Licitantes e o uso de ferramentas tecnológicas

11 de março de 2021

Bradson Camelo[1]
Ronny Charles L. de Torres[2]

Você pode até dizer
Que eu “to por fora”
Ou então
Que eu estou inventando
Mas é você que ama o passado
E que não vê
É você que ama o passado
E que não vê
Que o novo, o novo sempre vem
(Belchior)

Nas duas últimas décadas, é evidente a constante evolução tecnológica e como ela tem influenciado diversas áreas da vida social, do funcionamento das instituições e do próprio mercado. Será que essas inovações devem ser mantidas longe do universo das licitações? Assim, nesse artigo, pretendemos demonstrar através do instrumental analítico da economia que a tentativa de impedir os licitantes de utilizarem as ferramentas tecnológicas camufla uma vontade irrefletida de manter-se em um passado que não existe mais.

A análise econômica do processo licitatório como um todo, tanto na fase de planejamento como em sua fase externa, parece ser bastante adequada, pois o citado procedimento administrativo simula uma relação de mercado, com o objetivo de alcançar a proposta mais vantajosa.

Ao falar em uma análise econômica, buscamos, na verdade, avaliar os comportamentos racionais gerados e as consequências decorrentes do formato estabelecido no processo seletivo denominado licitação. É curioso que, no Brasil, a Administração crie regras indutoras de determinados comportamentos, mas depois se escandalize com esses, sem compreender que nada mais são do que consequências comportamentais não previstas, mas decorrentes de suas regras. É uma situação que nos faz lembrar a famosa história em que o técnico Feola descreveu uma complexa jogada ensaiada para os jogadores da seleção brasileira executarem contra a União Soviética e, em seguida, foi questionado por Garricha se tudo aquilo havia sido combinado com os Russos.

Antes de entrarmos nos aspectos econômicos, lembramos o conceito tradicional de licitação como um procedimento prévio para escolha de um fornecedor apto ao atendimento de uma pretensão contratual. Esse mecanismo, grosso modo, tem o intuito de permitir que se ofereçam propostas e que seja escolhida a mais interessante e vantajosa ao interesse público. A licitação pode ser vista, portanto, como um trajeto entre a definição de uma pretensão contratual e a seleção deste fornecedor, sendo que uma parte desse trajeto, aquela que tradicionalmente foi classificada como “fase externa da licitação”, é caracterizada pela disputa entre licitantes para a conquista da contratação. Um verdadeiro jogo entre os licitantes e a administração pública.

A vantagem de analisar a licitação como um jogo é a visualização da interação das estratégias dos agentes (licitantes e administração), facilitando a escolha das melhores decisões e, eventualmente, servindo de justificativa para alterações normativas que gerem um melhor desenho do mecanismo em questão.

Sob uma perspectiva econômica, a licitação, notadamente em sua fase externa, pode ser compreendida como um jogo de múltiplos jogadores, com interesses diversos, no qual, de um lado está a Administração, objetivando a proposta mais vantajosa para o atendimento de sua pretensão contratual, enquanto do outro estão os fornecedores licitantes, em competição entre si, objetivando alcançar a vitória no certame público, com uma proposta que lhes garanta a maior margem lucrativa possível. Fica claro – como ocorre em todos os jogos de leilão – que a melhor estratégia para o Estado é aquela que fomentar a maior concorrência entre os outros jogadores, que tenderão a revelar suas informações sobre os menores preços.

Estabelecer os incentivos adequados para as finalidades pretendidas parece ser o grande desafio que nossa normatização ainda não conseguiu suplantar.

Há pouca análise ou reflexão com viés econômico, o que prejudica o resultado do processo seletivo e gera reações equivocadas em relação aos comportamentos gerados nos participantes deste processo licitatório.

Uma das reações equivocadas, em nossa opinião, envolve a crítica feita pelos órgãos de controle à utilização, pelos fornecedores, de ferramentas tecnológicas, denominadas “robôs de lances”, na modalidade pregão eletrônico, que nada mais são do que softwares utilizados por fornecedores, para o ágil envio de lances na licitação. Ou seja, é uma forma de ser mais rápido na execução dos lances, objeto da competição entre os licitantes.

Curioso que ferramentas tecnológicas, também classificadas como “robôs”, são utilizadas com entusiasmo pela Administração Pública, inclusive na atividade de controle e combate à corrupção[3], com o objetivo também de maximizar a eficiência da atuação das respectivas instituições. Contudo, alguns desses mesmos órgãos criticam a adoção de softwares similares por licitantes, tratando o assunto, em nossa opinião, sobre um viés jurídico-dogmático equivocado, no qual é pontuado que a utilização dessas ferramentas afrontaria a isonomia. Vale ressaltar que isonomia não significa que todos são iguais, mas que o tratamento dado a eles deve ser igual.

Mas qual afronta pratica o licitante quando, legitimamente, sem interferir na ação de um concorrente ou utilizar de ardil prejudicial à competição, busca maximizar sua eficiência competitiva?

