Contratos administrativos e as Câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos em tempos de COVID-19

6 de maio de 2020

Contratos administrativos e as Câmaras de prevenção e resolução  administrativa de conflitos em tempos de COVID-19

Por Anderson Pedra e Ronny Charles

A Administração Pública brasileira por muito tempo produziu suas decisões orientada pela lógica da imperatividade e da unilateralidade que caracterizavam o direito administrativo em seu berço. Contudo, já há algum tempo, busca-se um direito administrativo multilateral, permeado pela consensualidade, pela possibilidade de negociação preocupada com interesses públicos imediatos (da Administração no caso concreto) e também mediatos (desenvolvimento nacional), incluindo-se aí às consequências sociais e econômicas decorrentes de qualquer decisão administrativa.

A burocracia administrativa, baseada notadamente na concepção do princípio da legalidade (competência e hierarquia), começou a ceder espaço para uma Administração de resultados, de governança, onde a eficiência da decisão administrativa busca legitimidade por meio do processo administrativo dialógico e democrático, de forma dinâmica, naquilo que Medauar[1] destacou como sendo uma evolução necessária para a Administração Pública com a mudança de rota do “ato ao processo”, deixando de lado o foco predominante no ato administrativo e descolando a atenção para o modo de sua formação, em especial para o processo administrativo que o antecede.

Em tempos de crise[2], as contratações públicas e o direito administrativo sofrem diversos influxos. Velhos dogmas têm sido postos em xeque[3], rotinas antiquadas estão sendo questionadas, a Administração Pública começa a perceber que certas formalidades pugnam pouco pelo atendimento do interesse público contratual ou mesmo pelo interesse público primário, da sociedade como um todo.

É evidente a necessidade de desenvolvimento, no âmbito administrativo, de medidas para composição de conflitos, sem a contumaz judicialização das questões. O desenvolvimento de nosso Direito Administrativo exige o aperfeiçoamento de formas consensuais de resolução para os conflitos da Administração Pública, já que a exclusiva resolução litigiosa sobrecarrega o Judiciário e a complexidade das relações jurídicas nem sempre podem ser completamente solucionadas com normatizações abstratas estabelecidas previamente.

Na prática, diante dos reflexos econômicos e sociais da pandemia, os dilemas enfrentados pelos gestores públicos envolvem situações complexas que demandam ações rápidas e eficientes, mas também enriquecidas pela devida reflexão jurídica e econômica, além de necessária sensibilidade social. As regras postas e o repositório normativo e jurisprudencial existente, mesmo sendo periodicamente alterado[4], é certamente insuficiente para satisfazer e dar soluções adequadas a todos os problemas gerados por um desafio de proporções imprevisíveis e com dinâmica própria.

Por outro lado, o risco de responsabilização do gestor público, pelas decisões tomadas, milita a favor da omissão e da inoperância, tolhendo ações inventivas ou mesmo soluções pragmáticas e legítimas para os problemas verificados na prática. Esta ausência de ação sistemicamente gera prejuízos à toda coletividade, notadamente diante das plúrimas repercussões jurídicas, econômicas e sociais em situações calamitosas como a vivenciada em tempos de COVID-19, que tornam insuficiente qualquer tentativa de solução abstrata ou apriorística para todos os problemas concretos ora vivenciados.

Diante da necessidade de resolução de conflitos, notadamente na gestão dos contratos administrativos, não temos dúvida de que serve ao interesse público a efetiva aplicação do regime de definido pela Lei nº 13.140, já em vigor desde 2015.

A referida Lei dispõe sobre a mediação e autocomposição de conflitos, no âmbito da administração pública, admitindo que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios criem Câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública.

As Câmaras de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos, nos termos do art. 32 da Lei nº 13.140/2015, “devem” ser criadas pela Administração Pública, em todas as suas órbitas, objetivando a busca de soluções consensuais nos conflitos no âmbito do direito administrativo. Essas Câmaras poderão, dentre outras atividades compatíveis com sua finalidade, dirimir conflitos entre a própria Administração e um particular-contratado por meio da conciliação ou da mediação, buscando a melhor solução consensual para ambos envolvidos e também para a sociedade (interesse público).

