Para além da violência: Mulheres, vulnerabilidades e o poder regulatório das contratações públicas

8 de março de 2024

Anastácia Melo
Daiesse Jaala

 

No dia 08 de março, comemora-se o Dia Internacional da Mulher e, embora a celebração seja uma oportunidade de reconhecer as conquistas e contribuições das mulheres ao longo da história, também serve como um chamado à ação para abordar os obstáculos que persistem na luta contra a violência de gênero.

Neste contexto, é crucial destacar a interconexão entre a vulnerabilidade, o trabalho e a luta contra a violência direcionada às mulheres. A conquista da autonomia econômica emerge como um instrumento poderoso para romper o ciclo de abuso que muitas mulheres enfrentam.

Ao garantir que essas mulheres tenham acesso a oportunidades de emprego, crescimento profissional e recursos financeiros, promove-se não apenas a dignidade humana, mas também uma base sólida para desfazer os laços de dependência que frequentemente perpetuam situações de abuso.

Os dados no Brasil são alarmantes. De acordo com o levantamento disponibilizado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023[1], foram registradas mais de 245 mil agressões por violência doméstica no último ano; mais de 600 mil ameaças e cerca de 900 mil chamados ao 190, o que representa 102 chamados por hora.

Com efeito, o direito à vida, a dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais são valores e princípios consagrados na nossa Carta Magna, o que estabelece o arcabouço moral e ético para a construção de uma sociedade justa e solidária. Além disso, o Brasil aderiu a importantes tratados internacionais de direitos humanos, destacando-se, entre eles, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995, no âmbito da OEA, e a convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher ratificada pelo Brasil em 1984

Nesta temática, a Lei Maria da Penha, publicada em 07 de agosto de 2006, representa importante marco legal no combate à violência contra as mulheres e cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar. Sua importância transcende o âmbito jurídico, impactando a cultura, a sociedade, a segurança pública, a saúde pública e a conscientização coletiva sobre a necessidade de erradicar a violência de gênero.

Quase 20 anos após a edição da Lei Maria da Penha, o cenário ainda é estarrecedor, inclusive com indicadores demonstrando um agravamento do problema, diante do cenário pandêmico e de isolamento social que ampliou os casos de violência doméstica e familiar.

É importante destacar ainda a necessária correlação do tema com a Agenda 2030 e os objetivos do desenvolvimento sustentável, adotados pelos Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU). Trata-se de um compromisso global para enfrentar desafios urgentes e promover um desenvolvimento sustentável, respaldado pelo conceito de solidariedade intergeracional, que leve em consideração não apenas o progresso econômico, mas também a equidade social e a proteção ambiental.

Cumpre salientar que cada um desses objetivos é acompanhado por um conjunto de direções específicas, consubstanciado em 169 metas, a partir de uma abordagem estratégica para garantir uma implementação transversal, detalhada e mensurável da Agenda 2030.

Destaca-se, nesse sentido, o ODS 5, que visa alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Este ODS abrange diversas dimensões, incluindo o combate à discriminação, a eliminação de todas as formas de violência contra as mulheres e a adoção e fortalecimento de políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero.

Não há dúvidas sobre a validação interna e externa no cenário jurídico acerca da promoção de iniciativas públicas que estejam voltadas ao combate à violência contra as mulheres e, desse modo, o poder regulatório do Estado por meio das contratações governamentais assume relevância crucial, tendo em vista o volume de recursos vinculados às compras públicas.

A utilização da legislação concernente às licitações e contratos como instrumento de transformação social não é algo novo e já tínhamos na norma anterior, Lei 8.666/93, a previsão de que a licitação se destina a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.

No âmbito da nova lei de licitações, Lei 14.133/2021, temos não apenas a sustentabilidade como princípio, mas também como objetivo do processo licitatório, a permear todas as contratações públicas. É importante indicar que os pilares da sustentabilidade repousam nos aspectos ambientais, econômicos, sociais, éticos, culturais e políticos.

Não por outro motivo, escolheu o legislador estabelecer no artigo 25, §9º da Nova Lei de Licitações, norma destinada às mulheres vítimas de violência doméstica, prevendo que o edital poderá exigir, nas contratações de mão de obra em contratos de serviços contínuos, percentual mínimo provido por mulheres desse grupo social.

O governo federal, atendendo à necessidade de regulamentação, publicou o Decreto nº 11.430, de 08 de março de 2023, estipulando o percentual mínimo de 8% de mão de obra constituída por mulheres vítimas de violência doméstica e, também dentro do mesmo normativo regulamentador, previu que o desenvolvimento de promoção da equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho será utilizado como critério de desempate nas licitações conduzidas pela Administração Pública Federal.

Por oportuno, cumpre salientar que a regulamentação também abrange mulheres trans, travestis e outras identidades de gênero feminino, ao mesmo tempo em que orienta as empresas a dar prioridade à contratação de mulheres pretas e pardas. Essa priorização registrada no ato regulamentador é respaldada pelos indicadores sociais que demonstram a posição de vulnerabilidade exacerbada entre mulheres pretas e pardas. Apenas no ano de 2023, foram registrados 1.437 feminicídios, nos quais 61,1% eram de mulheres negras[2]. Além disso, a população negra representa, entre as pessoas com os 10% maiores rendimentos[3], apenas 28%, situação que revela piores indicadores econômicos.

