CONSENSUALIDADE E ATIVIDADE SANCIONATÓRIA NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

26 de junho de 2020

CONSENSUALIDADE E ATIVIDADE SANCIONATÓRIA NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

Artigo dedicado ao Prof. Sandro Lúcio Dezan em agradecimento pelo apoio e receptividade no Programa de Doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
Por Victor Amorim

O Direito Administrativo brasileiro, mesmo após o advento da ordem constitucional de 1988, sempre foi pródigo em prever normativamente ações repressivas em caso de ilícitos e condutas praticadas fora do traçado formal positivado pelo legislador.   

A bem da verdade, ainda que se fale na autonomia do Direito Administrativo, notadamente a partir da década de 1960, o fato é que o discurso jurídico imanente ao agir repressivo da Administração Pública foi forjado e continua a ser tributário da estrutura de pensamento do Direito Penal[1].

Quanto a tal fenômeno, é interessante observar a profusão de normas no direito brasileiro que, concomitantemente, tipificam uma mesma conduta como infração administrativa e como crime. Para tanto, em rápida leitura, constata-se que o art. 7º da Lei nº 10.520/2002 e o art. 5º, IV, da Lei nº 12.846/2013 tipificam como infração administrativa condutas que também encontram-se tipificadas como crime na Seção III do Capítulo IV da Lei nº 8.666/1993.

Da análise da produção “doutrinária” nacional, é perceptível, na estrutura do Direito Administrativo Sancionador, um enfoque predominantemente formalista e conceitual, compreendendo-se a atividade sancionatória como um ato estanque e dissociado de uma visão multifacetária do agir administrativo. Tal compreensão, ainda que desinteressadamente, se mostra refratária ao reconhecimento da interface entre o Direto Administrativo e a gestão pública.

Daí a percepção estritamente lógico-formal do fenômeno repressivo da Administração Pública, a ponto de ser recorrente na tradicional “doutrina administrativista” brasileira, partindo da premissa segundo a qual não haveriam diferenças ontológicas entre as sanções penais e as administrativas, uma compreensão de que a atividade sancionatória da Administração seria um poder-dever[2]. Logo, o agente público, respeitadas as garantias dos cidadãos, não teria qualquer margem de apreciação acerca da legitimidade ou efetividade da ação repressiva a partir de um contexto mais amplo do fenômeno.

O discurso de justificação doutrinária, ao reconhecer a inafastabilidade do dever punitivo da Administração, parece se pautar pela finalidade preventiva das sanções, em uma típica materialização da política criminal beccariana, no sentido de que não é a severidade da pena que traz o temor ao potencial delinquente, mas a certeza da punição. Do estado da arte da produção jurídica nacional acerca do Direito Administrativo Sancionador constata-se a ausência de reflexão aprofundada inserindo e contextualizando a atividade sancionatória sob a lógica da gestão pública[3].

Afinal, a análise do fenômeno punitivo na ação administrativa do Estado se limita à discussão abstrata e hermeticamente fechada dos conceitos, como se a atividade sancionatória fosse um fim em si mesmo e não estivesse contemplada em um prisma mais amplo de gestão pública, com foco na eficiência e efetividade da atuação administrativa com vistas ao atendimento das finalidades pretendidas no ordenamento jurídico e na consecução do interesse público[4].

A aparente opacidade da doutrina tradicional sobre o tema, merece detida consideração no contexto da atividade punitiva da Administração nas contratações públicas. Talvez em razão da recorrência de casos estruturais de corrupção no Brasil desde a década de 2000, o legislador pátrio intensificou exponencialmente a produção normativa de tipos infracionais administrativos ao mesmo tempo em que também o fez no tocante aos tipos penais[5].

Nesse mesmo contexto, em relação aos procedimentos administrativos sancionatórios, passaram a ser incorporados e adaptados no ordenamento brasileiro técnicas de persecução criminal dos sistemas penais anglo-saxônicos, que, guiados pela busca da eficiência e efetividade da investigação, baseiam-se na colaboração e em práticas dialógicas entabuladas com os próprios infratores.

Ainda que com alguns reparos e incompatibilidades sistêmicas, mecanismos da chamada “justiça criminal negociada”, materializada pelo instituto do plea bargaining, foram incorporados no Brasil, não apenas na seara criminal (vide, por exemplo, a Lei nº 12.850/2013), mas, também, em sede de jurisdição administrativa, com o advento da possibilidade dos órgãos públicos firmarem compromissos de ajustamento de conduta com amparo no §6º do art. 5º da Lei nº 7.347/1985 (incluído pela Lei nº 8.078/1990).

Posteriormente, vários instrumentos, lastreados na lógica de consensualidade, foram especificamente instituídos em sede de jurisdição administrativa repressiva: compromissos de ajustes no setores antitruste e mercado de valores mobiliários (Leis nº 8.884/1994 e nº 9.457/1997); compromissos de cessação de conduta junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Lei nº 12.529/2011); e os acordos de leniência diante de práticas de corrupção (Lei nº 12.846/2013)[6].

