Concorrência e Pregão da Lei nº 14.133/2021: uma questão de homonímia

3 de dezembro de 2021

Hamilton Bonatto*
Ronny Charles *

Haja hoje para tanto ontem.
E amanhã para tanto hoje
Sobretudo isso.
Paulo Leminski. Santo Remédio

A Lei nº 14.133/2021, a novel Lei de Licitações e Contratos Administrativos, elencou 5 (cinco) modalidades de licitação: pregão, concorrência, concurso, leilão e diálogo competitivo.

Em princípio, poderia dizer-se que a novidade está unicamente no diálogo competitivo, modalidade que não havia no ordenamento jurídico pátrio até a publicação da nova Lei. É cediço que a herdamos, fundamentalmente, do Direito Europeu, da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004. Atualmente, em âmbito europeu, sua previsão tem base na Diretiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014[1].

Porém, não foi esta a única novidade em relação às modalidades licitatórias encontradas, ao compararmos a nova Lei com aquelas cujas revogações têm data marcada para 1º de abril de 2023: Lei nº 8.666/1993; Lei nº 10.520/2002; e Lei nº 12.462/2011.

As modalidades concorrência e pregão, na Lei nº 14.133/2021, também já não são as mesmas do passado, ainda que o legislador as tenha tornado homônimas às modalidades existentes na Lei nº 8.666/1993 e na Lei nº 10.520/2002.

Sob a égide da Lei n. 8.666/93 e da Lei n. 10.520/2002, as modalidades licitatórias se diferenciavam entre si pelo rito que seguiam. Noutro prisma, quando observado o art. 29 da Lei nº 14.133/2021, verifica-se que neste novo Estatuto a concorrência e o pregão estão previstas para seguirem o mesmo rito procedimental.

A Lei nº 14.133/2021 estabelece que o pregão deve ser adotado quando o objeto possuir padrões de desempenho e qualidade, que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado, e cujo critério de julgamento poderá ser o de menor preço ou o de maior desconto.

Noutro lado, a concorrência, trazida por esse novo diploma legal, deve ser utilizada para a contratação de bens e serviços especiais e de obras e serviços comuns e especiais de engenharia, cujos critérios de julgamento poderão ser: menor preço, melhor técnica ou conteúdo artístico, técnica e preço, maior retorno econômico e maior desconto.

Portanto, quando adotado o critério de julgamento pelo menor preço ou maior desconto, haverá duas opções de modalidades: o pregão ou a concorrência, cuja escolha depende, essencialmente, das características do objeto a ser contratado. Já quando forem adotados os demais critérios de julgamento, o pregão não poderá ser utilizado, mas a concorrência sim, quando as pretensões contratuais não forem mais compatíveis com as modalidades diálogo competitivo, concurso e leilão.

Mas, atendo-nos às modalidades pregão e concorrência, nada obstante compartilharem elas, a priori, do mesmo rito procedimental, o debate sobre a escolha entre essas modalidades ainda possui relativa importância.

Bem verdade que o legislador sequer necessitaria eleger as duas modalidades com o mesmo rito; poderia ter previsto uma delas apenas (ou o pregão ou a concorrência), já que o rito que as diferenciava no passado, hoje é o mesmo.

Muito provavelmente, a persistências das duas modalidades está relacionada à incapacidade do legislador de compreender que o formato de modalidade flexível tornava desnecessária essa coexistência. Na prática, as diferenças procedimentais entre a concorrência e o pregão serão resultantes da parcial restrição à flexibilidade definida pelo próprio legislador (notadamente para o pregão), que pode gerar dúvidas ou erros formais. Assim, por exemplo, sendo o pregão restrito ao menor preço ou maior desconto, conforme conceito definido no inciso XLI do artigo 6º da Lei nº 14.133/2021, por força do § 1º do artigo 56, nele será vedada a adoção isolada do modo de disputa fechado. Outrossim, se no pregão o agente público responsável pelo certame será o pregoeiro, na concorrência será o agente de contratação.

Não é defensável a ideia de que a modalidade vai influenciar no estabelecimento de prazos mínimos para a apresentação de propostas e lances. Conforme o Art. 55 da Lei nº 14.133/2021, tais prazos independem da modalidade licitatória, mas sim do objeto, do critério de julgamento e do regime de execução.

