Ronny Charles L. de Torres
Advogado da União. Doutorando em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (15ª ed. Jus Podivm); Direito Administrativo (coautor. 14ª edição. Jus Podivm); Licitações e Contratos nas Empresas Estatais (coautor. 3ª edição. Jus Podivm) e Comentários à Lei de Improbidade Administrativa (coautor. 2ª edição. Jus Podivm). Análise Econômica das licitações e contratos (coautor. Fórum).
Como já tivemos oportunidade de escrever anteriormente[1], um tema que envolve certa polêmica é a adesão, em 2024, às atas de registro de preços firmadas sob a égide da Lei nº 8.666/1993 e da Lei nº 10.520/2002, visto que, desde o final de 2023, estas Leis encontram-se revogadas.
Naquela oportunidade, apresentamos entendimento segundo o qual novos processos decorrentes de demandas iniciadas em 2024, “após a revogação da legislação antiga, deveriam se submeter à legislação nova, inclusive em relação ao planejamento da contratação e em relação à regra que veda hibridismo entre o regime novo e as legislações antigas, o que impediria a adesão a atas lastreadas no regime antigo”.
Como sabido, os artigos 190 e 191 da Lei nº 14.133/2021 estabelecem os critérios para aplicação das legislações revogadas pela NLLCA, após a referida revogação, definindo hipóteses muito claras para a ultratividade normativa. Tal ultratividade permite que situações iniciadas sob a égide da legislação anterior se perpetuem sob o período de vigência temporal da Lei nova.
As premissas definidas pelo legislador foram as seguintes:
- contratos assinados antes da entrada em vigor da nova lei seguem regidos pelas regras da “legislação anterior” (Leis nºs 8.666/1993, 10.520/2002 e 12.462/2011), mesmo após a revogação da legislação anterior (art. 190);
- a opção pela aplicação do regime da “legislação anterior”, durante o período de convivência normativa, para licitações e contratações realizadas, garante ultratividade normativa, de modo que os pertinentes processos e contratos sejam regidos com base nas regras da “legislação anterior” (art. 191); e
- após a revogação das Leis nº 8.666/1993, 10.520/02, 12.462/2011, as novas licitações e contratações serão regidas pela Lei nº 14.133/2021.
A Advocacia-Geral da União já firmou tese, por intermédio do Parecer 00006/2022/CNLCA/CGU/AGU, de sua Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos, admitindo a continuidade da aplicação da ata de registro de preços gerada com base no regime da legislação revogada, mesmo em 2024. Segundo a AGU, aplicar-se-ia a regra de ultratividade, pois o processo licitatório que gerou a ata, no período de convivência normativa, necessariamente havia realizado a “opção” definida no artigo 191 da Lei nº 14.133/2021.
Contudo, embora tenha sido defendida a ultratividade do regime anterior para as Atas de Registros de Preços firmadas com base nele, durante o período de convivência normativa, possibilitando sua utilização em contratações subsequentes, o referido Parecer não abordou explicitamente a possibilidade de adesão por parte de órgãos não participantes, após o término desse período.
Como ponderamos anteriormente, para o gerenciador e participante, que integraram o processo de licitação que gerou esta ARP, a “opção” por adotar o regime anterior (antigo) para as futuras contratações decorrentes da Ata foi necessariamente definida durante o período de convivência normativa, o que garante a aplicação da regra de ultratividade do artigo 191 da Lei nº 14.133/2021. Já em relação à adesão, é possível que mesmo o início do processo para atendimento da demanda administrativa ocorra meses após a publicação da Ata, inclusive meses depois do fim do período de convivência normativa, quando não mais caberia a opção por licitar ou mesmo “contratar” de acordo com o regime anterior (antigo).
Em uma perspectiva normativa, novas demandas surgidas no ano de 2024 estariam necessariamente submetidas ao regime da Lei nº 14.133/2021, não sendo aplicáveis as regras dos artigos 190 e 191, legitimadoras da ultratividade do regime anterior.
Nada obstante, registramos que, ainda em 2023, o Decreto Federal nº 11.462/2023, ao regulamentar o Sistema de Registro de Preços no âmbito do Executivo Federal, admitiu a adesão a tais instrumentos auxiliares ainda regidos pelo Decreto Federal nº 7.892/2013, durante suas vigências (das Atas). Nessa linha, o § 2º de seu artigo 38 estabeleceu que as atas de registro de preços regidas pelo Decreto nº 7.892/2013, durante suas vigências, poderiam ser utilizadas por qualquer órgão ou entidade da Administração Pública federal, municipal, distrital ou estadual que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador.
