TEMAS RELEVANTES QUANTO AO OBJETO EM CASO DE DISPENSA DE LICITAÇÃO PARA ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA “COVID-19”

19 de junho de 2020

TEMAS RELEVANTES QUANTO AO OBJETO EM CASO DE DISPENSA DE LICITAÇÃO PARA ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA “COVID-19”

Por João Marcelo Rego Magalhães

1. Introdução

Os arts. 4º a 4º-I da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 – aqui designada como “LCv”-, tratam da dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços (inclusive de engenharia) e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (“covid-19”), estabelecendo ainda uma regime especial de mitigação de exigências para habilitação, um procedimento simplificado para o pregão eletrônico aplicável à emergência, a possibilidade do uso de registro de preços e regras especiais para os contratos decorrentes.

2. Alcance do objeto em dispensas para o enfrentamento da pandemia

É preciso fazer uma análise rigorosa do teor do caput do art. 4º da LCv, redigido nos seguintes termos: “É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus…[1].

Em primeiro lugar, a dispensa ocorrerá para aquisição de bens e insumos e para a contratação de serviços, inclusive serviços de engenharia. É de se observar que não foi estendida a possibilidade de dispensa para a execução de obras públicas.

Caso determinado ente federativo tenha declarado estado de calamidade ou emergência, é permitido, desde que o objeto contratado seja pertinente com a situação determinante, realizar licitações pelo regime jurídico da LCv ou nos termos previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 (lei geral de licitações).

Portanto, obras públicas como hospitais, que se enquadrem na urgência causada pela pandemia, podem ter sua licitação dispensada nos termos do art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666, de 1993 (lei geral de licitações), e não pelo art. 4º da LCv.

Entretanto, hospitais de campanha não são considerados como obras, e sim como serviços de engenharia, conforme se observa do exame dos conceitos de obra e serviços contidos no art. 6º da Lei nº 8.666, de 1993:

a) obra – toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta;
b) serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais.

Portanto, como hospitais de campanha são instalações temporárias, que devem ser desmobilizadas ao fim da situação de emergência, seu enquadramento de dispensa pode ter por fundamento a LCv.

No âmbito do governo federal, a contratação de serviços de engenharia para implementação de hospitais de campanha deve atender às ressalvas e recomendações previstas no PARECER REFERENCIAL n. 00020/2020/CONJUR-MS/CGU/AGU.

Em segundo lugar, quando o texto do art. 4º usa a expressão “destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, a interpretação adequada, salvo melhor juízo, é no sentido de que as aquisições e contratações não devem se ater necessariamente a objetos estritamente ligados à área da saúde.

Ocorre que existem bens, insumos e serviços que são contratados para o combate direto à epidemia, como é o caso daqueles ligados à área de saúde (respiradores, máscaras, testes de detecção etc.), e existem aqueles que devem ser contratados em decorrência das medidas de isolamento e quarentena (como seria o caso dos equipamentos de virtualização de salas de aula de escolas públicas e sessões de câmaras municipais). 

Evidentemente, devem as áreas jurídicas apresentar pareceres justificando que houve a necessidade de contratação de bens e serviços em virtude das medidas de enfrentamento e não para o “enfrentamento direto”. Não é razoável entender que neste caso o acessório não segue o principal, pois as medidas de política pública na saúde podem ser mitigadas em sua eficiência se não houver como virtualizar a atuação de serviços públicos essências (escolas e comitês de crise) e as atividades parlamentares.

De toda sorte, caso se adote uma interpretação restrita da LCv, as aquisições e serviços que decorrem do enfrentamento da pandemia podem ser contratos por dispensa nos termos da lei geral de licitações (sem uso das regras da lei especial).

Em terceiro lugar, o teor do caput art. 4º da LCv não trata expressamente de locação de bens e insumos, sendo oportuno realizar uma análise sobre as efetivas condições das contratações em momentos como uma epidemia.

Em algumas situações, as aquisições não serão destinadas a se incorporar ao patrimônio público, mas a atender a uma necessidade puramente temporária de combate à pandemia, o que nos obriga a pensar no conceito de capacidade ociosa. Basta imaginar o caso da virtualização de órgãos públicos e câmaras de vereadores: uma vez que as atividades voltem ao normal, uma quantidade de equipamentos comprados pode ficar sem uso e, assim, ser considerada uma aquisição que violou o princípio da eficiência.

