Você sabe comprar ração para flamingos? ou… os desafios da análise jurídica na Nova Lei de Licitações

25 de maio de 2021

Melissa Guimarães Castello
Mestre em Direito pela Universidade de Oxford.
Doutora em Direito pela PUC/RS.
Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul.
Vice-Presidente da Fundação Escola Superior de Direito Tributário.

Esses dias acordei, abri o portal do processo administrativo eletrônico, e lá estava ela: uma minuta de edital e contrato administrativo cujo objeto era a aquisição de ração para flamingos. Quê?!? Pois é, não é algo que se vê todo dia…

Apesar disso, é uma compra simples, de valor baixo, sem muito mistério. Mas ela despertou minha atenção devido à minha absoluta ignorância sobre o tema. O que seria uma boa ração para flamingos? Será que aquela especificação técnica atendia às necessidades das simpáticas aves cor de rosa? E a quantidade? XXXkg, em embalagens de YYYkg cada, era mesmo o adequado? Ou será que essas especificações e quantitativos poderiam limitar a competitividade do certame?

Esse exemplo pitoresco me leva ao objeto destes comentários: a difícil vida dos advogados públicos, devido ao teor do art. 53 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Sim! Uma pequena palavrinha que mudou tudo!

Vamos ao juridiquês: a Lei 8.666/93 previa, no art. 38, de forma muito discreta, que “as minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração”. Mas a poderosa Lei 14.133/2021 vai além, ao estabelecer, no art. 53, que haverá “análise jurídica da contratação”. E, para não deixar nenhuma dúvida, no § 1º, I, determina que o parecer jurídico aprecie o “processo licitatório”.

Uma interpretação literal já revela que a análise jurídica, no novo marco legal, é bem mais ampla – e menos objetiva – do que o antigo cara-crachá de minuta de edital versus modelo padronizado. E esta ampliação das competências da assessoria jurídica tem sua razão de ser: o simples cara-crachá já não basta. Quando o ente licitante trabalha com os modelos padronizados de que trata o art. 19, IV, da Lei 14.133/2021, o cara-crachá é até desnecessário. E ele tampouco é suficiente para evitar problemas na contratação.

O exemplo dos flamingos é ilustrativo dessa situação: chegou para minha análise uma minuta de edital de pregão eletrônico para compra de bens, por registro de preços. A minuta observava todas as cláusulas padronizadas previstas no modelo-padrão pré-aprovado pela Procuradoria-Geral do Estado, e estava devidamente acompanhada dos anexos (ata de registro de preços padronizada, contrato administrativo padronizado e diversas declarações que acompanham o edital). Por consequência, caso a análise jurídica se limitasse ao cara-crachá, a minuta estaria aprovadíssima.

Mas nós não precisamos de um advogado público para fazer este cara-crachá. Conforme bem colocou o Professor Ronny Charles em evento realizado pela Advocacia-Geral da União, uma ferramenta de inteligência artificial faz esta análise de compatibilidade da minuta com o modelo pré-aprovado de forma muito mais eficiente e certeira do que um ser humano. Então, para que serve a análise jurídica?

É aí que chegamos na zona cinza. Aquela análise que vai além do cara-crachá, e que pode representar efetivos ganhos para a sociedade. Lembram das perguntas iniciais sobre o que seria uma boa ração para flamingos? Especificação técnica adequada, quantidade bem mensurada e forma de apresentação compatível com o usual no mercado são requisitos fundamentais para assegurar a competitividade do certame, princípio tutelado no art. 5º da Lei 14.133/2021. Além disso, um preço de referência bem formulado leva à economicidade, que também está prevista no art. 5º. São esses os elementos que devemos observar, ao efetuar a análise jurídica da contratação.

