Ronny Charles L. de Torres[1]
A Lei nº 14.133/2021 (NLLCA) já está vigente desde sua publicação e para muitos especialistas já é parcialmente aplicável desde então. Além disso, ela trouxe norma interessante que define a revogação postergada da legislação que será “substituída” (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e parte da Lei nº 12.462/2011), a qual ocorrerá apenas dois anos após sua publicação e vigência (da NLLCA).
Definiu-se uma revogação diferida ou postergada da legislação antiga; com tal disposição, permitiu o legislador um período de convivência normativa entre a Lei nº 14.133/2021 e a legislação que ela irá revogar, sendo tal efeito jurídico (revogação) postergado para dois anos após a publicação da NLLCA.
Obviamente, convivendo juridicamente os dois regimes licitatórios (o novo e o antigo), é presumível a possibilidade da aplicação de ambos. Dessa forma, durante os dois anos de convivência entre as leis, será possível optar-se pela utilização de uma ou outra legislação, mesmo que alternadamente, mas sendo vedada a aplicação simultânea ou combinada dos diversos regimes. Este disciplinamento foi feito pelo caput do artigo 191 da Lei nº 14.133/2021, segundo o qual até o decurso do prazo de dois anos após a sua publicação, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com legislação nova ou de acordo com a legislação antiga, devendo a opção ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedando-se a aplicação combinada de ambas as legislações.
Em outras palavras, durante os dois anos após a publicação e início de vigência da Lei 14.133/2021, a mesma vigorará conjuntamente com as legislações anteriores (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e Lei nº 12.462/2011). Neste período, o gestor público poderá optar pela aplicação da NLLCA (Lei nº 14.133/2021) ou pela aplicação das legislações anteriores (que ela revogará), não sendo permitida a aplicação híbrida ou combinada.
Para Rafael Carvalho Rezende Oliveira, com quem concordamos, a fixação do prazo para revogação diferida dos diplomas tradicionais de licitação teve por objetivo “estabelecer um regime de transição para que os gestores públicos conheçam melhor o novo regime licitatório, qualifiquem as suas equipes e promovam, paulatinamente, as adequações institucionais necessárias para efetividade dos dispositivos da nova Lei de Licitações”. [2]
Esta regra, portanto, permitiu um período de experimentação, de convivência normativa do regime licitatório novo com o antigo, admitindo a aplicabilidade de um ou outro, em cada licitação ou contratação direta.
Contudo, embora seja clara a possibilidade desta convivência normativa, há dúvidas práticas sobre sua aplicação aos processos licitatórios, notadamente em relação ao termo final para a aplicação do regime licitatório anterior, que será revogado pela Lei nº 14.133/2021, bem como sobre qual o regime jurídico a ser aplicado aos processos licitatórios e contratações fundamentados na legislação anterior, iniciados porém não concluídos antes de sua revogação.
Pois bem, diante da convivência normativa admitida pelo legislador, entre a legislação nova e a antiga, sendo a licitação um processo que envolve um encadeamento de atos, com relevante consumo de tempo, que gera uma contratação que se prolonga por um período considerável, o legislador precisou tratar sobre os limites para a aplicação desta convivência normativa, o fazendo muito claramente, por exemplo, no texto do artigo 191 da Lei nº 14.133/2021.
Segundo o referido dispositivo, até o decurso do prazo de 2 (dois) anos, contado da data de publicação da Lei nº 14.133/21, a Administração poderá “optar por licitar ou contratar” diretamente de acordo com a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos ou de acordo com os antigos regimes jurídicos licitatórios (Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011).
Também segundo o artigo 191, a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, sendo vedada a aplicação combinada da NLLCA com a legislação antiga.
A alusão à indicação expressa no edital decorre de uma razão óbvia e já constava em regra similar na Lei nº 12.462/2011 (§2º do artigo 1º). Isso porque, existindo dois regimes jurídicos licitatórios aplicáveis, é imprescindível que o edital da licitação indique qual deles será aplicado ao certame, para que os fornecedores interessados possam saber qual regramento será aplicável àquela licitação.
