Análise sobre a exequibilidade das propostas em licitações de obras e serviços de engenharia segundo a Lei nº 14.133/2021 e a lei complementar nº 95/1998

19 de fevereiro de 2024

Hamilton Bonatto[1]

A questão da inexequibilidade das propostas licitatórias, sempre causou discussões. A Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, em seu artigo 59[2], veio estabelecer critérios para a desclassificação dos proponentes no tocante à inexequibilidade dos preços apresentados. Este dispositivo legal determina que serão desclassificadas as propostas que apresentem preços inexequíveis ou que não comprovem sua exequibilidade, quando assim for exigido pela Administração Pública.

O inciso III do referido artigo menciona a desclassificação de propostas com preços inexequíveis ou que superem o orçamento estimado para a contratação. Na sequência, o inciso IV permite ao licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade de sua proposta antes de sua desclassificação, caso ela pareça inexequível à primeira vista. Contudo, surge uma discussão jurídica relevante quanto à natureza relativa ou absoluta da inexequibilidade de propostas em obras e serviços de engenharia.

Verificando o § 4º do mesmo artigo, este dispositivo introduz um critério quantitativo para aferição da inexequibilidade especificando que, para tais casos, são consideradas inexequíveis as propostas cujos valores sejam inferiores a 75% do valor orçado pela Administração.

É cediço que, durante a vigência da Lei nº 8.666/1998 o Tribunal de Contas pacificou entendimento no sentido de que os critérios elencados pela Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, para definir a proposta inexequível conduzem a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, isto é, havia somente um indício de inexequibilidade quando o preço ofertado pelo licitante não atingia os critérios ditados no art. 48 da lei revogada. Aquela Corte de Contas sumulou este entendimento da seguinte forma: O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas “a” e “b”, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta[3].

Essa a racionalidade foi traduzida na Súmula 262 do TCU sob a égide da Lei 8.666, no sentido de que o critério legal conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta[4].

No entanto, no Acórdão 2198/2023 do Tribunal de Contas da União (TCU), na vigência da Lei nº 14.133/2021, relatado pelo Ministro Antônio Anastasia, trouxe a interpretação de que a inexequibilidade do art. 59, ao tratar de licitação para contratação de obras e serviços de engenharia, é absoluta. Este acórdão representa um entendimento relevante ao considerar que propostas abaixo do limiar de 75% do valor orçado, em contextos de obras e serviços de engenharia, devem ser diretamente desclassificadas, sem necessidade de procedimentos adicionais para averiguar a exequibilidade. Tal posicionamento, ainda que represente uma decisão pontual, sinaliza potencial tendência interpretativa quanto à aplicação estrita do § 4º do art. 59 da Lei nº 14.133/2021.

Contrapondo-se a essa tendência, com fundamento na Lei Complementar nº 95, de 1998, que estabelece normas para a elaboração e redação das leis federais, em seu artigo 11, ressalta a necessidade de clareza e lógica na estruturação das disposições legais. Com esse fundamento sugere-se prosseguir ao que decidiu a r. Corte de Contas, e, conforme esta lei complementar, verificar que os parágrafos se destinam a expressar complementos ou exceções às regras gerais estabelecidas no caput dos artigos a que vinculam.

Assim, o § 4º do art. 59 da Lei nº 14.133, de 2021, complementa o enunciado no inciso III do caput, conforme a legística, para estabelecer um percentual para a inexequibilidade das propostas no caso de obras e serviços de engenharia. O legislador pretendeu, e o fez, dar um parâmetro de inexequibilidade para as obras e serviços de engenharia, diferente dos demais objetos.

Prosseguindo nessa via, a segunda parte do art. 11 da Lei Complementar nº 95, de 1998, prevê outra função para os parágrafos[5]: expressar as exceções à regra estabelecida no caput. Portanto, caso fosse a intenção do legislador excepcionalizar a previsão da demonstração da inexequibilidade prevista no inciso IV do caput, o teria feito como o fez em outros topos da mesma Lei[6].

Uma vez identificada a proposta inferior a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração, o dispositivo o § 4º do caput, onde consta o inciso IV que permite que o proponente demonstre a exequibilidade de sua proposta.

O Professor e Procurador Federal Rafael Sérgio de Oliveira, assinala que a diversidade do mercado não permite que a Administração possa, mesmo no caso de obras e serviços de engenharia, formar convicção quanto à manifesta inexequibilidade da proposta por meio de um percentual definido na legislação[7].

