Pagamento antecipado por bens adquiridos pelos órgãos públicos na pandemia

21 de abril de 2020

Pagamento antecipado por bens adquiridos pelos órgãos públicos na pandemia

Oportunidade de repensar aspectos da contratação pública

POR CRISTIANA FORTINI E JULIANA PICININ


Muitas são as indagações surgidas nesse período pandêmico, especialmente nas relações havidas com os entes públicos. Dentre essas estão as atinentes a quando e como podem ocorrer adiantamentos ou antecipações de pagamento aos contratados.

Borbulham notícias sobre fornecedores que condicionam a entrega de produto ao prévio pagamento pela Administração Pública que, por sua vez, está particularmente desafiada a não se enclausurar dado o risco de morte em larga escala.

A malha legal brasileira dissipa regras que partem da premissa de que tutelar o interesse público é antes de tudo agir com desconfiança em face dos operadores econômicos e também do gestor. São inimigos com os quais a conveniência é necessária, mas a prudência recomenda atenção.

Daí um arsenal de normas a criar obstáculos à má utilização dos recursos públicos, gerando, por vezes, uma espiral burocrática não só inábil a assegurar de fato o interesse público, como, por vezes, a ele antagônica, até pela oportunidade de corrupção que encerra.

Claro que o artigo não tem o escopo de defender ilicitudes cometidas por empresas ou por agentes públicos.

A proposta é fomentar a discussão, a partir do momento vivido e no breve espaço destas linhas, as premissas que calçam a estrutura legal aplicável aos contratos do cotidiano da Administração Pública.

A essência da Lei nº 8.666/93 está em atribuir condição de primazia à Administração Pública, reconhecendo-lhe prerrogativas que, muitas vezes, na vida fora dos muros, servem para encarecer as contratações públicas.

O risco de não receber, de receber com atraso e sem juros, de ter o contrato rescindido, ainda que não se possa atribuir falha ao contratado, de sofrer sanções por vezes dilacerantes, contribuem para o alto preço praticado. Engana-se quem acha que a corrupção é a única vilã.

Portanto, a reação de parte importante dos fornecedores hoje apenas escancara a realidade de má pagadora da Administração Pública brasileira.

Claro que também não se pode descurar do que pronuncia a Lei nº 4.320/64 que, não bastasse ter sido concebida em regime autocrático, não conhecia os perfis do atual texto constitucional que cobra eficiência como princípio e nem a realidade atual.

Prevê a citada lei que antes do pagamento (Art. 65) terão lugar o empenho (Art. 58) e a liquidação da dívida (Art. 63), tudo em relação a prestações de bens e serviços já ocorridos. A ela se associa o disposto no Art. 65, inc. II, alínea “c” da Lei nº 8.666/93.

Para condições normais, a regra pode até fazer sentido, embora indiscutivelmente se deva considerar que situações várias, e não apenas a pandemia, justificam o pagamento adiantado para prestígio do interesse público.

O PL 1292/95, em seu Art. 144 § 1º, condiciona a antecipação a uma de duas hipóteses: a) a obtenção de sensível economia de recursos ou se a medida encerrar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço; b) a segunda reflete a experiência atual.

Ainda que limitada a duas únicas situações, a alteração proposta sinaliza um aprimoramento na tratativa da matéria.

Importante recordar que o TCU já se pronunciou favoravelmente à medida em diversos julgados, entre os quais o Acordão nº 4.143/16 da 1ª Câmara, observadas as condições ali contidas.

Parece-nos que a pandemia impulsiona a reflexão, dado que comprova não só a inabilidade das regras ordinárias, como nos convida, uma vez mais, a discutir sobre a relação público-privado.


 

Repensar a estrutura legal brasileira, em especial as prerrogativas da Administração Pública, tal como ainda constantes da ordem jurídica e agravadas pelo seu mau uso, é urgente.


Consideremos o contido no Art. 78, inc. XV da Lei nº 8.666/93: o não pagamento no momento atrasado, quando a lógica da licitação envolve o planejamento e a indicação, como regra, de recursos orçamentários (Art. 7º, § 2º, inc. III, Art. 14 e Art. 38), deveria configurar verdadeira exceção, aplicável a casos justificados.

Infelizmente, a realidade nos diz o oposto, até porque a Lei nº 8.666/93, especificamente no Art. 78, inc. XV, não é expressa ao sinalizar que se cuida de exceção à regra.

Evidentemente que não precisaria, lida a lei na sua inteireza e considerada a base principiológica a conduzir a atividade administrativa.

Essa e outras tantas cláusulas exorbitantes tornaram-se lugar comum, aplicáveis boa parte das vezes para encobrir ausência de planejamento, quando não caprichos e voluntarismos.

A proposta que hoje tramita no Congresso Nacional de reduzir para dois meses o prazo do inadimplemento “tolerado” (Art. 136, § 2º, inc. IV do PL 1292/95), fixando o dever de atualizar o valor devido quando superior a 45 dias, sem prejuízo dos juros (Art. 140,§ 4º do PL 1292/95), e para garantir os recursos financeiros para custear a execução de obras (Art. 114, § 2º do PL 1292/95) suaviza os dissabores.

Mas permanecem intocadas outras tantas regras relativas a outras cláusulas exorbitantes, mesmo que a experiência ao longo dos anos tenha revelado desacertos na sua utilização.

Essas cláusulas, entre outros fatores, conduzem os privados a cobrar mais pelos mesmos produtos e serviços.

São condições que pesam os ombros do contratado e vão na contramão da política pública de acolhimento de micro e pequenas empresas, além de desestimularem de forma indistinta a participação em certames, quando não a utilização de subterfúgios pelos licitantes, entre os quais, a inflação da proposta.

Em tempos de pandemia, quando a vida das empresas também está ameaçada pelo vírus, repensar essas questões se tornou obrigatório.

Afinal de contas, faria sentido que nos agarrássemos a velhos padrões pelo simples fato de sermos refratários à mudança?

A oportunidade é para refazer as perguntas e ter coragem de criar as novas respostas, indo além do mesmo e do óbvio.


CRISTIANA FORTINI – Professora da UFMG e Milton Campos. Doutora pela UFmG. Professora Visitante da Universidade de Pisa. Visiting Scholar na George Washington. Vice presidente do IBDA
JULIANA PICININ – Mestre em Direito, professora e advogada

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