Evidente que equipamentos de saúde e insumos médicos admitem uma certa capacidade ociosa e devem continuar sendo necessários quando a crise passar (em razão de outras doenças e tratamentos), mas os bens destinados à informatização e virtualização de atividades públicas devem ter seu uso concentrado nos meses da epidemia, o que exige ponderação do gestor se vai optar por compra ou aluguel.

De toda sorte, apesar de não haver uma menção expressa à locação, é possível, sem dificuldade, enquadrá-la como prestação de serviços e, assim, contratar o aluguel de bens e serviços para o enfrentamento da pandemia por dispensa, nos termos da lei especial.

3. Formalidades e requisitos aplicáveis à dispensa prevista no art. 4º da LCv

O regime jurídico aplicável à dispensa de licitação previsto na LCv é diferente daquele previsto da lei geral de licitações. A lei de combate à epidemia estabelece um subsistema jurídico aplicável às contratações emergenciais para o combate à pandemia de coronavírus.

A dispensa de licitação a que se refere o caput do art. 4º é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, conforme ato normativo estabelecido por cada ente federativo, observadas as regras gerais da legislação nacional e as recomendações do Ministério da Saúde (vide § 1ºdo art. 4º da LCv).

A aquisição de bens e a contratação de serviços a que se refere o caput do art. 4º da LCv não se restringe a equipamentos novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento do bem adquirido (conforme disposto no art. 4º-A da LCv). Será condição indispensável para a instrução dos processos administrativos, a juntada de declaração de responsabilidade do fornecedor em caso de equipamentos usados.

Por sua vez, o § 2º do art. 4º da LCv tratou de conferir uma relevância especial ao princípio da publicidade; a regra estabelece que “todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição”.

Portanto, assim que o procedimento resultar na assinatura de um contrato, o órgão ou ente deve publicar em sua página na internet as seguintes informações (devidamente atualizadas) e ferramentas de facilitação do acesso â informação:

a) nome do contratado;
b) número de inscrição do contratado na Receita Federal do Brasil;
c) prazo do contrato;
d) valor do contrato;
e) número do processo administrativo de contratação ou aquisição;
f) adotar ferramenta de pesquisa de conteúdo;
g) indicar local e instruções para comunicação com o órgão ou ente licitante.

Já o art. 4º-B da LCv estabelece que algumas condições já estão presumidas, quais sejam:

a) ocorrência de situação de emergência; 
b) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;
c) existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e
d) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.

A redação do art. 4º-B (incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020) dá a entender que a dispensa prevista no art. 4º da LCv não é um tipo autônomo de dispensa, mas um subtipo da dispensa por emergência ou calamidade pública prevista no inciso IV do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993, tendo em conta que a LCv cuidou de estabelecer presunção para todos as condições exigidas para caracterizar a dispensa emergencial da lei geral de licitações.

A presunção estabelecida em na LCv permite que gestores não percam tempo em justificativas óbvias e atrai a aplicação da regra de interpretação contida no caput do art. 22 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Normas do Direito Brasileiro – LNDB): “Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

Todavia, é preciso dizer que a presunção da LCv não é absoluta e o gestor não fica imune de sanção em caso de desvio de finalidade[2].

Uma vez que a redação do art. 4º-B da LCv leva a crer que a dispensa em face da pandemia se trata de um subtipo da contratação emergencial da lei geral de licitações, seria o caso de examinar se as contratações da lei especial também devem atender ao disposto nos incisos II e II do parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666, de 1993: a razão da escolha do fornecedor ou executante e a justificativa do preço. 

Por uma regra de prudência, seria adequado que contratações emergenciais com base na LCv atendessem aos requisitos previstos na lei geral de licitações, mas nada obsta que as assessorias jurídicas ofereçam parecer que justifique a não exigência das medidas do art. 26 da lei geral. No âmbito federal, cabe destacar, a questão já foi enfrentada no Parecer nº 00002/2020/CNMLC/CGU/AGU, da Advocacia-Geral da União[3].

O art. 4º-C estabelece que, em caso de contratações de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência causada pela pandemia de coronavírus, não será exigida a elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns. Como uma medida complementar, o art. 4º-D determina que o Gerenciamento de Riscos da contratação somente será exigível durante a gestão do contrato (elaboração do mapa de riscos), em linha com determinação já existente em normativo aplicável no âmbito federal[4].

Finalmente, o 4º-E da LCv determina que, na instrução dos processos de contratação de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência causada pela pandemia de coronavírus, será admitida a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado.