Esta interpretação é reforçada pelo exame de outras disposições da mesma lei, onde o legislador claramente estabelece exceções quando pretende modificar ou restringir a aplicação de uma regra geral, como se pode observar:

– O caput do art. 15 da Lei nº 14.133, de 2021, estabelece uma regra geral para participação em consórcio; o §1º complementa o caput prevendo uma margem percentual para a habilitação econômico-financeira dos consórcios; e, seguindo a Lei Complementar nº 95, de 1998, o § 2º excetua a aplicação desse percentual aos consórcios compostos totalmente de micro e pequenas empresas.

– O caput do art. 26 trata de forma geral da possibilidade de a editalícia estabelecer casos em que é possível estabelecer margens de preferência para o objeto, porém, assenta ressalvas ao ladeado utilizando-se do § 5º [8].

– O art. 75 dispensa licitações e no inciso XVIII o faz para a contratação de entidades privadas sem fins lucrativos, nos casos de implantação do Programa Cozinha Solidária. No § 1º[9] desse artigo constam as previsões para aferir os respectivos somatórios econômicos dos licitantes e no §7º determina a ressalva a esta previsão para as contratações de até R$ 8.000,00 (oito mil reais) de serviços de manutenção de veículos automotores de propriedade do órgão ou entidade contratante, incluído o fornecimento de peças.

– Outro exemplo consta da exceção à regra do §5º exposta no §6º do art. 90. Aquele parágrafo dispõe sobre a caracterização de descumprimento total da obrigação assumida e a recusa injustificada do adjudicatário em assinar o contrato ou em aceitar ou retirar o instrumento equivalente, no prazo estabelecido pela Administração. Regra excetuada para os licitantes remanescentes convocados após a caracterização do descumprimento total da obrigação assumida pelo vencedor.

Prosseguindo nessa análise, a ausência de uma exceção explícita no § 4º do art. 59 da Lei nº 14.133/2021, relativamente à regra de demonstração de exequibilidade (inciso IV), sugere que a intenção do legislador não era a de estabelecer uma inexequibilidade absoluta para propostas abaixo do referido limiar de 75%, mas a de que, sem a possibilidade de comprovação da sua exequibilidade pelo licitante, tais propostas não devem ser automaticamente consideradas inexequíveis.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, consignou que o § 2º do referido artigo que possibilita a demonstração da exequibilidade das propostas pelo licitante, não exclui as obras e serviços de engenharia e, portanto, se aplica também a eles. E nem mesmo haveria razão para que não se aplicasse, pois, independentemente da natureza do serviço licitado, a licitação sempre visa a selecionar a proposta mais vantajosa à Administração, o que justifica que a presunção de inexequibilidade de propostas inferiores a 75% do valor orçado seja passível de ser afastada”.[10]

Ademais, a interpretação de que a inexequibilidade de propostas em obras e serviços de engenharia é absoluta quando o valor ofertado é inferior a 75% do orçado contraria o espírito da norma que visa garantir a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, sem prejuízo à execução do objeto contratado. Deve-se considerar a possibilidade de que, em determinadas situações, o licitante possa justificar a viabilidade de sua proposta, mesmo que esta apresente um desconto significativo em relação ao valor orçado.

Portanto, defende-se uma interpretação jurídica que concilie a segurança e a eficiência nos processos licitatórios com a flexibilidade necessária para aferição da exequibilidade das propostas, especialmente em obras e serviços de engenharia, onde a variabilidade de custos e a expertise técnica dos licitantes podem justificar propostas com valores inferiores ao limite estabelecido pelo § 4º do art. 59 da Lei nº 14.133, de 2021.

Em conclusão, a análise harmonizada da Lei nº 14.133, de 2021 e da Lei Complementar nº 95, de1998, indica que, perante propostas que apresentem valores abaixo do estimado em licitações de obras e serviços de engenharia, é fundamental conceder aos proponentes a chance de manifestação para comprovar a exequibilidade de suas propostas. Tal abordagem é essencial para garantir a competitividade e assegurar a escolha da oferta que melhor atenda aos interesses da Administração Pública, e conferir eficácia aos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, norteadores dos processos licitatórios e contratações administrativas.