Os “robôs de lances” são softwares produzidos pelo mercado de tecnologia, naturalmente atento às necessidades de consumidores, que permitem ao licitante a apresentação/digitação de novos lances, com maior agilidade que um operador humano. Pode servir para registrar lances em tempo ínfimo, antes do encerramento aleatório do certame, ou para garantir a participação eficiente em centenas itens e em licitações simultâneas, sem o custoso acompanhamento por diversos operadores humanos.

Uma das formas de analisar um argumento é levá-lo ao extremo (reductio ad absurdum). No caso, imaginemos o que ocorreria se todos os jogadores usassem robôs. No limite, haveria uma revelação mais rápida dos preços mínimos dos licitantes e o ganhador seria o que programasse o robô a parar em um valor mais baixo, atingindo o objetivo da administração de modo mais eficiente.

Parte da burocracia administrativa, ao identificar a influência desses softwares nas licitações realizadas sob a modalidade pregão eletrônico, ao invés de perceber que ela decorria da regra dada ao “jogo do pregão eletrônico” por ela própria, passou a criticar o uso da ferramenta tecnológica, prejudicando a atitude da empresa de maximizar a sua eficiência (que pode acabar repercutindo negativamente no preço proposto)!

Mas será este o comportamento adequado?

Há outras ferramentas tecnológicas aplicáveis ao procedimento licitatório. Algumas permitem ao licitante encontrar diariamente dezenas ou centenas de editais com objetos licitatórios de seu interesse, automaticamente; outros softwares monitoram as mensagens dos pregoeiros, via sistema, durante as sessões das licitações, permitindo que uma única pessoa possa estar atenta a todas as convocações, mesmo que disputando, ao mesmo tempo, várias licitações com diversos itens, o que evita a perda da disputa e, por vezes, até a aplicação de sanção administrativa. Será que isso também fere a isonomia? Claro que não, pois todos podem contratar esses serviços e reduzir seus custos de transação. Torna-se mais barato participar de uma licitação, o que gera um benefício para todos.

Na prática, essas ferramentas são respostas a demandas do mercado, para disputar com maior chances de vitória o procedimento licitatório, ampliando sua eficiência, mitigando riscos ou reduzindo custos. É natural que os licitantes busquem ferramentas tecnológicas que maximizem sua eficiência, legitimamente, para alcançar a vitória em licitações. Ademais, o uso de robôs em licitação é uma importante sinalização de que a empresa busca eficiência, o que é importante para relações contratuais de longo prazo.

Esta, aliás, é uma transformação que afeta diversos outros mercados. A inteligência artificial e diversos softwares têm sido adotados pelas empresas, pelos escritórios de advocacia e inclusive pelas instituições públicas, sempre com um objetivo básico de melhora da performance, maximização da eficiência. Quando não desvirtuam a disputa ou o mercado no qual estão inseridas, essas mudanças devem ser compreendidas como uma evolução, como progresso, não como um desvirtuamento.

As melhores estratégias da administração pública são aquelas que permitem os licitantes disputarem de modo mais eficiente, reduzindo custos para a contratação pública e revelando mais informações. Robôs não devem ser apenas permitidos, devem ser estimulados.

Se a Administração deve respeitar a isonomia, na gestão do procedimento licitatório e em suas atividades administrativas, as empresas devem buscar constante diferenciação, evoluindo em suas técnicas e estratégicas. Impor isonomia ao mercado é algo contrário aos valores da livre iniciativa, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Coibir o uso de ferramentas tecnológicas que, sem ardis ou trapaças, ampliam a capacidade competitiva do fornecedor, é algo contraditório para uma Administração Pública que avança, embora ainda claudicante, na utilização de ferramentas similares, com as mesmas finalidades de ampliação da eficiência, mitigação de riscos ou redução custos.

A licitação não pode fazer como o personagem Richard Collier que não vive o presente por estar aprisionado mentalmente em algum lugar do passado. Escutemos a lição de Belchior, eternizada na voz de Elis Regina, “o novo sempre vem”!


[1] Procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba. Professor Universitário. Já foi membro da Procuradoria da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito, economista e mestrando em Economia em Chicago.

[2] Advogado da União. Doutorando em Direito do Estado e Regulação. Mestre em Direito Econômico. Pós-graduado em Direito tributário. Pós-graduado em Ciências Jurídicas. Membro da Câmara Permanente de Licitações e Contratos da Consultoria Geral da União. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (11ª Edição. Ed. JusPodivm); Direito Administrativo (10ª Edição. Ed. Jus Podivm); Licitações e contratos para as empresas estatais (2ª Edição. Ed. Jus Podivm) e Improbidade administrativa (4ª Edição. Ed. Jus Podivm).

[3] Neste sentido, vale citar os softwares Alice e Monica, utilizados pelo TCU para identificar irregularidades em licitações, além de outras ferramentas tecnológicas adotadas pela CGU e diversos Tribunais de Contas e Controladorias estaduais.

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