Por outro lado, podem ser identificadas questões interessantes, com dilemas práticos para a confecção de nossos editais.

Nesse prumo, vale lembrar que a Lei Complementar nº 123/2006, ao assegurar, como critério de desempate, a preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte, diferenciou o pregão das demais modalidades (entre elas a concorrência). De acordo com essa Lei Complementar, há empate ficto quando as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte forem iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada, sendo que, na modalidade pregão este intervalo é reduzido para 5% (cinco por cento)[2].

Sob a égide das Leis nº 10.520/2002 e nº 8.666/1993 era evidente que o comando da LC 123/2006 definia um percentual de 10% quando a modalidade adotada fosse a concorrência e de 5% quando a modalidade adotada fosse o pregão, seja presencial ou eletrônico. Não havia outra razão para essa diferenciação de intervalo senão a discrepância entre os ritos do pregão e da concorrência, respectivamente, das Leis nº 10.520/2002 e da Lei nº 8.666/1993. Essas modalidades, nessas leis, possuem ritos diferentes e, em função disso, intervalos de empate ficto diversos. Ademais, embora a concorrência fosse necessariamente presencial, o pregão poderia ser adotado também no formato eletrônico, onde a competitividade do certame e sabidamente mais acirrada.

Contudo, ao se comparar a concorrência prevista na Lei nº 14.133/2021, com a da Lei nº 8.666/1993, percebe-se que elas possuem ritos diferentes. O mesmo se diga em relação ao pregão da nova Lei e o da Lei nº 10.520/2002. Agora, na nova Lei, embora o modo de disputa seja necessariamente aberto para esta modalidade, em tese não há óbices que ela possua fases invertidas, uma vez que o art. 17, no §1º, previu essa possibilidade, e não o fez apenas para a concorrência[3]. Ademais, diferentemente de outrora tanto o pregão como a concorrência podem ser adotados em seus formatos presenciai ou eletrônicos.

Portanto, essas modalidades (concorrência e pregão), na Lei nº 14.133/2021, não são as mesmas das Leis nº 10.520/2002 e nº 8.666/1993, mas apenas homônimas. Herdaram-se os nomes, mas não os ritos.

Diante desta constatação, convém indagar: como deve ser feita a aplicação dos percentuais de 5% e de 10% para as hipóteses de empate ficto regras pela LC 123/2006?

Há, pelo menos, três possibilidades de interpretação:

A primeira, lastreada sobretudo pelo elemento literal, definirá que, nas licitações realizadas com fundamento na Lei nº 14.133/2021, o percentual será de 5% para a modalidade pregão e o percentual será de 10% para as demais modalidades, entre elas, a concorrência. Essa proposta de interpretação aplica os percentuais atinentes às modalidades anteriores homônimas, embora diferentes.

É possível uma segunda corrente, lastreada no elemento teleológico, que legitimamente defenda a aplicação do percentual de acordo com a modelagem dada à concorrência e ao pregão, sob a égide da Lei nº 14.133/2021. Isso porque, em princípio, tanto a concorrência como o pregão devem adotar o rito procedimental comum, similar ao rito do pregão da Lei n. 10.520/2002; porém, pela NLLCA, ambas podem ter a inversão de fases, com a habilitação ocorrendo antes da fase de apresentação de propostas, conforme preconiza o § 1º do artigo 17 da Lei nº 14.133/2021, o que passa a gerar um rito similar ao da Concorrência da Lei n. 8.666/1993.

Assim, para esta segunda corrente, pela compreensão de que a LC 123/2006 pretendeu estabelecer um percentual inferior de 5% para o pregão por conta de sua modelagem, na qual a habilitação é apenas posterior à disputa de preços, nas licitações realizadas com fundamento na Lei nº 14.133/2021, tal percentual (5%) deve ser aplicado sempre que o edital optar pelo rito procedimental comum, conquanto o percentual de 10% deva ser utilizado sempre que houver inversão de fases, como admite o § 1º do seu artigo 17.

Uma terceira opção interpretativa é a de que, percebendo-se que a concorrência e o pregão da Lei nº 14.133/2021 são modalidades diferentes do pregão da Lei nº 10.520/2002, vigente à época da disposição encerrada pela LC 123/2006, deveria ser aplicado o percentual geral de 10% para ambas as modalidades da NLLCA.

