A Nova Lei De Licitações e os Desafios para a Advocacia

11 de agosto de 2021

Ronny Charles L. de Torres[1]

A Constituição Federal definiu peculiar configuração para a Advocacia e para a Advocacia Pública, posicionando-as entre as “Funções Essenciais à Justiça”.

Como ressabido, ela divide o seu título IV, que trata sobre “A Organização dos Poderes”, em quatro capítulos. O primeiro trata sobre o Poder Legislativo, o segundo se destina ao Poder Executivo e o terceiro discorre sobre o Poder Judiciário. O quarto, que também se encontra inserido no título “Organização dos Poderes”, mas separado dos três primeiros, denomina-se “Das Funções Essenciais à Justiça” e é dividido em quatro seções, designadas, respectivamente, “Do Ministério Público”, “Da Advocacia Pública”, “Da Advocacia” e “Da Defensoria Pública”.

No entanto, essa relevância nem sempre é devidamente compreendida, muitas vezes confundindo-se a real compreensão do conceito de Advocacia e de Advocacia Pública. No caso desta, é comum a confusão com uma advocacia de governo, vinculada aos interesses do grupo político eventualmente dominante. No caso daquela, muitas vezes se ignora que a Advocacia sempre esteve na frente da defesa de valores caros à sociedade, como a construção do Estado Democrático de Direito, tanto professado quanto costumeiramente afrontado.

Fundamental refletirmos sobre a relevância de ter o constituinte deslocado as funções essenciais à Justiça para um capítulo próprio, inserido no título sobre a organização dos Poderes, mas autônomo em relação aos três anteriores, que discorrem sobre os Poderes da clássica repartição (Executivo, Judiciário e Legislativo).

A concepção liberal clássica de Estado de Direito abrangeu um ordenamento jurídico constitucional fundado sobre o pilar institucional do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) e sobre as noções de soberania nacional, de poderes públicos, de contrato social e de democracia[2]. Contudo, as mudanças ocorridas durante o século XX repercutiram na configuração do Estado Moderno, exigindo que ele ampliasse suas atribuições e deveres perante a sociedade, passando a atuar ativamente em áreas como saúde, previdência, assistência e educação. Esse crescimento da máquina estatal, que passou a ser prestadora de serviços públicos, investidora e empresária, gerou um fortalecimento exacerbado do Poder Executivo e a ampliação da burocracia.

O Estado cada vez mais se imiscuiu em áreas econômicas e sociais, através de novas estruturas, com o desenvolvimento de uma máquina burocrática que, embora aja sob as diretrizes político-governamentais, deve buscar uma atuação escorreita, que se impõe como direito da própria sociedade[3].

A alocação realizada pelo Constituinte de 88, que segmentou as funções essenciais à Justiça em capítulo apartado dos demais Poderes, não foi despropositada. Ela prestigiou funções imprescindíveis para o equilíbrio e para a harmonia dos poderes estatais, e é sob esse aspecto que deve ser percebida a atuação do Ministério Público, da Advocacia Pública (de Estado), da Advocacia Privada e da Defensoria Pública[4].

Segundo o célebre e saudoso Moreira Neto, as funções essenciais à Justiça possuem como objetivo a defesa da juridicidade, com atuação técnica e exercente de uma parcela do poder estatal, embora destacados dos Poderes do Estado.[5]

A compreensão da Advocacia e da Advocacia Pública como funções essenciais à Justiça permite identificar, com maior correção, seu papel na configuração disposta, pelo Constituinte, para o Estado Brasileiro. É esse papel e seu status constitucional que deve orientar o jurista na tarefa de perceber as responsabilidades inerentes ao exercício das atribuições de Advogado, sob pena de, por uma intelecção inadequada, comprometer-se o sistema construído pelo Constituinte.

Quando o texto constitucional trata sobre a Advocacia Pública, identificam-se remissões a duas atividades, entendidas como funções constitucionalmente típicas. São elas: a consultoria jurídica, o assessoramento jurídico, a representação judicial e a representação extrajudicial. Funções precípuas, típicas, do profissional da Advocacia Pública e que devem ser corretamente exercidas para que se extraia de sua atuação os efeitos pretendidos pelo constituinte e pelo legislador.

Transpassando o tema para o mundo das licitações, impõe-se que a Lei nº 14.133/2021 tenta corrigir um deslocamento atípico produzido pela Lei nº 8.666/93, que destacou o órgão de assessoramento jurídico para a aprovação de minutas (função de controle), sendo esta sua única remissão à atividade explícita do Advogado nas licitações.

Com isso, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos propôs-se a mudar o panorama normativo para atuação dos órgãos de assessoramento jurídico, o que certamente fomentará uma necessidade de adaptação pelos órgãos de Advocacia Pública.

A Lei nº 14.133/2021 dispõe diversas vezes sobre a atuação do órgão de assessoramento jurídico ou sobre seus membros. Além disso, embora preserve resquício da atuação de controle para o órgão de assessoramento jurídico, outrora preconizada pela Lei anterior, induz a atuação de consultoria e assessoramento jurídico propriamente ditos e também define a obrigatoriedade de representação extrajudicial e judicial dos agentes que atuam com as licitações e contratações públicas, o que ensejará uma reformulação estratégica da atuação da Advocacia Pública na área de licitações e contratos.

Ao se referir diversas vezes à necessidade de apoiar juridicamente (exercendo consultoria e assessoramento) a atuação de diversos agentes públicos, como fiscais de contratos, pregoeiros e agentes de contratação, bem como ao reforçar o dever de defesa desses agentes, quando eles atuarem orientados pelo órgão jurídico, é evidente que a Lei nº 14.133/2021 busca induzir à Advocacia Pública, na área de licitações, que auditem menos e “Advoguem” mais.

O futuro da Advocacia na área de licitações e contratos passa pela compreensão da mensagem apresentada pelo legislador, para superar uma crise de identidade que se arrasta desde a aprovação da Lei nº 8.666/93 e avançar para o desenvolvimento de suas funções consultivas típicas, funções constitucionalmente essenciais à Justiça e fundamentais para o desenvolvimento da Administração Pública.

[1] Advogado da União. Doutorando em Direito do Estado pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Pós-graduado em Direito tributário (IDP). Pós-graduado em Ciências Jurídicas (UNP). Membro da Câmara Nacional de licitações e contratos da Consultoria Geral da União. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (12ª Edição. Ed. JusPodivm); Direito Administrativo (Coautor. 11ª Edição. Ed. Jus Podivm); RDC:  Regime Diferenciado de Contratações (2ª edição. Coautor. Ed. Jus Podivm); Terceiro Setor: entre a liberdade e o controle (Ed. Jus Podivm), Licitações e contratos nas empresas estatais (2ª edição. Coautor. Ed. Jus Podivm). Improbidade administrativa (Coautor. 4ª edição. Ed. Jus Podivm).

[2] FEITOSA, Maria Luíza P. A. Mayer. Paradigmas inconclusos: os contratos entre a autonomia privada, a regulação estatal e a globalização dos mercados. Coimbra: Coimbra, 2007. p. 152-153.

[3]SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo Cultura, 1961. p. 356.

[4] TORRES, Ronny Charles Lopes de. A responsabilidade do Advogado de estado em sua função consultiva. IN GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de. Advocacia de estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2009. P. 139-144.

[5]MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à justiça e as procuraturas constitucionais. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 45, p. 41-57, 1992.


*Texto baseado em trecho da 12ª edição do nosso livro Leis de licitações públicas comentadas.

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