O texto do Decreto permite, efetivamente, dupla interpretação, já que não disciplinou com melhor detalhamento sobre o momento de instauração do processo de contratação, de modo a verificar a aplicação das regras de ultratividade.
É possível compreender que a adesão por ele admitida deveria, por respeito à regra de ultratividade definida pela Lei nº 14.133/2021, ocorrer apenas naqueles processos em que a opção pelo uso do regime antigo ocorreu ainda durante o período de convivência normativa. Por outro lado, é possível interpretar que o Decreto admitiu também, ao menos em tese, a adesão para demandas surgidas depois da revogação do regime antigo (que não justificariam a aplicação da regra de ultratividade prescrita pelo artigo 191 da Lei nº 14.133/2021).
Por conta desta imprecisão da regra regulamentar, ao tratarmos anteriormente sobre o tema[2], ponderamos que, enquanto não fosse apresentada alguma restrição por parte dos órgãos de controle ou mesmo mudança do regulamento federal, seria possível interpretar (mesmo não nos parecendo a melhor solução jurídica) que o Decreto Federal nº 11.462/2023 admitiu, sem qualquer restrição, a adesão a atas de registro de preços regidas pelo Decreto nº 7.892/2013, durante o ano de 2024.
Para deixar bem claro nosso entendimento: em uma perspectiva estritamente dogmática, parece razoável admitir a adesão em uma demanda iniciada ainda em 2023, com opção por adotar o regime antigo, mesmo que esta (a adesão) apenas se concretize em 2024, momento de vigência exclusiva da Lei 14.133/2021. Contudo, não parece razoável considerar que um processo de contratação iniciado, por exemplo, apenas em agosto de 2024, resulte em uma adesão a Ata de Registro de Preços fundamentada na Lei nº 8.666/1993, em setembro ou outubro de 2024.
Esta interpretação é compatível com a regra do § 2º do artigo 38 do Decreto Federal nº 11.462/2023, mas define para ele uma interpretação restritiva.
Para separar as situações é fundamental compreender que a “opção” de contratar com base no regime antigo seria completamente extemporânea ao período estabelecido para a convivência normativa, que se encerrou no final de dezembro de 2023, não justificando, pelo menos nos termos do artigo 191 da NLLCA, a aplicação da regra de ultratividade normativa.
Novas demandas, surgidas em 2024, devem estar sujeitas à legislação nova. Isso se aplicaria não apenas ao planejamento da contratação, mas também à regra do artigo 191 da Lei nº 14.133/2021 que proíbe o hibridismo entre o novo regime e as legislações antigas.
Nessa linha, inclusive, decidiu recentemente o Egrégio Tribunal de Contas do Espírito Santo, segundo o qual “o pedido de adesão do “carona” e a respectiva concessão pelo órgão responsável pela ata de registro de preços forem realizados dentro do período temporal estabelecido pelas regras de transição da Nova Lei de Licitações, de acordo com as alterações da Lei Complementar 198, de 28 de junho de 2023, ou seja, até 29 de dezembro de 2023, os contratos decorrentes seguirão a mesma legislação prevista na ata, desde que pactuados durante a sua vigência, ainda que formalizados após a referida data limite.”[3]
O raciocínio do TCE/ES está correto. A submissão ao pertinente regime jurídico licitatório não envolve, em princípio, uma opção discricionária, exceto quando esta opção é autorizada pelo próprio ordenamento.
Contudo, diante da regra do § 2º do artigo 38 do Decreto Federal nº 11.462/2023, é razoável que muitos agentes públicos federais venham entendendo pela possibilidade de adesão a atas de registro de preços lastreadas no regime licitatório revogado (Lei nº 8.666/93), mesmo que a demanda administrativa tenha surgido em 2024.
Diante da ausência de clareza no dispositivo regulamentar ou de precedente de uniformização anterior, no âmbito federal, parece legítimo que sejam dados efeitos prospectivos a decisões que optem pela interpretação restritiva, por respeito aos limites claramente definidos pelos artigos 190 e 191 da Lei nº 14.133/2021. Com isso, pode-se estabelecer um período de transição para que os órgãos passem a utilizar a adesão, para novas demandas, apenas em relação às atas de registro de preços já geradas sob o regime jurídico da Lei nº 14.133/2021.
Tal solução possui viés utilitarista, preservando a útil e necessária aplicação da adesão, que seria mitigada caso restrita imediatamente às atas sobre o regime da NLLCA, tendo em vista que poucas ARPs foram publicadas, mesmo no âmbito federal, com a adoção do novo regime.
