Por Carlos Nitão
Antônio Carlos Belchior é um dos maiores compositores da música popular brasileira. Suas músicas me acompanham desde os idos da adolescência, em Piancó, no querido sertão paraibano.
Para além das reflexões de cunho pessoal, parece-me que o cantor cearense tem bons conselhos a nos oferecer no que diz respeito ao exercício do controle das decisões administrativas que, no presente artigo, serão compreendidas no âmbito das licitações públicas.
A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB[1] sofreu alterações no ano de 2018, com o objetivo de promover segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.
Em 01 de abril de 2021 foi publicada a Lei n. 14.133, estabelecendo normas gerais sobre licitações e contratações públicas. No seu artigo 5º, a lei apresenta elenco variado de princípios cujos valores orientam a atuação do agente público no processo de tomada de decisões para aplicação da mencionada lei.
Nesse cenário, observa-se uma cautela do legislador na parte final da redação do artigo 5º acima citado, é dizer, após enumeração de mais de 20 (vinte) princípios determina-se que, quando de sua aplicação, observem-se as disposições previstas na LINDB.
Desse modo, há uma nítida orientação normativa no sentido de que a efetivação dos valores abstratos traduzidos pelos princípios, como regra, tem de ser densificada a partir da situação concreta vivenciada pelo agente público.
A LINDB, no seu artigo 20, prescreve que nas esferas administrativa, controladora e judicial não se decidirá com bases em valores abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Há, portanto, um dever adicional que incide sobre a motivação do processo decisório, que reclama da autoridade um trabalho mais artesanal, preciso, rico em detalhes, escapando, portanto, da “produção” industrializada e em série que, tantas vezes, não está conectada com a situação concreta e específica. Não se pretende, pois, motivação geral e repleta de abstrações teóricas e normativas.
O fato é que normas de conteúdo indeterminado ou aberto, como seja de sua preferência, são comuns na atividade administrativa, na gestão pública. Observa-se em inúmeros dispositivos da Lei n. 14.133/2021. Basta pensar, por exemplo, sobre o que seria o “resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública”, previsto no inciso I, do artigo 11.
Segundo Tito Prates da Fonseca[2], “o abstrato é um caminho para chegar-se ao concreto. Nesse concreto final é que a norma se vivifica e alcança seu significado”. Por conseguinte, a realização da norma ocorre no dia a dia, quando o agente público se depara com as dificuldades reais de gestão (restrição de recursos financeiros, falta de equipamentos e materiais, carência de servidores, etc.).
Exatamente por isso Belchior alerta-nos: “Fique você com a mente positiva. Que eu quero é a voz ativa (ela é que é uma boa!). Pois sou uma pessoa. Esta é minha canoa: Eu nela embarco”[3]. Ora, o processo de tomada de decisão administrativa dialoga com a dinâmica dos fatos, por isso exige a “voz ativa”, é dizer, reclama decisões, ações determinadas do agente público em condições específicas de calor, temperatura e pressão.
Dito de outro modo, “eu sou uma pessoa” e, no exercício de minhas atribuições e competências administrativas, tomo decisões diariamente sob as luzes de fatos e normas, analisando alternativas disponíveis, razoáveis e compatíveis com a legalidade. É preciso observar a realidade e compreendê-la como instrumento para a concretização do Direito.
A LINDB alerta-nos sobre isso, ao dispor que os obstáculos e as dificuldades reais do gestor precisam ser considerados na interpretação de normas sobre gestão pública – artigo 22. O filósofo e jurista Karl Larenz[4] atentava para o fato de que “as proposições jurídicas devem ser aplicadas a eventos fácticos, a uma situação de facto que se verificou”.
Sendo assim, a atividade de controle sobre o processo decisório do agente público tem de observar não apenas a norma em abstrato, mas sobretudo a sua aplicação diante da situação fática e face às alternativas disponíveis, aferindo-as a partir de sua razoabilidade e compatibilidade com a legalidade.
Por isso, o grito de alerta de Belchior: “Fique você com a mente positiva”, pois a “minha alucinação é suportar o dia a dia. E meu delírio é a experiência com coisas reais”[5]. A análise do processo decisório do agente público, pelo controlador, não pode ter como partido apenas a “mente positiva”, é dizer, partir da ideia de completude da norma. Faz-se necessária a análise dos fatos, do contexto decisório e de sua razoabilidade.
Essa atuação controladora orientada pelo trabalho artesanal da motivação deve ocorrer de forma regular, sobretudo em determinadas situações nas quais a criatividade do agente público se faz necessária para encontrar a solução adequada à necessidade administrativa.
Essa criatividade precisará estar amparada em critérios técnicos e devidamente motivada, incidindo sobre ela o trabalho artesanal da motivação, furtando-se da “produção industrializada”, apontadas acima. Não custa destacar que o agente público tem competência para interpretar a norma e aplicá-la. Aliás, essa é por função a sua atividade.
Dessa maneira, eventual discordância da atividade de controle em relação a decisão administrativa precisa ser efetivamente demonstrada, incidindo sobre ela a natureza artesanal da motivação, de modo que a LINDB não admite decisões que sejam orientadas apenas por valores abstratos. Para apontar as consequências práticas da decisão é necessário analisar os fatos e seu contexto, enfrentando as condições de calor, temperatura e pressão presentes quando da tomada da decisão administrativa.
Não sendo assim, seria possível relembrar Rui Barbosa e sua clássica lição sobre o que denominou de “crime de hermenêutica”. Ou seja, a possibilidade de responsabilização do agente público, pelo controlador, quando este não concorda com a decisão administrativa sem a realização do trabalho artesanal da motivação, sem enfrentar os fatos e o seu contexto.
Essa conduta do controlador colabora para o que se convencionou chamar de Administração Pública do Medo, provocando paralisia decisória, levando ao apagão das canetas administrativas, contribuindo para o retraimento da inovação na aplicação e na interpretação do Direito público.
Sobre tais afirmações, acautelo-me ao lado de Belchior que, em 1976, ao que parece realizava um prognóstico sobre o fenômeno do Direito Administrativo do Medo, quando assim cantava: “Mas não se preocupe, meu amigo. Com os horrores que eu lhe digo. Isto é somente uma canção. A vida realmente é diferente. Quer dizer, ao vivo é muito pior”[6].
[1] Decreto-lei n. 4.657/1942, com alterações posteriores pela Lei n. 13.655/2018.
[2] Fonseca. Tito Prates. Direito Administrativo. São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos. 1939.
[3] Belchior. Trecho da música Conheço o meu lugar.
[4] Larenz. Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997
[5] Belchior. Trecho da música Alucinação.
[6] Belchior. Trecho da música Apenas um rapaz latino americano.
CARLOS NITÃO
Mestre em Direito. Pesquisa licitações e contratações públicas no Brasil. Procurador Federal – AGU.
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