Segundo essa linha de entendimento, realmente, as modalidades concorrência, instituída pela Lei nº 8.666/1993, e pregão, presente na Lei nº 10.520/2002, não são as mesmas previstas pela Lei nº 14.133/2021, mesmo que assim possa parecê-lo. São homônimas, mas não devem ser confundidas. Assim, se há uma ligação intrínseca entre rito e intervalo para o empate ficto, vale concluir que as licitações baseadas na Lei nº 14.133/2021, ao ser adotado o mesmo rito para ambas e diferentes daqueles das Leis nº 8.666/1993 e da Lei nº 10.520/2002, deve prevalecer a norma geral em relação ao intervalo, de forma que se entenda “por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada”.

Com isso, o § 2º do art. 44 da Lei Complementar nº 123/2006 não se aplicaria ao pregão da Lei nº 14.133/2021. Logo, tanto na modalidade concorrência como na modalidade pregão da NLLCA, o empate ficto seria aquele previsto no caput do citado artigo, isto é, aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada. Nessa linha de raciocínio, o intervalo percentual de até 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço deixará de prevalecer para fim de empate ficto com a adoção da Lei nº 14.133/2021.

Em nossa opinião, as três correntes apresentam posições legítimas e com interpretações defensáveis.  Mas qual dessas legítimas opções interpretativas será a escolhida?

Acreditamos que a definição deve ser dada pelo respectivo regulamento, respeitando-se a competência constitucionalmente estabelecida ao Chefe do Executivo e a autonomia de cada ente federativo para adotar a interpretação mais adequada.


* Procurador do Estado do Paraná. Procurador-Chefe da Coordenadoria do Consultivo. Mestre em Planejamento e Governança. Engenheiro Civil. Licenciado em Matemática Plena. Especialista em Direito Constitucional; em Construção de Obras Públicas; em Advocacia Pública; e em Ética e Educação. Autor de diversas obras na área de obras e serviços de engenharia, destacando-se Licitações e Contratos de Obras e Serviços de Engenharia; Governança e Gestão de Obras Públicas: do planejamento à pós-ocupação; Critérios éticos para a construção de edifícios públicos sustentáveis; 13 (treze) Cadernos Orientadores para licitações e contratações públicas – PGEPR.

* Advogado da União. Doutorando em Direito do Estado (UFPE). Mestre em Direito Econômico (UFPB). Pós-graduado em Direito tributário (IDP). Pós-graduado em Ciências Jurídicas (UNP). Membro da Câmara Permanente de Licitações e Contratos da Consultoria Geral da União. Coordenador, junto com Jacoby Fernandes, da Pós-graduação em licitações e contratos da Faculdade Baiana de Direito. Coordenador, junto com Jacoby Fernandes e Murilo Jacoby, da Pós-graduação em licitações e contratos da Faculdade CERS. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (12ª Edição. Ed. JusPodivm); Direito Administrativo (11ª Edição. Ed. Jus Podivm); Licitações e contratos para as empresas estatais (2ª Edição. Ed. Jus Podivm) e Improbidade administrativa (4ª Edição. Ed. Jus Podivm).

[1] Para quem desejar se aprofundar no tema Diálogo Competitivo, sugerimos a leitura do excelente artigo do Dr. Rafael Sérgio de Oliveira no endereço: https://d335luupugsy2.cloudfront.net/cms/files/1425/1622057111CO_nll-conteudo_gratuito-cartilha.pdf

[2] Art. 44.  Nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte.

§ 1o Entende-se por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada.

§ 2o Na modalidade de pregão, o intervalo percentual estabelecido no § 1odeste artigo será de até 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço.

[3] Art. 17. O processo de licitação observará as seguintes fases, em sequência:

I – preparatória;

II – de divulgação do edital de licitação;

III – de apresentação de propostas e lances, quando for o caso;

IV – de julgamento;

V – de habilitação;

VI – recursal;

VII – de homologação.

§ 1º A fase referida no inciso V do caput deste artigo poderá, mediante ato motivado com explicitação dos benefícios decorrentes, anteceder as fases referidas nos incisos III e IV do caput deste artigo, desde que expressamente previsto no edital de licitação.

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