Contudo, ao abordar a contratação, no contexto das terceirizações, de mulheres vítimas de violência doméstica, é crucial não apenas reconhecer a importância da medida e seus impactos positivos, mas também destrinchar os desafios para operacionalização dessas iniciativas. Sem dúvida, a implementação eficaz da política pública referida requer uma abordagem sistêmica, sensível e adaptável às nuances dessa realidade.

Há alguns pontos que merecem destaque nessa teia complexa de desafios.

As entidades públicas precisam estabelecer um fluxo adequado e viável para operacionalização dessa política, com a definição dos atores envolvidos e dos papeis do órgão contratante, da empresa contratada e da unidade responsável pela política pública de atenção a mulheres em situação de violência doméstica e familiar, no âmbito de cada estado.

Outrossim, é absolutamente necessário o cuidado com o sigilo das informações sobre essas mulheres, a partir da adequada estruturação do acesso e manejo desses dados, a fim de evitar o estigma social que representa uma barreira invisível e dificulta integração nos ambientes profissionais. Além disso, a confidencialidade desses dados representa relevante medida de segurança e proteção para integridade física e emocional das vítimas, conforme define a Lei Geral de Proteção de Dados.

A empresa contratada enfrenta ainda o desafio de desenvolver sistemas de seleção e avaliação que sejam sensíveis às experiências vivenciadas por mulheres que sofreram violência doméstica. O Estado, por sua vez, com estimada colaboração do setor privado, deve dedicar a necessária atenção na promoção de política pública correlata de ações de capacitação para ampliar o número de mulheres aptas a desempenhar as funções requeridas.

Outro ponto de grande relevância se refere ao monitoramento em relação ao cumprimento da reserva de vagas durante toda a execução contratual. É preciso definir a responsabilidade de cada ator institucional, de modo a coibir fraudes e evitar informações errôneas que representem uma barreira à permanência dessas mulheres no mercado de trabalho. A coleta de dados fidedignos é essencial para aprimorar e efetivar a política pública em comento. Com efeito, a falta de um processo de monitoramento adequado pode resultar em iniciativas bem-intencionadas, mas ineficazes.

Nesse contexto, assume especial relevância a missão constitucional dos Tribunais de Contas, que podem ser importantes aliados e induzir o alcance desejável na implementação e execução de políticas públicas, por meio de auditorias que avaliem os editais de licitação e o cumprimento das cláusulas contratuais, além de auditorias que visem aferir o desempenho da gestão governamental.

Quanto à previsão indicada no Decreto 11.430 sobre o acordo de cooperação entre o Ministério da Gestão e Inovação e Ministério das Mulheres com as unidades responsáveis pela política pública de atenção a mulheres vítimas de violência doméstica, entendemos haver a necessidade de eventual padronização acerca da unidade responsável pela operacionalização na estrutura governamental e, nesse sentido, compreendemos que os OPMs – “Organismos de Política para Mulheres” , estaduais e municipais, são os órgãos de gestão, responsáveis pela criação, implementação e execução de políticas públicas voltadas para garantir os direitos humanos das mulheres e promover a igualdade de gênero.

Seriam responsáveis pelo cadastramento dos dados pessoais e profissionais, encaminhamento dos dados às empresas contratadas, após envio da relação pelo ente público contratante; além do necessário monitoramento dessa política, para garantir a preservação do percentual mínimo previsto na norma ao longo da execução contratual.

Claro que é possível desenhar outros formatos de operacionalização advindos de parcerias com outros órgãos, a exemplo dos Tribunais de Justiça e Ministério Público.

Um ano após a publicação do decreto, o cenário nacional demonstra que os entes públicos têm tido dificuldades para efetivação da medida. Por outro lado, existem também boas práticas que podem servir como paradigma, tomando como referência, a título de exemplo, a experiência do Senado Federal que, a partir do ano de 2016, implementou o Programa de Assistência a Mulheres em Situação de Vulnerabilidade Econômica em Decorrência de Violência Doméstica e Familiar, através do Ato da Comissão Diretora nº 4.

Este programa reserva um percentual específico de vagas para mulheres que se enquadram nas condições do programa, desde que atendam aos requisitos essenciais, e prevê a confidencialidade da identidade das colaboradoras após a efetivação do contrato.

Vale salientar que a regulamentação do Senado Federal indica a possibilidade dessa medida também no âmbito das contratações diretas e definem a vulnerabilidade econômica como fator preponderante para seleção dessas mulheres, dois pontos que, a nosso ver, merecem também guarida na regulamentação da administração pública federal.

Em conclusão, a contratação pública, quando acompanhada por medidas de inclusão e apoio, pode desempenhar um papel vital na reintegração dessas mulheres na sociedade, proporcionando ascensão socioeconômica, a restauração da autoestima e o fortalecimento do senso de independência com a interrupção do ciclo de abuso. Além disso, essa política significa uma oportunidade valiosa para estimular empresas e órgãos públicos a desenvolver ações de sensibilização e capacitação sobre violência de gênero e estruturar espaços de apoio, suporte e acolhimento.


[1] Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf

[2] Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf

[3][3] Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101972_informativo.pdf

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