Jandeson da Costa Barbosa

Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Membro da Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União. Escritor de obras e artigos jurídicos. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas, do Ceub. Professor de Licitações e Contratos.

A Lei de Licitações e Contratos Administrativos (LLCA – Lei 14.133/2021) – e aqui me permitam não a chamar mais de “Nova” – reproduziu quase que na literalidade o dispositivo da revogada Lei (8.666/1993) que tratava da contratação de profissional do setor artístico por inexigibilidade de licitação. Vejamos:

Lei 8.666/1993:

Art. 25.  É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: […]

III – para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.

Lei 14.133/2021:

Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de: […]

II – contratação de profissional do setor artístico, diretamente ou por meio de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública;

A disciplina geral sobre o tema também permaneceu praticamente intacta. Grande parte dos acréscimos na sistemática desse tipo de contratação é apenas a inclusão no texto legal daquilo que já estava consolidado na jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) e demais cortes de contas, bem como já estava expresso em diversos atos normativos regulamentares. Essa observação é importante porque nos autoriza a transportar, praticamente sem perdas, grande parte da jurisprudência e dos trabalhos doutrinários que enfrentaram o tema nos tempos de Lei 8.666/1993.

Contudo, o leitor mais atento vai perceber que a doutrina, e sobretudo a jurisprudência, sobre o tema são escassas e costumam tratar repetidamente apenas de pontos específicos, como é o caso do famoso requisito da necessidade de o contrato de exclusividade do empresário não se limitar a data ou evento específico, bem como de o contrato respectivo ter firma reconhecida em cartório[1]. Essa escassez de referências é causa de transtorno para os servidores públicos e licitantes que atuam na área.

Nessa senda, o presente artigo busca enfrentar – com a sinteticidade que o formato impõe – a questão da identificação da fração do espetáculo, show ou evento que pode ser contratada pela inexigibilidade de licitação apontada no art. 74, II, da LLCA. Em termo mais práticos, pretendemos demonstrar quais objetos deverão ser submetidos ao procedimento licitatório, não podendo ser contratados “conjuntamente” com o artista.

Como “o óbvio necessita ser dito”[2], comecemos nossa análise destacando que o que se contrata por inexigibilidade é o “profissional do setor artístico”, a sua performance, pois é ela que é “insuscetível de competição, quando contratado com profissional já consagrado…”[3]. Nesse ponto, merece destaque a lição de Jorge Ulysses Jacoby Fernandes, segundo a qual “A lei refere-se à contratação do profissional artista, excluindo da possibilidade da contratação direta os artistas amadores”[4].

Portanto, é de rigor asseverar que, através do método dedutivo, chega-se à compreensão de que, em regra, não podem ser contratados por inexigibilidade de licitação aspetos ligados à logística do evento, tais como palco, iluminação, sistema de som, segurança, dentre outros. Isso porque o que legitima a contratação direta do artista consagrado é a inviabilidade de competição decorrente da impossibilidade de se comparar objetivamente as performances artísticas.[5] Ora, em regra, é perfeitamente possível comparar objetivamente esses objetos acessórios.

Se “não há inviabilidade de licitação nos casos de contratação de empresa para intermediar contratação de artistas”[6], será ainda mais viável a realização do certame para contratação da logística e demais objetos acessórios necessários à apresentação artística. Aqui, não custa lembrar que “a notória especialização deve ser avaliada em relação à banda de música contratada e não em relação à empresa que a representava”[7].

Objetos acessórios, no contexto de contratações públicas para eventos como shows ou apresentações artísticas, referem-se a serviços ou produtos que não constituem o núcleo central da contratação, mas que são necessários para complementar, facilitar ou viabilizar a realização do evento principal. Esses objetos são considerados extrínsecos ao objeto principal da contratação, pois, embora não sejam o foco da contratação, ajudam a garantir que o evento possa ocorrer de forma satisfatória.

Citamos como exemplos de objetos acessórios: estruturas físicas e montagens, tais como palcos, tendas, cadeiras, banheiros químicos e outras infraestruturas temporárias; serviços de apoio, como segurança, limpeza, serviços médicos de emergência, e gestão de tráfego no local do evento; equipamentos de som e iluminação que não sejam exclusivamente especificados pelo artista como necessários para sua performance, mas que são essenciais para a realização do evento; fornecimento de comidas e bebidas para o público ou para equipes trabalhando no evento; decoração e ambientação, itens decorativos ou de cenografia que contribuem para a atmosfera ou tema do evento.

Embora os objetos acessórios não sejam o principal motivo da contratação, eles são cruciais para o sucesso do evento. A falta de atenção à qualidade e adequação desses serviços ou produtos pode afetar negativamente a experiência dos participantes e a segurança do evento. Por isso, a seleção e contratação desses elementos devem seguir os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, e, quando aplicável, a competição, por meio de licitação.

