Gestão em rede e COVID-19: a iniciativa da Universidade Federal de São Paulo

12 de maio de 2020

Gestão em rede e COVID-19: a iniciativa da Universidade Federal de São Paulo

Por Teresa Villac

Os tempos estão desafiadores para os gestores públicos:  necessidades prementes de novas contratações, equacionamento jurídico de contratações em andamento, novidades normativas quase que semanais,  em um quadro trazido pela pandemia global que tem como uma de suas poucas certezas justamente o cenário de incerteza.

A partir das nova legislação, Lei 13.979/20 (e todo o marco institucional legal decorrente), os gestores públicos estão sendo chamados à ação. E quem os chama? O sentido ético e cidadão de bem cumprirem seu papel de servidores e salvaguardarem a saúde e direitos basilares da população.

Ocorre que, ainda assim, as usuais formas de gestão estatal muitas vezes podem não oferecer as respostas necessárias para um momento de  crise como este. Sobre as usuais formas de gestão estatal a que nos referimos, compreenda-se aqui uma burocracia do  Estado por vezes não dialógica na construção de soluções e focada na excessiva hierarquização, sem espaço para a inovação ou até mesmo mínimas melhorias incrementais nos processos.

Sobre o tema das deficiências na estrutura governamental,  alerta-nos mapeamento efetuado por José Matias-Pereira, Professor de Administração Pública na UNB. A primeira vez que o li foi em 2009 e, apesar de reconhecíveis avanços que testemunhei e verifico no setor público, subsistem ainda algumas das dificuldades identificadas pelo Professor José Matias-Pereira. Assim, consoante  o autor:

“(…) a crise da burocracia pública brasileira permeia as seguintes dimensões:

• Deficiência na estratégica (foco e convergência de programas e ações).

• Fragilidade na estrutura (lenta, excessiva em alguns setores, escassa em outros).

• Disfunções nos processos (sujeitos às regras padronizadas altamente burocratizadas).

• Despreparo dos servidores, com inúmeras distorções relativas à distribuição, carência, qualificação e remuneração, dos recursos, que são inadequados, desde os logísticos e instalações à tecnologia de informações, embora haja focos de excelência.

• Problema cultural (excessivamente burocrática e permeável às práticas patrimonialistas).

• Inexistência de um modelo de burocracia pública consolidada.

• Estado patrimonialista presente na cultura política brasileira. Esta disfunção se manifesta no clientelismo, no corporativismo, no fisiologismo e na corrupção existentes no país.”

(MATIAS-PEREIRA, 2020)

Em um contexto atípico como o atual, no qual o Estado necessita ofertar, sempre com lastro na juridicidade,  respostas rápidas  e eficientes para o enfrentamento da pandemia, como superar as barreiras acima que possam existir em órgãos públicos?

Cooperação.

Refiro-me  ao  Estado em rede, que ainda está sendo muito pouco difundido na literatura nacional, e que pressupõe um agir público no qual sejam definidas estratégias que podem ser sintetizadas, no limite de caracteres deste artigo, como “sair da caixa” na gestão pública.

Sair da caixa.

Uma agência governamental não deve permitir que seus processos históricos, seus organogramas vigentes, sua capacidade atual – ou até mesmo as ofertas do setor privado – determinem as atividades que devem operar a transição para uma abordagem em rede.” (GOLDSMITH, EGGERS, 2006).

E o que é sair da caixa em gestão e  em uma contratação pública lastreada na Lei 13.979/2020?

Como a prática fala muito mais do que a teoria, deixo aqui um exemplo, seja por sua utilidade pública no momento atual, seja pelo respeito inafastável que houve aos regramentos de sustentabilidade e pela inovação, fruto de um trabalho colaborativo.

Trata-se de iniciativa da Universidade Federal de São Paulo, por intermédio da sua Pro-Reitoria de Administração, consistente no Edital 02/2020, que tem por objeto o credenciamento de fornecedores interessados para fornecimentode EPIs, insumos, medicamentos, materiais e equipamentos hospitalares, reagentes, outros insumos e equipamentos para pesquisa e outros necessários ao enfrentamento do COVID-19, para os órgãos, Universidades Federais e Hospitais Universitários Federais.  

O chamamento abarcou 55 instituições participantes, foi construído colaborativamente, assim com está sendo o seu prosseguimento.

A proposta de atuação conjunta e agregadora de esforços foi levada pela Pró-Reitora de Administração da UNIFESP ao Fórum Nacional de Pró-Reitores de Planejamento e Administração das Instituições  Federais de Ensino Superior e o objetivo maior foi obter ganho de escala, além de capacidade de negociação e visibilidade aos fornecedores.

