Por Luciano Ferraz
Nos dias 10/9/2023 e 2/11/2023, publiquei duas colunas aqui nesta ConJur, que trataram do alcance da retroatividade da Lei 14.230/21, responsável pela reforma da Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa (LIA).
Em ambos os textos, procurei demonstrar que o julgamento do Tema 1.199 pelo Supremo Tribunal Federal tinha o condão de estender, para além dos atos de improbidade administrativa na modalidade culposa, a tese da retroatividade média ou mitigada [1], fazendo com que sua ratio decidendi servisse também para solucionar adequadamente outras controvérsias sobre a aplicação da nova lei no tempo, ainda que não pela sistemática processual da repercussão geral.
Abolitio criminis
Entre a publicação dos dois textos, a 2ª Turma do STF apreciou, em 24/10/2023, o ARE 1.346.594 (relator: ministro Gilmar Mendes), e decidiu que o artigo 11 da LIA, após o advento da nova lei, não mais admitia tipificação genérica (baseada em princípios), sem que houvesse simultaneamente capitulação da conduta nos incisos arrolados no caput do novo dispositivo, vencido apenas o ministro Edson Facchin [2].
De igual modo, em 7/11/2023, a 1ª Turma do STF julgou, por unanimidade, o RE 1.452.533 (relator: ministro Cristiano Zanin), considerando que o entendimento firmado no Tema 1.199 aplicar-se-ia ao caso de ato de improbidade administrativa fundado no revogado artigo 11, I, da Lei nº 8.429/1992, desde que não houvesse condenação com trânsito em julgado [3].
As decisões da Suprema Corte utilizaram como base o Tema 1.199, para reconhecer a inviabilidade da tipificação de condutas, antes potencialmente ilícitas, em disposições revogadas da Lei 8.429/92, assegurando uma espécie de abolitio criminis proveniente das alterações trazidas pela Lei 14.230/21.
Princípios da tipicidade e não-ultratividade
A posição do STF é coerente com os conceitos técnicos de tipicidade [4] e não-ultratividade da lei antiga em matéria de direito punitivo [5]. É que sem determinação expressa do legislador, não há que se falar em tipificação de condutas que deixaram de ser enquadradas como atos de improbidade administrativa pela nova lei.
Multa civil e proibição de contratar
Esse mesmo raciocínio vale ao desiderato de esquadrinhar a categoria de sanções a que se vinculam os juízes no momento de aplicar a pena nas ações de improbidade administrativa, conforme previsão dos atuais incisos I, II e III do artigo 12 da Lei 8.429/92 (nova redação).
Tome-se como exemplo o artigo 12, III da LIA, com a redação dada pela Lei 14.230/21, que prevê:
“Art. 12. Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
III – na hipótese do art. 11 desta Lei, pagamento de multa civil de até 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 4 (quatro) anos;”
Na comparação com a antiga redação, as condutas enquadráveis no artigo 11 da nova LIA, seja antes ou depois da Lei 14.230/21, tanto faz, passaram a ser punidas exclusivamente com multa civil e proibição de contratar ou receber benefícios fiscais ou creditícios do Poder Público, não, porém, com a perda da função pública e/ou a suspensão dos direitos políticos (anteriormente previstas) [6].
Conclusão
Se tais sanções foram excluídas do tipo, não podem mais servir de base para a punição dos réus, simplesmente porque as penas deixaram de existir como consequência da subsunção da conduta, nos moldes do artigo 11 c/c o artigo 12, III da LIA. É essa uma exigência curial da noção jurídica de tipicidade dos delitos e das penas.
Em outros termos, o que se quer significar é que, sem ultratividade da lei antiga, não é juridicamente viável aplicar sanções inexistentes aos réus. E a razão é simples e histórica, a invocar-se o legado de Cesare Beccaria (Dei delitte e delle pene, 1764): nulla poena sine lege.
[1] Conforme esclarece o ministro Roberto Barroso, com base na doutrina de José Carlos de Matos Peixoto (Curso de Direito Romano, Editorial Peixoto S.A., 1943, tomo I, p. 212-213), “a retroatividade máxima ocorre ‘quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados’; a retroatividade média se dá ‘quando a lei nova atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência’; a retroatividade mínima sucede ‘quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores, verificados após a sua entrada em vigor’” (ADI 1.220, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 19/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-055 DIVULG 12-03-2020 PUBLIC 13-03-2020). Assim, a retroatividade mínima se diferencia das hipóteses em que ocorre a aplicação imediata da lei porque “enquanto nesta [retroatividade mínima] são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente – consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –, naquela [aplicação imediata da lei] a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente.” (ADC 29, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 16/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-127 DIVULG 28-06-2012 PUBLIC 29-06-2012 RTJ VOL-00221-01 PP-00011).
Nesse mesmo sentido, já preconizava o Enunciado 4 do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo): “Somente constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, imparcialidade e legalidade e se enquadre, concomitantemente, em um dos incisos do art. 11 da Lei nº 8.429/92.”
[3] LIMA NETO, Franciso Vieira. Improbidade administrativa e retroatividade: o ato doloso (conjur.com.br). Acesso em 05.02.2024.
0 comentários