O parágrafo único do artigo 191 complementa o comando legal, ao definir que, caso a Administração opte por licitar ou contratar de acordo com os antigos regimes licitatórios, o contrato respectivo será regido pelas regras neles previstas durante toda a sua vigência, mesmo após a revogação da legislação anterior. Com isso, o legislador define uma interessante regra de ultratividade da legislação anterior, ao impor a aplicação dos antigos regimes licitatórios, mesmo após sua revogação.
Acerca desta interessante ultratividade, não há dúvida. Contudo, persiste certa divergência de entendimentos sobre qual o ato jurídico que determina a aplicação da eventual ultratividade da legislação anterior. A “opção por licitar ou contratar”, garantidora da ultratividade, ocorreria na fase preparatória (interna) ou apenas com a divulgação do Edital (fase externa)?
Há quem defenda que a “opção” apenas se daria com a publicação do edital[3]. Outra corrente da doutrina defende que a “opção” é realizada ainda na fase preparatória, através de ato interno, pela autoridade competente, que deve ser considerado para fins de definição do ato jurídico que determina a aplicação da eventual ultratividade da legislação anterior[4].
Nada obstante a divergência doutrinária, é fundamental interpretar o dispositivo para identificar o sentido da expressão escolhida pelo legislador.
Pessoalmente, entendemos que a expressão legal “opção por licitar”, para fins de definição do ato jurídico definidor como referência para aplicação da ultratividade, deve ser a manifestação pela autoridade competente, ainda na fase preparatória, que opte pela instrução do processo de licitação ou de contratação direta sob o regime licitatório anterior (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e Lei nº 12.462/2011).
Primeiramente, importa compreender que a “opção” por licitar ou contratar diretamente de acordo com o regime anterior ocorrerá, por uma questão lógica, antes da publicação do edital. Na prática, em atos como a aprovação do Termo de Referência, Estudo Técnico Preliminar, notas técnicas ou confecção das pertinentes minutas, já poderá ser definido o regime licitatório escolhido no respectivo processo, em momento muito anterior ao da publicação do edital.
De maneira quase que intuitiva parece óbvio que a “opção por licitar”, com um determinado regime licitatório, antecede o início da fase externa da licitação, que se dá apenas com a publicação do edital.
Além disso, convém frisar, diante da proximidade do fim do prazo de convivência, que em princípio ocorrerá no início de abril de 2023, a definição da publicação do edital como ato jurídico definidor da aplicação da ultratividade exigirá que as novas pretensões contratuais sejam perseguidas em processos iniciados ainda em 2022, exclusivamente com o regime jurídico da NLLCA, o que, na prática, tolhe e reduz o prazo de “opção” admitido pelo legislador, afrontando uma interpretação sistemática desses dispositivos.
Isso porque, como a tramitação da fase preparatória dos processos licitatórios consome vários meses, antes da publicação do edital, a iniciação de um processo, ainda que no início de 2023, dificilmente conseguiria alcançar a publicação do edital até o fim do prazo de convivência normativa, notadamente diante dos riscos e contingências que podem dificultar a conclusão do processamento em sua etapa preparatória.
Ilustremos: presumindo-se uma média de 06 meses de duração do processo, isso significaria que as demandas “licitáveis” autorizadas para autuação ainda em outubro de 2022, não deveriam mais adotar os regimes licitatórios anteriores, sob pena de assumir-se risco de prejuízo aos cofres públicos, pela perda de toda a instrução processual, em virtude da não publicação do edital ainda no prazo de convivência normativa.
Nessa linha, a interpretação que restringe a “opção por licitar” à publicação do edital resultará em diversas licitações iniciadas sob o regime antigo, que não serão concluídas no período de convivência normativa, resultando retrabalho e ampliação dos custos transacionais e burocráticos de centenas ou quiçá milhares de processos licitatórios.