Há, ainda, que se fazer o registro da positivação de mecanismos de autocomposição e heterocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, que, a depender do contexto, por resolver consensualmente a matéria controvertida, terão decisiva influência na consumação dos pressupostos de eventual sancionamento: art. 23-A da Lei nº 8.987/1995 (Lei das Concessões Públicas); art. 11, III, da Lei nº 11.079/2004 (Lei de Parcerias Público Privadas); art. 44-A da Lei nº 12.462/2012 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas); era. 12, parágrafo único, da Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais); e a Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação e de Solução Alternativa de Disputas na Administração Pública.

De modo geral, além das pontuais e expressas previsões de acordos substitutivos de sanção, o advento da Lei nº 13.655, em 2018, ao promover a inclusão do art. 26 no Decreto-Lei nº 4.657/1942, parece ter consagrado a lógica de consensualidade nas práticas de controle da Administração Pública, inclusive no que tange às sanções[7].

Nessa linha de desenvolvimento, a legislação pátria sinaliza uma transformação paradigmática na atividade sancionatória da Administração, em especial, no tocante às suas relações contratuais. Partindo da avaliação da finalidade e da justificação da atividade administrativa sancionatória, é mister reconhecer uma certa ressignificação do poder punitivo nos contratos administrativos, deixando a sanção de ser uma espécie de resposta automática e vinculada para ser reputada, sob a ótica de busca para eficiência e de uma relação contratual horizontal, como instrumento de gestão pública. Tal perspectiva é desenvolvida com profundidade na brilhante tese de doutorado de Alice Voronoff (UERJ), transformada no livro “Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação”, do qual se destacam as seguintes conclusões:

[A sanção administrativa deve ser] vista como medida de gestão, que deve estar integrada às atividades materiais a cargo do administrador a título de ferramenta a mais – ao lado de outras, como as estratégias de fomento, persuasivas e preventivas – em busca de efetividade e eficiência […] as sanções administrativas mais graves previstas da Lei nº 8.666/1993, relativas à suspensão do direito ou impedimento de o particular licitar ou contratar com a Administração Pública, como medidas coercitivas que têm custos significativos (para o particular, para a sociedade e para o próprio Poder Público) e que podem não incentivar a maior conformidade do comportamento dos agentes sancionados. Soluções alternativas, como as de autossaneamento, já praticadas no exterior e afinadas à tendência mais contemporânea de valorização de programas de compliance, podem levar a resultados mais efetivos e eficientes.[8]

Em sentido similar, é de se destacar as palavras de Rafael Sérgio Lima de Oliveira que, fundamentado nas conclusões de Maria João Estorninho, aduz: “o poder sancionatório da Administração Pública nos contratos administrativos não tem uma função predominantemente punitiva. O que prevalece na penalidade do regime contratual administrativo é o seu caráter funcional, que é o de imediata satisfação do interesse público buscado por meio da contratação[9][10].

Nesse diapasão, a busca de eficiência, como maximização do bem-estar social[11], deve ter por paradigma não a potencialização do agir punitivo por si só, mas sim a consecução, da forma mais adequada possível, de execução do objeto contratual, ainda que venha a representar um não-agir punitivo da Administração, desde que, respeitadas as balizas legais e jurisdicionais, represente a melhor alocação de incentivo[12] para o particular no sentido de fazer cessar a conduta infracional e se esmerar no cumprimento de suas obrigações. Em outras palavras, a eficiência da gestão contratual estaria não na aplicação indeclinável das sanções previstas no instrumento negocial, mas sim na obtenção do cumprimento do objeto avençado, sem que se mostre necessário valer-se do poder punitivo da Administração.

O incentivo ao autossaneamento, como bem abordado por César Pereira e Rafael Wallbach, inspirado na figura do self-cleaning prevista, dentre outros, nos ordenamentos dos Estados Unidos da América[13] e da União Europeia[14], mostra-se compatível com o sistema jurídico brasileiro, no sentido de que o enfoque da gestão pública deveria ser baseado na adoção de medidas voltadas à prevenção de condutas delituosas futuras em substituição à aplicação de penalidades, que, caso não inviabilizem a sã existência do contratado, decorreriam de procedimentos administrativos extremamente custosos para a Administração[15].

Nessa quadra de evolução das normas concernentes ao sancionamento nos contratos administrativos, é admissível concluir que o fundamento de justificação da necessária observância de um procedimento dialógico ínsito ao agir punitivo da Administração nas contratações públicas decorre da compreensão da atividade sancionatória como ferramenta institucional de gestão pública, na qual a consensualidade se apresenta como técnica regulatória para a obtenção de soluções mais efetivas e legítimas, na perspectiva de formação democrática e dialógica das ações, para o atingimento das finalidades públicas ínsitas à contratação.

 


[1] Para uma consistente análise jurídico-filosófica acerca da unicidade ontológica entre o “ilícito penal” e o “ilícito administrativo”, vide a essencial obra: DEZAN, Sandro Lúcio. Ilícito administrativo disciplinar. Curitiba: Juruá, 2015.