O conteúdo do termo de referência ou projeto básico simplificado foi descrito no § 1º do art. 4º-E:

a) declaração do objeto;
b) fundamentação simplificada da contratação;
c) descrição resumida da solução apresentada;
d) requisitos da contratação; 
e) critérios de medição e pagamento;
f) estimativas dos preços; 
g) adequação orçamentária.

Foi conferido destaque à estimativa de preços, tendo a LCv estabelecido um procedimento específico para a formação do preço da contratação emergencial, conforme se observa do teor do inciso VI do § 1º do art. 4º-E. A norma especial cuidou de apresentar um conjunto de parâmetros de referência para a obtenção do preço estimado da contratação:

a) Portal de Compras do Governo Federal[5];
b) pesquisa publicada em mídia especializada;
c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo;
d) contratações similares de outros entes públicos; ou
e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores.

Excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, poderá ser dispensada a estimativa de preços (conforme previsto no § 2º do art. 4º-E). Essa opção deve ser evitada a todo custo, sendo preferível sempre a tentativa de obtenção de preços, ainda que sem resultados efetivos.

Os preços obtidos a partir dos parâmetros de que trata a LCv não impedem a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos. Essa á a regra contida no § 3º do art. 4º-E (“os preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do caput não impedem a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos”).        

A aplicação do § 3º do art. 4º-E, além de excepcional, exigirá instrução processual que comprove que os preços contratados estavam acima dos valores pesquisados por imperativo da dinâmica de mercado, comprovada a forte demanda pelo objeto adquirido ou a variação cambial, dentre outros fatores. 

 Por aplicação analógica e suplementar, sempre com o exame e a ratificação do respectivo órgão jurídico, gestores estaduais e municipais podem adotar as regras da Instrução Normativa nº 5, de 27 de junho de 2014, do Ministério do Planejamento do, que em seu art. 2º traz diversas regras aplicáveis à formação de preços nas contratações federais:

a) os parâmetros previstos poderão ser utilizados de forma combinada ou não, devendo ser priorizados o Painel de Preços (do Portal de Compras do Governo Federal)[6] e as contratações similares de outros entes públicos, demonstrado no processo administrativo a metodologia utilizada para obtenção do preço de referência;

b) serão utilizados, como metodologia para obtenção do preço de referência para a contratação, a média, a mediana ou o menor dos valores obtidos na pesquisa de preços, desde que o cálculo incida sobre um conjunto de três ou mais preços, oriundos de um ou mais dos parâmetros adotados neste artigo, desconsiderados os valores inexequíveis e os excessivamente elevados;

c) os preços coletados devem ser analisados de forma crítica, em especial, quando houver grande variação entre os valores apresentados;

d) para desconsideração dos preços inexequíveis ou excessivamente elevados, deverão ser adotados critérios fundamentados e descritos no processo administrativo;

e) excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, será admitida a pesquisa com menos de três preços ou fornecedores.

 


[1] Súmula nº 177 do Tribunal de Contas da União (TCU): “A definição precisa e suficiente do objeto licitado constitui regra indispensável da competição, até mesmo como pressuposto do postulado de igualdade entre os licitantes, do qual é subsidiário o princípio da publicidade, que envolve o conhecimento, pelos concorrentes potenciais das condições básicas da licitação, constituindo, na hipótese particular da licitação para compra, a quantidade demandada uma das especificações mínimas e essenciais à definição do objeto do pregão.”.

[2] Vide questões relativas à dispensa de licitação no Acórdão Tribunal de Contas da União (TCU) 1130/2019 – 1ª Câmara, de 05.02.2019.

[3] Nesta manifestação da Advocacia-Geral da União consta o entendimento de que não há uma obrigação de aplicação analógica do art. 26 da lei geral de licitações. Todavia, ainda permanecem as obrigações de justificar a escolha do fornecedor e a justificativa do preço; a primeira em face dos princípios da impessoalidade e da motivação, e a segunda porque o tema é devidamente tratado no art. 4º-E (§ 1º, inciso VI) da LCv.

[4] Conforme disposto no art. 20 da Instrução Normativa MPDG nº 5, de 26 de maio de 2017.

[5] https://www.comprasgovernamentais.gov.br/.

[6] https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/painel-de-precos.


AUTOR:

João Marcelo Rego Magalhães
Doutor em Direito. Procurador do Banco Central do Brasil, atuando na consultoria administrativa. Professor da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

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