Reconhece-se a preocupação quanto à possibilidade de propostas com descontos superiores a 25% implicarem a não entrega do objeto conforme acordado. No entanto, a responsabilidade pela definição da inexequibilidade de tais propostas deve ser considerada de maneira absoluta ou relativa cabe exclusivamente ao legislador.

Assim, conforme o exposto, seguindo o contido na Lei Complementar nº 95, de 1998, para a interpretação do conteúdo do art. 59 da Lei nº 14.133, de 2021, verificando-se a inexistência de parágrafo determinando que aos casos previstos no §4º (inexequibilidade das propostas com valores inferiores a setenta e cinco por cento do valor orçado pela Administração), não se aplica o disposto no inciso 4º (serão desclassificadas as propostas que não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração), a presunção de inexequibilidade deve ser relativa, permitindo-se ao proponente o direito de manifestar-se para demonstrar a sua proposta.

Ao se debruçar sobre a normativa e sua aplicação prática, deve-se considerar a lógica e a estruturação legislativa na busca pela interpretação que melhor atenda aos princípios constitucionais que regem a administração pública e os processos licitatórios. O desafio está em harmonizar os dispositivos da Lei nº 14.133/2021 com as diretrizes para a redação de leis (Lei Complementar nº 95, de 1998), de modo a extrair uma compreensão que permita, de forma justa e razoável, a avaliação da exequibilidade das propostas sem comprometer a integridade e a efetividade dos procedimentos licitatórios.

A reflexão proposta sobre a inexequibilidade das propostas, apoiada em um entendimento que considera tanto a literalidade da lei quanto as necessidades práticas da administração contratante, sugere uma visão que não somente respeita a norma, mas também viabiliza a participação equitativa e competitiva dos licitantes, promovendo a seleção da proposta mais vantajosa para a administração. Destarte, conclui-se pela importância de uma interpretação da lei que, ao ponderar sobre a inexequibilidade das propostas, faça-o com a devida consideração às peculiaridades de cada caso, promovendo a eficiência e a eficácia na contratação pública, alinhadas aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência que norteiam a atuação da Administração Pública.


[1] Hamilton Bonatto é Procurador do Estado do Paraná. É Mestre em Planejamento e Governança Pública. É Especialista em Obras Públicas, Direito Constitucional e Advocacia Pública. Graduado em Direito, Engenharia Civil e Licenciatura Plena em Matemática Plena.

[2] Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que: (…) III – apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação; IV – não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração; (…)

[3] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Súmula 262.

[4] NASCIMENTO, Eduardo Nadvorny. Inexequibilidade da Proposta na Nova Lei de Licitações. Informativo Justen, Pereira Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 166, dezembro de 2020, disponível em http://www.justen.com.br. Acesso em 09.02.2024.

[5] Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: (…) III – para a obtenção de ordem lógica: (…) b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio; c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida; d) promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens.

[6] A exemplo da ressalva efetuada pelo §1º do art. 92; parágrafo único do art. 96; § 1ºdo art. 121; etc.

[7] OLIVEIRA, Rafael Sérgio. Os Critérios de Aferição da Inexequibilidade das Propostas na Nova Lei de Licitações. In Temas Controversos da Nova Lei de Licitações e Contratos / coordenadores Matheus carvalho, Bruno Belém e Ronny Charles. São Paulo: Editora JusPodium, 2021.

[8] § 5º A margem de preferência não se aplica aos bens manufaturados nacionais e aos serviços nacionais se a capacidade de produção desses bens ou de prestação desses serviços no País for inferior: I – à quantidade a ser adquirida ou contratada; ou II – aos quantitativos fixados em razão do parcelamento do objeto, quando for o caso.

[9] § 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput deste artigo, deverão ser observados:

I – o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora;

II – o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.

[10] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. TJ/SP, Apelação Cível nº 1004528-23.2022.8.26.0347, Rel. Des. Antonio Carlos Villen, j. em 08.08.2023. In Blog da Zênite. TJ/SO: nova Lei e a possibilidade de diligência para verificar exequibilidade de proposta. 16.11.2023. Disponível em: https://zenite.blog.br/tj-sp-nova-lei-e-a-possibilidade-de-diligencia-para-verificar-exequibilidade-da-proposta/#:~:text=Nova%20Lei%20de%20Licita%C3%A7%C3%B5es&text=No%20caso%2C%20o%20tribunal%20considerou,%C3%A9%20relativa%20e%20n%C3%A3o%20absoluta. Acesso em 09.02.2024.

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