidades. Trata-se da complementação VAAR (Valor aluno ano resultado), criado pela Lei do novo Fundeb (Lei nº 14.113/2020). De acordo com a referida Lei, uma das condicionalidades para o recebimento da complementação por Estados e Municípios é o “provimento do cargo ou função de gestor escolar de acordo com critérios técnicos de mérito e desempenho ou a partir de escolha realizada com a participação da comunidade escolar dentre candidatos aprovados previamente em avaliação de mérito e desempenho” (art.14, §1º, inciso I)[6].
Em ampla pesquisa intitulada “Seleção e formação de diretores – mapeamento de práticas em estados e capitais brasileiras”[7], realizada pela D3E, Atricon e Todos pela Educação, foram feitas recomendações importantes relativas à seleção e ao acesso à gestão escolar: adotar critérios técnicos combinados a processos democráticos, conforme previsto no Plano Nacional de Educação (PNE) e na nova lei do Fundeb, e realizar processos seletivos mistos que combinem mais de uma etapa de seleção. No tocante à formação dos diretores – outra questão que merece análise à luz dos dados do censo – as recomendações foram: garantir oportunidades de formação e desenvolvimento aos professores que desejam se tornar diretores ou àqueles que já estão atuando na gestão; debater as questões relativas ao tempo de duração do mandato, que impactam diretamente o desenho dos tipos de formação a serem oferecidos e seu tempo de duração; avaliar os cursos de formação, e promover cursos de formação com maior conexão entre teoria e prática.
A realização de pesquisas e a análise de resultados é essencial para o planejamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas. Na educação pública, a afirmativa ganha mais relevância quando se constata que há todo um projeto constitucional construído com o fim de garantir educação pública de qualidade e alcançar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho. Reconhecer a cogência desse projeto e a juridicidade dos instrumentos que o delineiam (como o Plano Nacional de Educação) é essencial para avançarmos na construção de um país que possa realmente buscar o bem de todos.
https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2023/apresentacao_coletiva.pdf
https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar
https://www.estadao.com.br/educacao/tres-noticias-boas-e-dois-problemas-sobre-a-educacao-basica-revelados-pelos-dados-do-mec/
A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas
O Censo Escolar é o principal instrumento de coleta de informações da educação básica e a mais importante pesquisa estatística educacional brasileira. É coordenado pelo Inep e realizado em regime de colaboração entre as secretarias estaduais e municipais de educação e com a participação de todas as escolas públicas e privadas do país. A pesquisa estatística abrange as diferentes etapas e modalidades da educação básica e profissional:
- Ensino regular (educação infantil, ensino fundamental e médio);
- Educação especial – escolas e classes especiais;
- Educação de Jovens e Adultos (EJA);
- Educação profissional e tecnológica (cursos técnicos e cursos de formação inicial continuada ou qualificação profissional).
A pesquisa estatística tem caráter declaratório e é dividida em duas etapas. A primeira etapa do Censo Escolar coleta informações sobre os estabelecimentos de ensino, gestores, turmas, alunos e profissionais escolares em sala de aula. A segunda etapa coleta informações sobre o movimento e o rendimento escolar dos alunos, ao final do ano letivo.
O Censo Escolar é realizado anualmente e a declaração é obrigatória para todas as escolas públicas e privadas do país. Além disso, é regulamentado por instrumentos normativos que instituem a obrigatoriedade, os prazos, os responsáveis e suas responsabilidades, bem como os procedimentos para realização de todo o processo de coleta de dados.
[1] https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar
[2] Sobre o PNE já escrevemos neste mesmo espaço: https://www.conjur.com.br/2023-jun-29/interesse-publico-plano-nacional-educacao-ppa-proximidade-necessaria/
[3] https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/02/23/censo-escolar-2023-tres-estados-ainda-somam-mais-de-85percent-dos-diretores-nomeados-por-indicacao-politica-veja-a-lista.ghtml
https://www.estadao.com.br/educacao/tres-noticias-boas-e-dois-problemas-sobre-a-educacao-basica-revelados-pelos-dados-do-mec/
[4] Os dados constam do gráfico 68 disponibilizado na apresentação coletiva. O gráfico 69 trata das redes municipais, por Estado da federação. Disponível em: https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2023/apresentacao_coletiva.pdf
[5] Remetemos o leitor e a leitora à bibliografia específica utilizada para elaboração do relatório da pesquisa “Seleção e formação de diretores – mapeamento de práticas em estados e capitais brasileiras”, realizada pela D3E, Atricon e Todos pela Educação. Relatório disponível em: https://d3e.com.br/wp-content/uploads/relatorio_2305_selecao-formacao-diretores.pdf Acesso em 26 de fevereiro de 2024.
[6] O FNDE divulgou a relação de Municípios inabilitados ao recebimento dos recursos da Complementação Valor Anual Aluno Resultado(VAAR), previstos para o exercício de 2024, em função do não cumprimento das condicionalidades contidas no artigo 14 da Lei Federal nº 14.113/2020 (Lei do FUNDEB): Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-programas/financiamento/fundeb/2024/Redesinabilitadaspormotivo.pdf. Acesso em: 15 fev. 2024.
[7] Relatório disponível em: https://d3e.com.br/wp-content/uploads/relatorio_2305_selecao-formacao-diretores.pdf Acesso em 26 de fevereiro de 2024.