Além disso, esta solução adere ao modelo consequencialista preconizado pela Lei nº 13.655/2018, que trouxe interessantes dispositivos para a LINDB. Segundo o artigo 23 do Decreto-Lei nº 4.657/1946 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB), com as alterações provocadas pela Lei nº 13.655/2018, ao estabelecermos interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, quando necessário, devemos prever regime de transição para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente, sem prejuízo aos interesses gerais.
A Lei nº 13.655/2018 gerou importante impacto no regime jurídico de direito público, propondo uma configuração consequencialista e pragmática para a atuação administrativa. Marçal Justen Filho bem observa que as alterações na LINDB não apenas impactaram o entendimento dos princípios, mas também orientaram uma abordagem mais dinâmica e contextualizada na sua aplicação prática, refletindo uma evolução na interpretação e efetivação das normas jurídicas”[4].
Na mesma linha, Anderson Pedra explica que o artigo 23 da LINDB ressalta o princípio da segurança jurídica, estipulando que uma nova interpretação de uma norma administrativa não pode ser aplicada retroativamente, convergindo para “proteger a estabilidade das relações jurídicas, impedindo que mudanças interpretativas ocorram de forma a prejudicar situações já consolidadas, promovendo, assim, a previsibilidade e a confiança nas decisões administrativas”[5].
A ideia do legislador, como ponderam Neves e Sundfeld, foi de exigir uma postura consequencialista e pragmática na atuação administrativa, “reconhecendo e abraçando a verdadeira complexidade inerente a essa área”, aceitando que o direito administrativo, em sua aplicação prática, está sujeito a nuances, imprecisões e contingências, demandando uma visão mais flexível e adaptável para lidar com os desafios reais enfrentados na administração pública[6].
Realmente, o referido artigo 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro busca proteger a segurança jurídica e, sob outro prisma, a própria eficiência da atuação administrativa.
Temos a convicção de que a regra de ultratividade normativa justificadora da adesão a uma ata de registro de preços lastreada na legislação já revogada apenas seria dogmaticamente legítima caso a opção por realizar esta contratação tenha ocorrido dentro do período de convivência normativa, sendo irregular tal adesão para demandas surgidas apenas no ano de 2024. Esta se apresenta como a melhor exegese para o §2º do artigo 38 do Decreto Federal nº 11.462/2023, de maneira a que ele respeite os limites definidos pela Lei nº 14.133/2021.
Contudo, diante da evidente dúvida sobre a regra definida pelo regulamento federal, sendo a adesão a atas de registro de preços é um instrumento relevante para contratações ágeis e para a efetivação das pertinentes políticas públicas e sendo fato inconteste que neste início de ano existem disponíveis poucas atas de registros de preços vigentes em 2024, baseadas no regime jurídico da Lei nº 14.133/2021, parece adequado que os órgãos competentes, inclusive de controle, estabeleçam efeitos prospectivos à intepretação neste sentido, com um regime de transição que respeite as adesões feitas de outra forma, até a definição de um marco preciso para que apenas possam ser feitas adesões a atas já regidas pela Lei nº 14.133/2021.
[1] Vide artigo: A utilização das atas de registros de preços baseadas nas Leis n º 8.666/93, 10.520/2002 e RDC, após suas revogações. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/a-utilizacao-das-atas-de-registros-de-precos-baseadas-nas-leis-n-o-8-666-93-10-520-2002-e-rdc-apos-suas-revogacoes/
[2] Novamente, vide conclusão do artigo: A utilização das atas de registros de preços baseadas nas Leis n º 8.666/93, 10.520/2002 e RDC, após suas revogações. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/a-utilizacao-das-atas-de-registros-de-precos-baseadas-nas-leis-n-o-8-666-93-10-520-2002-e-rdc-apos-suas-revogacoes/
[3] TCE/ES; Parecer em Consulta nº 16/2023-Plenário; Processo: TC nº 00879/2023.
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 97.
[5] PEDRA, Anderson Sant’ana. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei n° 14.133, de 1° de abril de 2021 / coordenado por Cristiana Fortini, Rafael Sérgio Lima de Oliveira, Tatiana Camarão. – Belo Horizonte : Fórum, 2022. p. 138
[6] NEVES, Camila Castro; SUNDFELD, Carlos Ari. A nova LINDB e os movimentos de reforma do direito administrativo. Revista Brasileira de Estudos Políticos | Belo Horizonte | n. 126 | pp. 45-80 | jan./jun. 2023. DOI: 10.9732/2023.V126.1075. p. 66