Vale frisar que isso vale tanto para os processos licitatórios mais rotineiros, que adotam os critérios menor preço e maior desconto, como para os mais complexos, como obras de engenharia, que adotem, por exemplo, o critério de julgamento técnica e preço. Simplesmente já não poderiam ou deveriam adotar os regimes licitatórios antigos, pela impossibilidade de conclusão da fase preparatória e consequente publicação do edital, em tempo hábil.
Assim, se tal “opção” fosse considerada apenas no momento da publicação do Edital, não seria recomendável a utilização dos regimes licitatórios anteriores mesmo em processos iniciados em outubro de 2022, tendo em vista o alto risco de que grande parte não estaria apta à publicação do instrumento convocatório até o momento da deadline estabelecida no inciso II, do art. 193, produzindo prejuízos pela perda de tempo, não atendimento de demandas sensíveis e de recursos públicos em processos que precisarão ser integralmente alterados
Em uma compreensão utilitarista[5], o entendimento de que o momento em que se considera feita a opção por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II, do art. 193, da Lei nº 14.133/2021 (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/02 e arts. 1º ao 47-A da Lei nº 12.462/11) se daria na fase preparatória, parece-nos mais adequado que aquele que aponta a publicação do edital com marco para a definição da ultratividade legal.
Outrossim, uma interpretação sistemática também favorece a compreensão de que a opção por licitar se daria na fase preparatória. Isso porque a definição da publicação do edital como ato jurídico definidor da aplicação da ultratividade acaba, na prática, por suprimir parcialmente o prazo de dois anos de convivência normativa estabelecido pelo legislador.
Em um processo licitatório que envolve um encadeamento de diversos atos, com decisões administrativas definidas e com efeitos jurídicos próprios, ainda durante a etapa de planejamento, é plenamente legítimo e mais adequado interpretar que a “opção por licitar” de acordo com o regime licitatório antigo, durante o período de convivência normativa, ocorra antes da publicação do edital.
Assim, por exemplo, durante o período de convivência normativa, ao confeccionar e aprovar o estudo técnico preliminar, o termo de referência ou as minutas editalícias, mesmo antes da publicação do edital, já poder-se-á definir-se a “opção por licitar” com o regime licitatório antigo ou o regime licitatório da NLLCA, detendo, a própria autoridade responsável pela instauração inicial do processo, competência para definir o regime licitatório aplicável, realizando a formalização da devida “opção”.
Esta, em nossa opinião, nada obstante nosso respeito pelas legítimas interpretações diferentes, é a melhor opção interpretativa para a norma extraída do artigo 191 da Lei nº 14.133/2021.
[1] Advogado da União. Doutorando em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União (AGU). Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (13ª ed. Jus Podivm); Direito Administrativo (coautor. 12ª ed. Jus Podivm); Licitações e Contratos nas Empresas Estatais (coautor. 2ª edição. Jus Podivm) e Improbidade Administrativa (coautor. 4ª ed. Jus Podivm). Análise Econômica das licitações e contratos (coautor. Fórum).
[2] (OLIVEIRA, Rafael C. Rezende. Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Prática. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 7).
[3] Neste sentido, os ilustres Marçal Justen Filho e Rafael Sérgio Oliveira. Vide: JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1768; e CAMARÃO, Tatiana; FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 614.
[4] Neste sentido, os também ilustres Joel Niebuhr, Fernanda Marinela e Rogério Cunha. Vide: NIEBUHR, Joel de menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 5ªedição. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 60 e 61. MARINELA, Fernanda. CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Licitações e Contratos. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. 880. p.40-43
[5] MOTA, Louise Menegaz de Barros. Jeremy Bentham: Entre o esquecimento e o retorno às ideias de um visionário. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 49 n. 196 out./dez. 2012. p. 284.
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