Cada ente federado tem a obrigação de disciplinar, em regulamento, o modo de composição e funcionamento das respectivas câmaras, sendo facultativa a submissão do conflito. Essas Câmaras terão competência para: dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.

Vale destacar, entre as competências das Câmaras, a de “avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público”. Por seu turno, o § 5º do art. 32 deixa claro que nesta competência está compreendida “a prevenção e a resolução de conflitos que envolvam equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares”.

Diante dos complexos dilemas decorrentes de contratos administrativos relacionados aos tempos de crise, inclusive pela pandemia do coronavírus, v.g., necessidades de alterações contratuais, suspensões (parcial ou total) da atividade contratual ou do próprio contrato, análise de pedidos de reequilíbrio econômico, dentre outros, são questões sensíveis que se tornaram, ou se tornarão, um problema enorme e recorrente na rotina da Administração Pública. As gestões desses contratos administrativos, com os conflitos inerentes, exigirão soluções tópicas eficientes para atender a relação contratual travada entre a Administração-contratante e o particular-contrato de modo que o interesse público primário não seja colocado em risco.

O ambiente das Câmaras de Prevenção e Resolução Administrativas de Conflitos permite que nuances concretas sejam consideradas para efeito de harmonização. Os impactos gerenciais, financeiros, trabalhistas, sociais, entre outros, da decisão administrativa poderão ser sopesados para que se estabeleçam soluções tópicas, não apenas legítimas, como estratégicas para o atendimento ao interesse público primário.

Nessa linha, cabe-nos desmistificar a vontade contida na Lei nº 13.140 e no CPC/2015, naquilo que se refere à constituição das Câmaras, devendo conceder a dignidade inerente aos seus enunciados para que tenham eficácia e aplicabilidade plena, não mais permitindo que sua vontade fique aprisionada por uma omissão administrativa ilegítima, apenas em razão de uma interpretação literal (art. 32, caput)[5] e desconectada com o contexto social.[6]

O direito fundamental à boa administração pública determina que o agir administrativo deve ser realizado de modo mais oportuno e adequado aos fins a serem alcançados[7], ou seja, deve-se utilizar os meios mais adequados, necessários e justos (proporcionalidade) para alcançar o interesse público exigido, inclusive no que se refere a solução de conflitos.

Na lição de Freitas, este direito fundamental à boa administração pública deve ser entendido como o direito que o cidadão e a sociedade têm de experimentar uma administração eficiente e eficaz, proporcional, cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, impessoalidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas, acarretando ainda o dever de a Administração observar, nas relações administrativas, a totalidade dos princípios constitucionais que a regem.[8]

Partindo da premissa que existe o dever administrativo de instaurar a Câmara, de outro giro, os particulares possuem o direito de provocar a atuação das Câmaras. A complexidade técnica das questões envolvidas e a insegurança dos gestores na tomada de decisões sempre foram elementos impeditivos do desenvolvimento de uma cultura conciliatória, no âmbito da Administração Pública. Para superar esses obstáculos, o legislador estabeleceu a atuação do respectivo órgão de Advocacia Pública como titular das Câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos.

Importante consignar que aqui se trata de órgão de Advocacia Pública institucionalizado, constituído por membros efetivos que gozem da autonomia necessária para uma atuação altiva, inventiva, destemida, equilibrada e sempre com a devida e legítima motivação.

Conforme o art. 33 da Lei nº 13.140/2015, enquanto não forem criadas as Câmaras, os conflitos poderão ser dirimidos nos termos do procedimento do procedimento de mediação previsto na Subseção I (disposições comuns) da Seção III (do procedimento de mediação) do Capítulo I (da mediação) da Lei de Mediação. A facultatividade aparentemente trazida pelo dispositivo é inerente a uma hipotética escolha do particular-contratado em submeter o conflito à autocomposição e não para a disponibilidade do mecanismo (Câmara) em si.

Entendemos que tal dispositivo não afasta o dever de a Administração compor sua Câmara, ao contrário, lhe impõe, pois consagra o direito do particular-contratado de buscar a solução adequada para o seu conflito, o que se espera que seja melhor alcançado diante de uma estrutura administrativa previamente instituída.