[2] Nesse sentido: OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2019.

[3] Para um levantamento do estado d´arte da produção administrativista no Brasil sobre a matéria, vide: VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 53-80.

[4] Nesse sentido: VALLE, Vivian Lima López. Contratos administrativos e um novo regime jurídico de prerrogativas contratuais na Administração Pública contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 75-104.

[5] Para uma análise crítica acerca da incorporação de tais instrumentos, vide: HARGER, Marcelo. Comentários à Lei Anticorrupção. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 12-25.

[6] Para uma análise acurada dos instrumentos de consensualidade, vide: FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

[7] Vide, para tanto, MOTTA, Fabrício; NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no Direito Público: Lei 13.655/2018. São Paulo: RT, 2019, p. 87-90.

[8] VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 318-319.

[9] OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. Da possibilidade de aplicação de sanções administrativas nos processos de licitação e contrato durante o curso do estado de calamidade. Portal L&C, Recife, mai/2020. Disponível em: <http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo/possibilidade-aplicacao-sancoes-administrativas-nos-processos-licitacao-contrato-durante-curso-estado-calamidade-18052020.html>.

[10] O fundamento referido trata-se do seguinte trecho da obra de Maria João Estorninho: “A função principal da sanção nos contratos administrativos não é, nem a de reprimir as violações contratuais nem a de compensar a Administração pelos prejuízos sofridos, mas sim a de obrigar o particular a cumprir a prestação a que está adstrito e, dessa forma, assegurar a prossecução do interesse público subjacente ao contrato” (Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Almedina, 2003, p. 128).

[11] Trata-se de um compreensão do princípio da eficiência a partir da Análise Econômica do Direito: “[…] o que está subjacente a esse tipo de raciocínio é que os recursos da sociedade são escassos e podem ser empregados para finalidades diversas (usos concorrentes), mas excludentes, que não necessariamente gerarão o mesmo nível de bem-estar social. Dessa forma, a eficiência alocativa se preocupa com a escolha que gere o maior nível de bem-estar possível. Uma escolha será alocativamente eficiente se não houver qualquer outra alocação dentro da fronteira de possibilidades que gere um bem-estar maior para a sociedade” (GICO JR., Ivo T. Bem-estar social e o conceito de eficiência. SSRN Electronic Journal, out. 2019).

[12] Para melhor compreensão acerca das estratégias de “alocação de incentivos”, desenhos de mecanismos, avaliação e indução de comportamento dos agentes de mercado, vide: NÓBREGA, Marcos. Direto e Economia da Infraestrutura. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 24-34; 42-47; GICO JR., Ivo. Introdução ao Direito e Economia. In: TIMM, Luciano Benetti. Direito e Economia no Brasil. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 18-21; 26-28.

[13] Vide Subparte 9.4 da FAR (Federal Acquisition Regulation), disponível em: <https://www.acquisition.gov/content/part-9-contractor-qualifications>.

[14] Vide item 6 do art. 57 da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:02014L0024-20180101>.

[15] PEREIRA, Cesar A. Guimarães; SCHWIND, Rafael Wallbach. Autossaneamento (self-cleaning) e reabilitação de empresas no direito brasileiro anticorrupção. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini. Curitiba, nº 102, agosto de 2015. Disponível em: <https://www.justen.com.br/pdfs/IE102/IE102_Cesar_e_Rafael_Self-cleaning_e_reabilita%C3%A7%C3%A3o_de_empresas.pdf>. Concluem os autores: “O debate sobre a aplicação da ideia de autossaneamento (self-cleaning) no direito brasileiro é necessário e urgente. A sofisticação dos instrumentos legislativos de combate à corrupção deve ser acompanhado da percepção dos efeitos potencialmente danosos dos mecanismos tradicionais de repressão das condutas corruptas […] A experiência do direito comparado, notadamente europeu, norte-americano e de organismos internacionais como o Banco Mundial, com os instrumentos de autossaneamento é rica e aprofundada, com o estabelecimento de critérios para a identificação de situações de cabimento ou não desse regime, de medidas efetivas de correção (que podem ser e em geral são extremamente severas e sacrificantes), de instrumentos de fiscalização e de prevenção do abuso na exclusão de penalidades cabíveis e necessárias. Cabe-nos repensar de modo crítico o sistema brasileiro de repressão à corrupção por meio da generalização da proibição de contratar com a Administração Pública […] É urgente aprofundar a análise dos instrumentos à disposição do Estado para que o necessário combate rigoroso à corrupção não se converta em um fator adicional na superação das dificuldades econômicas atuais”.


AUTOR:

VICTOR AMORIM
Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor dos cursos de pós-graduação do IDP, Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e do Instituto Goiano de Direito (IGD). Advogado e Consultor Jurídico. Co-autor, juntamente com Prof. Rafael Sérgio de Oliveira, do livro “Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019”, publicado pela Editora Fórum. Site: www.victoramorim.com

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