Importante destacar, portanto, que a contratação de objetos acessórios deve, em regra, ser realizada de forma separada da contratação do artista consagrado, sendo submetidos à competição no regular processo de licitação. Em regra porque, excepcionalmente, tais elementos podem ser indissociáveis à performance do artista. Nesse contexto, é útil classificarmos as contratações necessárias para a realização desse tipo de evento como intrínsecas ou extrínsecas.

As contratações intrínsecas e extrínsecas referem-se, respectivamente, aos serviços ou produtos que são essenciais (intrínsecos) ou não essenciais (extrínsecos) ao objeto principal da contratação. No contexto de um show ou evento artístico, isso pode ser aplicado para distinguir entre o que é fundamental para a realização do evento e o que é complementar ou acessório.

Assim, podemos definir contratações intrínsecas como aquelas diretamente relacionadas ao objeto central da contratação. Para um show, incluiriam o cachê do artista, banda ou grupo, que é o serviço principal buscado, bem como possíveis elementos que são indispensáveis para a performance do artista. A título de exemplo, cito a contratação de iluminação para o evento. Em regra, essa contratação deverá ocorrer por licitação. Todavia, é possível que uma apresentação artística específica tenha como elemento indissociável, por exemplo, um diferenciado jogo de luzes cujo conjunto seja incomum no mercado, e que fora fabricado especificamente para aquela apresentação.

Costumam ser indissociáveis à contratação do artista, ainda, o figurino, cenários peculiares e específicos, objetos de cena específicos, certos instrumentos musicais, dentre outros. Também podem ser considerados intrínsecos objetos auxiliares e de valor comparativamente insignificantes, como passagens aéreas e hospedagem, alimentação específica dos artistas, e outros objetos menores de caráter pessoal, isso por conta da razoabilidade e da racionalidade administrativa. Ainda, assim, é necessário lembrar que “mesmo quando inexigível a contratação, é necessária a apresentação de justificativa de preço”[8].

Noutro giro, contratações extrínsecas referem-se a serviços ou produtos que, embora contribuam para a realização ou melhoria do evento, não são essenciais para a execução do objeto principal. No contexto de um show, podem incluir os itens acessórios já mencionados como serviços de segurança, limpeza, montagem de estruturas adicionais como tendas para áreas de alimentação, entre outros.

Separada a contratação artística dos objetos extrínsecos, estes devem contratados por licitação de forma parcelada ou não, de acordo com análise dos elementos contidos no art. 40, § 2º, da LLCA. Impende lembrar, por fim, que a “decisão pelo parcelamento ou não da contratação é um dos aspectos mais sensíveis e quem tem o potencial de causar irregularidades na fase de planejamento da contratação”[9].

Portanto, a chave para determinar se um objeto é intrínseco ou extrínseco à contratação do profissional artista, e se ele pode ser contratado por inexigibilidade conjuntamente com este último, reside na análise da natureza essencial do serviço ou produto em relação ao objeto principal do evento e se existe ou não a possibilidade de competição. A Administração Pública deve justificar detalhadamente a correlação, especificidade e caráter intrínseco do objeto para que este possa ser contratado no bojo do mesmo processo de inexigibilidade de licitação do artista.

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Jandeson da Costa. Elaboração de ETP e TR eficientes com o ChatGPT em contratações públicas. Fortaleza: Virtú, 2023.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1.370/2012-Primeira Câmara.

_______. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2.730/2017-Plenário.

_______. Tribunal de Contas da União. Acórdão 3991/2023-Segunda Câmara.

_______. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1341/2022-Segunda Câmara.

_______. Tribunal de Contas da União. Acórdão 3322/2019-Segunda Câmara.

_______. Tribunal de Contas da União. Acórdão 96/2008-Plenário.

_______. Tribunal de Contas da União. Acórdão 12148/2018-Segunda Câmara.

_______. Tribunal de Contas da União. Acórdão 351/2015-Segunda Câmara.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 36. ed.

DOYLE, Arthur Conan. O cão dos Basckerville. Tradução de: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

FERNANDES Jorge Ulysses Jacoby. Contratação Direta sem licitação. 9ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023.

TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023.

[1] Ver os seguintes julgados do Tribunal de Contas da União: Acórdão 3991/2023-Segunda Câmara. Acórdão 1341/2022-Segunda Câmara. Acórdão 3322/2019-Segunda Câmara. Acórdão 96/2008-Plenário. Acórdão 12148/2018-Segunda Câmara. Acórdão 351/2015-Segunda Câmara.

[2] DOYLE, Arthur Conan. O cão dos Basckerville. Tradução de: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 34.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 36. ed., p. 414.

[4] FERNANDES Jorge Ulysses Jacoby. Contratação Direta sem licitação. 9ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 615.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2.ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2023, p. 1011.

[6] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2.730/2017-Plenário.

[7] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1.370/2012-Primeira Câmara.

[8] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023, p. 438.

[9] BARBOSA, Jandeson da Costa. Elaboração de ETP e TR eficientes com o ChatGPT em contratações públicas. Fortaleza: Virtú, 2023, p. 46.

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