Esperando Godot: Poderá a Nova Lei de Licitação revolucionar as compras públicas no Brasil?

19 de dezembro de 2020

Esperando Godot: Poderá a Nova Lei de Licitação revolucionar as compras públicas no Brasil?

Por Marcos Nóbrega

Diariamente os jornais estampam escândalos envolvendo licitações, somos instigados a refletir do porquê disso e duas respostas são recorrentes: O Brasil é, em essência, um pais corrupto e o controle é falho. Embora possa até existir um fundo de verdade nisso, creio que há algo mais. O “mecanismo” estabelecido pela Lei de Licitações – LGL (lei 8666/93) para a escolha da proposta mais vantajosa é falho, ultrapassado e ineficiente.

A licitação funciona como um “detector de mentiras”, ou melhor, como um mecanismo de revelação de informação. Cabe ao Governo formatar regras adequadas para tentar descobrir como e quanto os licitantes estão omitindo de informação. Os mecanismos implícitos no procedimento licitatório que possibilitam essa “revelação” são os critérios de habilitação que , infelizmente, são burocráticos, dispendiosos e inúteis. Muitas modificações foram feitas nos últimos anos e leis específicas como a de Parceria Publico Privadas (lei 11.079/04); Regime Diferenciado de Licitação – RDC (lei    12.462/11) e Lei das Estatais (lei 13.303/16)  tentaram aperfeiçoar as licitações no país.

Foi aprovado no Senado Federal o PLS PL 4253/2020 que institui normas para licitações e contratos e substitui a lei 8666/93 e que segue agora para sanção Presidencial.  A sua aprovação reveste-se de grande importância porque a Lei 8.666/93 resta incapaz de atender os desafios da administração pública e o desejo de adquirir bens com mais qualidade, eficiência e melhor custo-benefício.

Nos últimos 30 anos,  extensa literatura tem sido produzida sobre melhores mecanismos para aquisição de bens por parte da administração e análises sobre teoria dos leilões e mecanismos de “desenho de mercados” tem sido muito úteis. Não por acaso, vários dos prêmios Nobel de economia vem trabalhando com o tema de licitações e contratos (Elinor Ostrom e Oliver Williamson  (2009), Alvin Roth (2012); Jean Tirole (2014) e Oliver Hart (2016) e agora em 2020 , Paul Milgrom e Robert Wilson.

A nova lei de licitações incorpora uma série de medidas que já estavam presentes em outras legislações como a inversão de fases; concentração recursal; negociação e a  contratação integrada. No caso da contratação integrada, o setor privado elaborará o projeto básico e o executivo, se responsabilizando pela execução de obras e serviços de engenharia, montagem e testes, sendo remunerado por preço global. Também foi estabelecida a contratação semi-integrada, que permitirá equilibrar os requisitos da contratação integrada com aqueles presentes nos regimes tradicionais de contratação, ficando a  empresa responsável pelo projeto executivo. Nesse modelo (já utilizado pela lei das Estatais – lei 13.303/16) há a possibilidade de ajustes no projeto básico durante a execução contratual, desde que as parte assim achem conveniente.

Também simplifica as modalidades de licitação (acaba com convite e tomada de preços) e estabelece novas hipóteses de dispensa e inexigibilidade. No caso de dispensa pelo valor, estabelece o limite de R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores e R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para contratação  de outros serviços e compras.

Também incorpora uma prática advinda do regulamento de compras governamentais da Comunidade Europeia, o chamado Diálogo Competitivo. Trata-se de modalidade de licitação em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento do diálogo.

Também aperfeiçoa os mecanismos de garantias, dando maior segurança aos financiadores dos projetos. As obras de grande vulto deverão contratar um seguro equivalente a até 30% do valor do contrato, ao passo que as obras com orçamentos menores serão seguradas entre 5% e 10%. Caso o contratado não conclua a obra, a seguradora em caso de inadimplemento pelo contratado, assumirá a execução e concluirá o objeto do contrato ou pagará o seguro. Esse é um ponto de grande polêmica posto que não há mercado securitário no Brasil apto a assumir todos esses riscos.

Um ponto muito positivo da nova lei foi estabelecer a necessidade da elaboração de uma matriz de risco que corresponde à cláusula contratual definidora de riscos e responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação. Uma regra que já estava contemplada na lei do Regime Diferenciado de Contratação – RDC e que agora passa a ter o caráter de norma geral das licitações.

Também são estabelecidos procedimentos auxiliares das contratações  como o credenciamento, a pré-qualificação, sistema de registro de preços e registro cadastral que darão muito mais celeridades às licitações e procuram estabelecer mecanismos mais eficiente de signaling e rating para as contratações.

Estabeleceu regras para que os Tribunais de Contas suspendam mediante medida cautelar as licitações somente uma única vez e por prazo de até 25 dias úteis. Além disso, observa que ao se analisar o mérito das liminares devem ser definidas claramente as alterações necessárias para o prosseguimento da licitação ou, se for o caso, anulá-la. A decisão que examinar o mérito da medida cautelar deverá definir as medidas necessárias e adequadas, em face das alternativas possíveis, para o saneamento do processo licitatório, ou determinar a sua anulação. Medida em plena consonância com as regras da LINDB.

A Nova Lei de Licitação também admitiu o uso de arbitragem em contratos administrativos, o que evita que os conflitos sejam decididos pelo Poder Judiciário, determinando elevados custos de transação e permitindo decisões tecnicamente deficientes.

Infelizmente no Direito Administrativo ainda temos constructos teóricos defasados que são incapazes de resolver os problemas diários da Administração Pública. Esse arcaísmo permeia tanto a Administração Pública como os organismos de controle. Elementos como estrita legalidade e excesso de formalismo refletem sobremodo esse problema. Algumas teorias econômicas podem contribuir para entendermos melhor os dilemas do Direito Administrativo moderno. Não que possamos desvirtuar ou mesmo desprezar os parâmetros teóricos do sistema administrativo brasileiro, mas temos que dar uma nova visão aos problemas diários e uma nova lei de Licitação pode contribuir muito para esse aperfeiçoamento. Se não promovermos uma revolução doutrinária e jurisprudencial na aplicação da nova lei, ficaremos como os personagens de Samuel Beckett na sua famosa peça “esperando Godot”, aguardando algo que nunca virá.


AUTOR:

MARCOS NÓBREGA
Professor da Faculdade de Direito do Recife – UFPE e Conselheiro Substituto do TCE – PE e Visiting Scholar Harvard Law School e MIT.

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