NORMAS GERAIS X NORMAS NÃO GERAIS NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES

15 de setembro de 2022

A Lei nº 14.133/2021 firma-se como Nova Lei Geral de Licitações e Contratos, cumprindo a competência legislativa estabelecida pela Constituição Federal, em seu artigo 22.

Em seu artigo primeiro, a referida Lei define que “estabelece normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Contudo, importante observar que esta Lei não possui regras de conteúdo apenas geral, mas também específico, o que repercutirá na amplitude de sua aplicação obrigatória, pelo demais entes.

É evidente que o texto legal, de forma até mais intensa do que outrora fora feito pela Lei nº 8.666/93, avançou para definir regramentos específicos, detalhando procedimentos, indicando competências, entre outros pormenores. Admitir que a regra do artigo 1º guindaria esses dispositivos materialmente específicos à qualidade de norma geral permitiria que o legislador federal ordinário conspurcasse a competência legislativa privativa definida pelo Constituinte (restrita apenas às normas materialmente gerais), avançando sobre matéria (específica) outorgada aos demais entes federativos e, por conseguinte, afrontando o próprio princípio da autonomia federativa.

Em suma, se o Constituinte definiu que a competência privativa do legislador federal para tratar sobre licitações se restringia apenas às normas gerais, não pode o legislador federal extrapolar esse limite, com o artifício de classificar todas as suas regras como gerais, mesmo quando evidentemente possuem caráter materialmente específico. Admitir isso seria prestigiar o legislador federal, em detrimento do Constituinte.

Bom lembrar que esse artifício, de classificar todas suas regras como gerais, também foi utilizado na Lei nº 8.666/93, o que não impediu que a Jurisprudência, a doutrina e a inventividade de algumas unidades da Federação desmentissem a veracidade dessa classificação legal generalizada.

Como exemplo, a Lei de licitações aprovada pelo Estado da Bahia (Lei nº 9.433, de 01 de março de 2005) que, respeitando as regras gerais da Lei nº 8.666/93, avançou em relação a algumas regras materialmente específicas, como, por exemplo, a inversão de fases na modalidade concorrência, com a fase de propostas precedendo a fase de habilitação (modelagem que passou a ser utilizada pela Lei nº 14.133/2021, para sua Concorrência).

Diante de seu caráter demasiadamente analítico, é imperioso enfrentar a indagação: quais seriam as normas gerais e quais as normas não gerais dentre os dispositivos da Lei nº 14.133/2021?

A resposta a essa indagação não é simples; pelo contrário, é deveras complexa e exige não apenas uma análise cuidadosa da disposição legal, como também uma compreensão da realidade vivenciada pelos destinatários da norma, a realidade posta atualmente e as consequências práticas de uma ou outra classificação.

Certamente, é possível distinguir disposições que de maneira clara se apresentam como materialmente gerais, bem como disposições que manifestamente não parecem deter tal condição.

Neste quadrante, por exemplo, podemos defender que a criação de modalidades licitatórias, regras de restrição à participação na licitação, parâmetros gerais de habilitação, critérios de adjudicação, exceções à obrigatoriedade de licitar, criação de sanções administrativas e as prerrogativas extraordinárias características ao contrato administrativo, caracterizam-se claramente como normas materialmente gerais.

Por outro lado, regras procedimentais específicas, formatos da comissão de contratação, denominações das comissões e de funções administrativas, definição de competências administrativas internas, manifestamente se caracterizam como normas materialmente não gerais (específicas), não admitindo-se, sem desrespeito à Constituição, que a União suprima a autonomia legislativa dos demais entes da federação.

Contudo, há um grande leque de disposições identificadas na Lei que exigirão maior reflexão para que se construam soluções corretas em relação a esta classificação. Em alguns casos, inclusive, as soluções podem, por diferentes detalhes ou diferentes circunstâncias, alcançar conclusão diferente do que fora feito em relação a dispositivos semelhantes, da legislação anterior.

De qualquer forma, diante de eventual lacuna da Lei Federal, é importante resguardar como normas materialmente não gerais (específicas) as leis locais, no âmbito de Estados, Municípios e DF, que proponham inovações, aperfeiçoando a legislação geral, desde que compatíveis com as normas gerais estabelecidas.

Como bem pontuou o Ministro Fux, em voto prolatado na ADI 3059, “o conceito de “norma geral” é essencialmente fluido, de fronteiras incertas, o que, embora não o desautorize como parâmetro legítimo para aferir a constitucionalidade de leis estaduais, distritais e municipais, certamente requer maiores cautelas no seu manejo”. Esse dilema, segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal, deve ser compreendido com respeito à opção constitucional de federalismo, resguardando espectro de atuação legislativa pelas demais esferas federalistas, para tratar sobre o tema. Assim, qualquer leitura exagerada do conceito constitucional de norma geral “milita contra a diversidade e a autonomia das entidades integrantes do pacto federativo, em flagrante contrariedade ao pluralismo que marca a sociedade brasileira”, contribuindo também para “asfixiar o experimentalismo local tão caro à ideia de federação”[1].

Quando a União, em sua Lei, tratar sobre normas materialmente específicas, simplesmente estará legislando apenas para seus órgãos e entidades federais, não necessariamente vinculando estados e municípios, que podem acatar a aplicação de tais disposições ou legislar em sentido diferente. Por outro turno, quando a lei federal estiver tratando sobre normas materialmente gerais, a União legislará para todas as esferas federativas, não competindo aos estados, municípios e DF suplementar a matéria.

Concordamos com o raciocínio cristalizado no voto do Ministro Carlos Velloso, ao firmar que “a competência da União é restrita a normas gerais de licitação e contratação. Isto quer dizer que os Estados e os Municípios também têm competência para legislar a respeito do tema: a União expedirá as normas gerais e os Estados e Municípios expedirão as normas específicas”[2]. Esse raciocínio não compromete a competência da União, enquanto ente da federação, de estabelecer regras materialmente específicas sobre licitações e contratos para seus órgãos e entidades federais, mas respeita a autonomia que o Constituinte reservou aos demais entes desta Federação.

[1].       STF. Trecho de voto do Ministro FUX, na ADI 3059/RS. Plenário, Julg. 09/04/2015.

[2].       STF. Voto do Ministro Carlos Velloso. Relator. ADI-MC nº 927.


AUTOR:

Ronny Charles L. de Torres
Advogado da União. Doutorando em Direito do Estado pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Pós-graduado em Direito tributário (IDP). Pós-graduado em Ciências Jurídicas (UNP). Membro da Câmara Nacional de licitações e contratos da Consultoria Geral da União. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (12ª Edição. Ed. JusPodivm);

*Texto baseado em trecho da 12ª edição do nosso livro Leis de licitações públicas comentadas. 

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