Por Ronny Charles[1]
A Lei nº 14.133/2021 inovou em nosso ordenamento ao criar a figura do agente de contratação. Trata-se de função relevante que será melhor delineada com as posteriores regulamentações e o amadurecimento na aplicação do novo regime licitatório.
Parece evidente que a função de pregoeiro inspirou a criação da função de agente de contratação. Se com o início da modalidade pregão, este agente público era visto apenas como o responsável pela condução da sessão da licitação, com o desenvolvimento da função ele passou a ganhar expertise e absorver outras atribuições, competências e responsabilidades, colaborando, inclusive, com atividades que eram praticadas por outros servidores e, em alguns órgãos, exercendo certa função de supervisor do procedimento licitatório como um todo.
Segundo o inciso LX do artigo 6º da Lei nº 14.133/2021, o agente de contratação seria a pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.
Primeiramente, convém salientar que o legislador parece ter pretendido permitir ao agente de contratação uma amplitude de atuação maior que apenas a condução da sessão da licitação, como já se identifica em muitos órgãos públicos, na prática, em relação ao pregoeiro, o que exige conhecimento, perfil adequado e experiência. Nada obstante, a definição das atribuições do agente de contratação será realizada pelos órgãos competentes pela regulamentação da Lei.
A questão talvez mais instigante, em relação à figura do agente de contratação, envolve a regra disposta no artigo 8º, pela qual o agente de contratação deve ser designado pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública.
Importante salientar que, diferentemente da diretriz estabelecida pelo artigo 7º, para que os agentes públicos que desempenhem as funções essenciais à execução desta Lei sejam “preferencialmente” efetivos, aqui a Lei nº 14.133/2021 expressamente condiciona o exercício dessa função de agente de contratação ao servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública. A diretriz do artigo 7º, ao definir a preferência por servidores efetivos, embora permita certa margem de adequação à realidade do órgão, indica a necessidade geral de profissionalização para exercício das funções essenciais ao ambiente licitatório, o que envolve não apenas agente de contratação e pregoeiro, mas também outras funções nas quais a existência de vínculo efetivo se demonstra também sensível, como fiscais de contratos, gestores, agentes de controle interno, entre outros.
De maneira sucinta e objetiva, parece-nos que, ao ultrapassar a condição de diretriz, orientando pela preferência, o artigo 8º define uma regra cogente, que impõe submissão à organização administrativa do ente. Com essa característica, tal disciplinamento claramente se reveste da condição de norma materialmente específica, não vinculando Estados, Municípios e o Distrito Federal, mas apenas órgãos e entidades federais. Atentaria contra a autonomia administrativa que a União definisse a obrigatória condição de servidor efetivo para o exercício da função de agente de contratação para todos os demais entes da Federação[2].
Nada obstante, é legítimo interpretar que a regra disposta no artigo 8º reveste-se de natureza geral, sendo obrigatoriamente aplicável não apenas à União, mas também a Estados, Distrito Federal e municípios.
Na doutrina e nos Tribunais de Contas podem ser identificados entendimentos divergentes sobre o tema. Para alguns, estados, municípios e Distrito Federal teriam que atender a regra do artigo 8º imediatamente, nomeando apenas servidores efetivos para o exercício da função de agente de contratação ou pregoeiro, nas licitações da Lei nº 14.133/2021. Para outros, ainda é possível, ao menos por enquanto, a nomeação de servidores exercentes de cargo em comissão para o exercício dessa função.
Mas para além do bom e salutar debate dogmático, parece conveniente avaliar as consequências das interpretações divergentes, com olhos para a realidade.
Como é cediço, para quem atua na área, em pequenos municípios e mesmo em estruturas estaduais, não é tão comum que a função de pregoeiro seja exercida por servidores efetivos. Em grande parte dos pequenos municípios, com até 100.000 habitantes, os pregoeiros costumam ser agentes públicos exercentes de cargo em comissão. Diversos motivos contribuem para isso: carência de recursos humanos aptos, ausência de incentivos adequados, riscos de responsabilização, inexistência de capacitação oportuna aos servidores efetivos, baixa remuneração, fragilidade da estrutura do órgão, entre outros. Atrevemo-nos a afirmar que, no Nordeste, Norte e Centro-Oeste, o percentual de municípios com pregoeiros efetivos é deveras reduzido.
De outra banda, a formação de um pregoeiro ou agente de contratação exige tempo. Anos de treinamento, capacitação, experiência, para que ele possa tomar decisões condizentes com o ordenamento jurídico, centenas de normativos e todas as orientações emanadas dos órgãos de controle. Não se forma um bom pregoeiro (e, portanto, um bom agente de contratação) em meses. Talvez apenas com o transcurso de anos, período em que, além de participar de capacitações, ele deve ter uma transição apoiada por profissionais com maior experiência.
Qual será o resultado, para as contratações públicas municipais, da aplicação obrigatória e imediata da regra do artigo 8º da Lei nº 14.133/2021? Sem servidores efetivos capacitados e com experiência para exercer essas relevantes funções (pregoeiro e agente de contratação) não aumentaremos os índices de irregularidades praticadas nas licitações por falhas de seus operadores? A ausência de experiência não induzirá um comportamento reativo que, ao invés de encontrar soluções, por preservação, travará os processos licitatórios? Qual a solução imediata para órgãos municipais de estrutura reduzida, como câmaras municipais de pequenas localidades? Eventuais falhas poderão dar ensejo à responsabilização das autoridades máximas de cada organização pública? Vale lembrar que, nos termos do artigo 7º da NLLCA, elas são responsáveis por promover gestão por competências e designar agentes públicos aptos ao desempenho das funções essenciais previstas na Lei nº 14.133/2021. Porém, se eles forem obrigados a nomear um servidor efetivo ainda sem experiência suficiente, serão responsabilizados?
São reflexões necessárias, que exigem a adoção de certo raciocínio consequencialista, analisando quais os efeitos reais da aplicação da norma jurídica, antes de definir sua interpretação.
Particularmente, sou favorável à profissionalização da área, com o incentivo à designação de servidores efetivos para o exercício das funções essenciais ao ambiente licitatório; mas não acredito que esta imposição deva ser estabelecida de maneira única para estruturas federativas tão diferentes. Ignorar a realidade pode trazer resultados imprevistos e isto precisa ser ponderado pelo intérprete da norma. Como afirma-se ter dito Simone de Beauvoir “a primeira condição para mudar a realidade é reconhecê-la”.
[1] Advogado da União. Doutorando em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (14ª ed. Jus Podivm); Direito Administrativo (coautor. 13ª ed. Jus Podivm); Licitações e Contratos nas Empresas Estatais (coautor. 3ª edição. Jus Podivm) e Comentários à Lei de Improbidade Administrativa (ed. Jus Podivm). Análise Econômica das licitações e contratos (coautor. Fórum).
[2] Para aprofundamento sobre os limites de definição das normas gerais de licitação, vide nosso livro Leis de licitações públicas comentadas.
*Texto inspirado em trecho de nosso livro “Leis de licitações públicas comentadas. 14ª edição. São Paulo: Editora Jus Podivm, 2023.
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