Vale destacar, inclusive, que, para garantir segurança jurídica da atuação das Câmaras e fomentar o desenvolvimento desta atividade extrajudicial, a Lei nº 13.140/2015, em seu art. 40, previu que os servidores e empregados públicos que participarem do processo de composição extrajudicial do conflito, somente poderão ser responsabilizados civil, administrativa ou criminalmente quando, mediante dolo ou fraude, receberem qualquer vantagem patrimonial indevida, permitirem ou facilitarem sua recepção por terceiro, ou para tal concorrerem.

Os desafios decorrentes das ações de enfrentamento ao COVID-19 estão gerando forte impacto em nossa forma de convivência, nossa economia, nossa relação com a política e também em nossa relação com o Direito.

Esperamos que a imperiosidade de atuações administrativas eficientes e a percepção de que o  autoritarismo estatal não produz necessariamente as melhores soluções, nos conduza a um aperfeiçoamento do nosso Direito Administrativo que pode caminhar para uma leitura econômica de suas normas e para a construção de  uma forma mais consensual e dialógica de atuação da Administração Pública brasileira, esperando que a evolução da temática traga bons frutos para incremento de eficiência e redução dos custos e riscos que envolvam a contratação pública, tanto para as empresas como para os agentes públicos.

Em tempos de crise, a solução consensual é mecanismo tecnicamente adequado e que deve ser buscado estrategicamente para uma solução harmonizadora entre o interesse do particular-contratado, da Administração-contratante e o interesse público primário, afinal, se o bom senso e a necessidade de compreender o outro, particular-contratado, Administração e sociedade (sustentabilidade econômico-social) não forem observados, não se chegará à melhor solução.

Nesse contexto social, crê-se que as Câmaras de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos se apresentam como o locus necessário e adequado para se tentar resolver o conflito de modo consensual em tempos de crise, sendo um dever-poder da Administração a sua instalação e efetiva implementação. Sob outro prisma, resta evidente o direito do particular-contratado de exigir que seu conflito seja submetido ao ambiente de consensualidade que é inerente às Câmaras.


[1] MEDAUAR, Odete. Administração pública: do ato ao processo. In: ARAGÃO, Alexandre dos Santos; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 383-395.

[2] A expressão “tempos de crise” utilizada nesse artigo pretende significar situações emergenciais, calamitosas ou catastróficas que podem ocorrer em uma amplitude geral (compreendendo todo ou quase todo território nacional), regional (compreendendo mais de um Estado ou Município) ou local (Município, DF ou parte dele) e que merece um rápido, necessário e preciso agir administrativo a fim de atender o interesse público.

[3] PEDRA, Anderson Sant’Ana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; TORRES Ronny Charles Lopes de. A mística da impossibilidade de pagamento antecipado pela administração pública. Disponível em: www.licitacaoecontrato.com.br. Acesso em: 21.04.2020.

[4] Como demonstra a recente Lei federal nº 13.979/2020 e suas sequenciais alterações, poucos dias após sua aprovação.

[5] O art. 32, caput da Lei nº 13.140/2015 utiliza a expressão “poderão”.

[6] Importante registrar que o art. 174, caput do CPC/2015, diferente do art. 32, caput da Lei nº 13.140/2015, traz um modal deôntico obrigatório: “[…] criarão câmaras […]”.

[7] Nesse sentido: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 33. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 103; FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 21.

[8] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 20.


OBSERVAÇÃO:
Este artigo compreende algumas reflexões iniciais e condensadas de pesquisa realizada pelos autores que farão parte de escrito que será publicado posteriormente.

AUTORES:

Anderson Sant’Ana Pedra
@andersonspedra
Advogado e Consultor (Anderson Pedra Advogados). Procurador do Estado do Espírito Santo. Pós-doutor em Direito (Universidade de Coimbra). Doutor em Direito do Estado (PUC-SP). Professor de Direito Constitucional e Administrativo da FDV/ES.

Ronny Charles Lopes de Torres
@ronnycharles
Advogado da União.  Doutorando em Direito pela UFPE.  Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (10ª ed.); Direito Administrativo (coautor. 9ª ed.); Licitações e Contratos nas Empresas Estatais (coautor) e Improbidade Administrativa (coautor. 4ª ed.), todos pela editora JusPodivm.

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