O inverno da requisição administrativa
Fazê-la de modo precoce e sem imediato pagamento justo pode prejudicar toda a logística contra o vírus
Bradson Camelo e Marcílio Franca*, O Estado de S.Paulo
07 de abril de 2020 | 04h00
As guerras napoleônicas tiveram um ponto de inflexão na desastrosa invasão da Rússia, quando os russos, em situação inferior, deixaram o severo inverno destruir os franceses por desmobilizar sua capacidade logística. Ficou a lição que alguns parecem não ter aprendido: mesmo na guerra, deve-se manter o fluxo de bens e serviços essenciais. É a economia de guerra, estúpido.
Sem entrar nos aspectos constitucionais (art. 5.º, XXV, e art. 22, III, da Constituição federal) e legais (art. 15, XIII da Lei 8.080/90; e art. 3.º, VII da Lei 13.979/20) da possibilidade da requisição administrativa, ela traz grande prejuízo na batalha contra o coronavírus, se utilizada indiscriminadamente, podendo acabar com toda a logística de insumos indispensáveis.
A ideia básica do instituto da requisição administrativa é que, em situação de emergência, o Estado use os bens privados para resguardar o interesse público e depois devolva, com indenização em caso de dano. Salus populi suprema lex esto, diz Cícero no De Legibus. O leitor deve estar pensando que este é exatamente o caso, ainda mais quando alguns fornecedores se aproveitam da situação para vender muito acima do preço de mercado. Mas, de fato, isso seria como abrir uma caixa de Pandora.
A pergunta que orienta este texto é se os vários Estados e municípios (como também o governador de Nova York, Andrew Cuomo) que editaram decretos de requisição administrativa já combinaram com os eventuais fornecedores que terão os bens requisitados, para que esses ofertantes continuem no mercado. Já?
“O senhor combinou tudo isso com os russos?”, como famosa anedota de Garrincha na Copa de 58, depois de o técnico Feola descrever uma jogada ensaiada contra a URSS.
Uma vez que se trata de decisões relacionadas (a do ente público e a do fornecedor), vamos usar a teoria dos jogos para analisar o cenário. Modela-se, assim, um jogo entre o Estado, cujo objetivo é ter equipamentos para enfrentar a pandemia, e os fornecedores, cuja meta é ter lucro. Como a previsão é de que essa guerra persista, trata-se de um jogo repetitivo. Por fim, vale ressaltar que o Estado tem informação fiscal sobre o valor original dos insumos e os preços de venda.
O Estado começa o jogo e tem duas estratégias: comprar (sabendo os preços praticados) ou requisitar (com indenização posterior). Se há compra, o fornecedor continuará a ofertar na rodada seguinte; caso haja requisição, dificilmente o fornecedor se manterá no mercado, por falta de fluxo de caixa ou por causa do pagamento abaixo do valor de mercado. Se fosse para pagar o valor de mercado, o Estado compraria, e não requisitaria. A conduta racional do comerciante não é nociva à sociedade, muito pelo contrário. Ele é apenas um soldado que não quer morrer na batalha.
Neste jogo do fornecimento fica claro que, se o ente público requisita de modo precoce e sem pagamento justo imediato, acaba com a oferta, prejudicando toda a logística contra o vírus. A melhor estratégia para o ente público seria a requisição apenas se fosse um jogo sem repetição ou perto do fim. Infelizmente, não é o caso.
Nosso passado indica que intervenções desastradas no mercado causam escassez e mercado paralelo. Pior que preço alto é simplesmente não ter a opção de compra. Contra preço abusivo, cartelização ou desrespeito ao consumidor, há instrumentos jurídico-normativos mais eficientes. Em última instância, os crimes contra a economia popular. O poder do Estado é forte o bastante para não ser desperdiçado.
Não podemos perder a luta contra a covid-19 por usar uma estratégia que acaba com nossa logística. Não custa repetir: nos termos constitucionais, a intervenção sobre o exercício de atividades econômicas é excepcional! Que o inimigo seja o coronavírus, e não o inverno de nossos decretos.
*PROCURADORES DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, ESTUDANTE DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA UNIVERSIDADE DE CHICAGO E PROFESSOR VISITANTE DA UNIVERSIDADE DE TURIM, ITÁLIA
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