Segundo a Dra Tânia Mara Francisco, Pró-Reitora de Administração, “As universidades e hospitais universitários estavam enfrentando dificuldades na aquisição de itens para o enfrentamento do COVID19. A grande demanda gerou a elevação dos preços e escassez dos itens.”

Esclarece Dra Tânia:

“O modelo adotado, “chamamento público” tem a ver com a necessidade de atingir proporções nacionais e viabilizar o volume de itens , unidades e instituições, de modo ágil e conseguisse dar uma resposta á questão emergencial. Hoje temos 55 instituições participantes em cerca de 600 itens, e coordenado por mim, uma equipe de 64 pregoeiros e técnicos de laboratório que remotos, de diversas partes do país, estão atuando no recebimento de documentações, análises das propostas, classificação, etc.

 Interessante que poucos dias depois da publicação do edital através de proposta do ME – SEGES foi publicada uma medida provisória que falava em registro de preços para dispensa de licitação (MP 951/20) , o que é basicamente o que estamos fazendo, um grande IRP.

Na perspectiva de sustentabilidade o processo trouxe viabilidade econômica, além de cuidados com exigência de registro dos produtos, logística regional, com entrega racionalizada para diminuir a circulação (até porque estamos em quarentena) além do aspecto social com fomento a atividade econômica e fabricação de materiais, com a flexibilização de algumas regras usuais para termos participantes que normalmente não conseguem vender para órgãos públicos. Por ser uma ação conjunta também se torna um procedimento mais barato, com publicações únicas, além da aquisição de itens para fabricação de álcool em gel e insumos para fabricação de EPIs e peças para equipamentos, como respiradores, em impressora 3D. Há de se salientar também a urgência da pesquisa, que tem utilizado dos insumos adquiridos.

Avaliamos que a ação tem alcançado o seu objetivo com queda sucessiva de preços e capacidade de negociação em relação a insumos de difícil aquisição no mercado.

Além disso, destaco a total transparência do processo, o que pode ser observado nas páginas da UNIfeSp, que apresenta todas as propostas, as planilhas, e em relação à Unifesp, inclusive relatório de aquisições, todos os documentos das dispensas e fotos dos itens recebidos em nossos almoxarifados.

A Ação tem proporcionado o atendimento imediato das necessidades das instituições e ajudado a garantir o atendimento adequado à população.”

No exame das especificações técnicas dos itens, verificou-se a inafastável exigência de requisitos e critérios de sustentabilidade, como observância de normas ABNT NBR, RDC ANVISA (Resolução de Diretoria Colegiada),  registro na ANVISA, registro no Ministério da Saúde, Resolução CONAMA, dentre outras. Houve o “compromisso jurídico-administrativo com o desenvolvimento sustentável” (PEREIRA JR, DOTTI, 2012), que engloba a saúde humana e o bem estar intergeracional (VILLAC, 2020, prelo).

Assim procedendo, além de atender aos ditames de legalidade, considerando que as exigências inseridas são de cunho obrigatório e lastream-se em normas nacionais que objetivam preservar a saúde, bem estar e previnir danos, houve a consciência clara dos gestores de que enfrentar uma pandemia, via contratação pública, não pode resultar em danos outros à saúde humana e ao meio ambiente. Neste tocante, mencionamos quão fundamental será cada uma das 55 instituições participantes atentar para a gestão ambiental adequada dos resíduos decorrentes destas aquisições.

Este é o ponto  que sumariza a iniciativa da Unifesp e instituições participantes: com zelo e observância da juridicidade, inovou-se colaborativamente mesmo em um cenário de crise, sem retração e  sem afastamento das exigências legais de saúde pública e sustentabilidade, gerando uma resposta social rápida e dando concretude ao direito fundamental à boa administração pública (FREITAS, 2014).

O edital 2/2020 e documentos relacionados estão disponíveis na página da UNIFESP na internet:

https://www.unifesp.br/reitoria/proadmin/categoria-boletins/297-edital-02-2020

Referências

FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à Boa Administração Pública. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

GOLDSMITH, Stephen; Eggers, Willian D. Governar em rede – o novo  formato do setor público. Brasília: Enap/Editora Unesp, 2006.

MATIAS-PEREIRA, José. Manual de Gestão Pública Contemporânea. 6ª edição, revista e atualizada, e-book [VitalSource Bookshelf]. Atlas/Gen, 2020

PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas / Jessé Torres Pereira Junior, Marinês Restelatto Dotti. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

VILLAC, Teresa. Licitações sustentáveis no Brasil. 2ª edição (prelo). Belo Horizonte: Fórum, 2020.


TERESA VILLAC
Doutora em Ciência Ambiental. Filósofa. Advogada da União. Conferencista, Professora e Escritora. Autora do Livro Licitações Sustentáveis no Brasil: um breve ensaio sobre ética ambiental e desenvolvimento (FÓRUM, 2019).

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