Mas como um advogado vai opinar sobre tudo isso? Evidentemente, não temos capacidade técnica para avaliar a qualidade da ração de flamingo – poderíamos perguntar para as aves, mas tenho dúvidas se flamingos sabem escrever pareceres jurídicos. E, devido à nossa incapacidade técnica para efetuar avaliação qualitativa, virou lugar comum nos pareceres jurídicos frases rebuscadas como “o dimensionamento do objeto é de responsabilidade exclusiva do gestor, não tendo esta análise jurídica o condão de chancelar as escolhas técnicas da Administração”.

Estas frases são essenciais, para adequadamente delimitar o escopo da análise jurídica. Contudo, não eximem o parecerista de ter um olhar jurídico sobre critérios técnicos de qualidade e quantidade. E os flamingos novamente têm muito a nos ensinar acerca deste olhar.

Sobre requisitos qualitativos, o advogado público deve analisar se o procedimento de compra foi instruído com elementos suficientes para justificar a razão da escolha daquele produto. Supondo-se que tenha sido requerida ração “premium”, por exemplo, há justificativa para esta solicitação? O olhar jurídico, aqui, se limita à existência – ou não – de fundamentação para as escolhas da Administração.

A análise da forma de apresentação do bem se submete a um olhar jurídico semelhante à dos requisitos qualitativos: a Administração realmente precisa de ração de flamingo em embalagem de 1kg? Por que razão a embalagem de 10kg – possivelmente mais barata – não atende às necessidades do órgão? É possível que a ração, após aberta, seja altamente perecível, o que justificaria embalagens menores. Mas isso deve estar demonstrado no processo de contratação.

Ainda no que toca à forma de apresentação, o olhar jurídico deve analisar a redação da especificação técnica: “embalagens de 995g” é um sério indício de direcionamento da licitação, ao passo que “embalagens de até 1kg” parece uma redação mais adequada, podendo ampliar significativamente a competitividade do certame.

Sobre requisitos quantitativos, por sua vez, o olhar jurídico pode ir muito além. Em compras recorrentes – como é o caso de ração para os flamingos do zoológico – o procedimento de compra deve ser instruído com uma retrospectiva do histórico de consumo, de forma a dar certeza ao gestor de que o quantitativo solicitado é compatível com o que efetivamente será consumido. Aqui parece haver espaço para o poder regulamentar do Ente Público: esta análise de consumo deve tomar por base a execução do último contrato? Ou dos últimos dois anos? O estabelecimento de critérios objetivos, em ato normativo infralegal, certamente levará à adequada instrução do processo de contratação.

É claro que pode haver modificação na projeção de consumo, caso em que o gestor deve justificar o motivo pelo qual se afastou da média histórica. No nosso simpático exemplo, uma ninhada de bebês flamingos pode servir de fundamento para que o órgão solicite um quantitativo maior de ração. O relevante, para a análise jurídica, é que a justificativa esteja claramente prevista no processo administrativo.

Por fim, o olhar jurídico sobre o preço de referência tem alcance mais limitado: a análise jurídica deve observar se foram atendidos os requisitos de orçamentação do art. 23 da Lei nº 14.133/2021, devidamente regulamentado pelo Ente licitante. Não cabe ao advogado público refazer a pesquisa de preços, mas ele deve verificar se a metodologia definida pela própria Administração foi obedecida, no caso concreto.

Como se percebe, a Nova Lei de Licitações sofisticou a análise jurídica: passamos de “fiscais do modelo padrão” a “caçadores de limitações de competitividade e economicidade”. Vários desafios vêm com esta sofisticação. Mas, com um trabalho bem feito, a análise jurídica pode contribuir para que os flamingos recebam uma ração mais gostosa e, de preferência, mais barata!

P.S.: não havia nenhum erro na minuta de edital para compra de ração para flamingos, que passou em todos os testes do olhar jurídico. Que os flamingos tenham uma deliciosa refeição!


Publicado originalmente no JotaInfo em 11/05/2021. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/voce-sabe-comprar-racao-para-flamingos-11052021

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