Christianne Stroppa[1]
Ronny Charles L. de Torres[2]
SUMARIO: INTRODUÇÃO. 2. IMPACTOS DA MP NO AUXÍLIO-ALIMENTAÇÃO. 3. EVOLUÇAO DO ENTENDIMENTO SOBRE AS TAXAS NEGATIVAS. 4. IMPACTOS DA MP NOS CONTRATOS VIGENTES. 5. MAS, E O FUTURO?
INTRODUÇÃO
No último dia 25 de março, foi expedida a Medida Provisória nº 1.108, dispondo sobre o pagamento do auxílio-alimentação de que trata o § 2º do art. 457 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e alterando a Lei nº 6.321, de 14 de abril de 1976, e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.
Para o objeto de análise do presente escrito, importa destacar que a referida MP altera a Lei do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, instituído pela Lei nº 6.321/1976 e, atualmente, regulamentado pelo Decreto Federal nº 10.854/2021.
O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) foi instituído pela Lei nº 6.321, de 14 de abril de 1976, e, atualmente, encontra-se regulamentado pelo Decreto nº 10.854, de 10 de novembro de 2021, com instruções complementares estabelecidas pela Portaria MTP/GM nº 672, de 8 de novembro de 2021. O Programa busca atender prioritariamente os trabalhadores de baixa renda e ele fomenta a concessão de benefícios alimentares aos trabalhadores.
A Lei do Programa de Alimentação determina que o auxílio-alimentação seja destinado exclusivamente ao pagamento de refeição em restaurantes ou de gêneros alimentícios comprados no comércio. As alterações apresentadas pela referida Medida Provisória, embora motivadas por interesses legítimos, vem provocando sérias dúvidas sobre sua aplicação, que talvez não tenham sido devidamente ponderadas pelos autores de seu texto.
Pois bem, o presente escrito, de maneira sucinta, tem por objetivo trazer algumas luzes sobre o tema.
- IMPACTOS DA MP NO AUXÍLIO-ALIMENTAÇÃO
O artigo 3º da Medida Provisória nº 1.108/2022 definiu que o empregador, ao contratar pessoa jurídica para o fornecimento do auxílio-alimentação, não poderá exigir ou receber: a) qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado; b) prazos de repasse ou pagamento que descaracterizem a natureza pré-paga dos valores a serem disponibilizados aos trabalhadores; ou c) outras verbas e benefícios diretos ou indiretos de qualquer natureza não vinculados diretamente à promoção de saúde e segurança alimentar do trabalhador, no âmbito de contratos firmados com empresas emissoras de instrumentos de pagamento de auxílio-alimentação.
Ora, tendo em vista que há órgãos e entidades públicas que firmam contratações para fornecimento de auxílio-alimentação, questão a merecer resposta é: como a recente Medida Provisória nº 1.108/2022 afetará os contratos administrativos em curso, com este objeto?
O governo alega que a regra visa impedir que o auxílio, que tem tratamento tributário favorável, seja destinado à aquisição de produtos não relacionados à alimentação. Tal preocupação é questionável, por pressupor que os beneficiários recebedores do auxílio prescindirão de sua alimentação para gastos outros. De qualquer forma, sendo este um risco plausível, é legítima a regra que ao menos induza a utilização apropriada dos referidos créditos.
De qualquer forma, em relação a isto, não há impacto direto nos contratos administrativos firmados, por presumir-se que nenhum deles previa explicitamente o uso do auxílio alimentação para outras finalidades.
Contudo, em seu artigo terceiro, a Medida Provisória também proíbe as empresas de receber descontos na contratação de empresas fornecedoras de tíquetes de alimentação[3]. A ideia, imagina-se, é evitar que a empresa contratante consiga pagar um valor menor do que aquele do crédito ofertado ao trabalhador que recebe o auxílio. Ademais, o governo afirma que o custo do desconto é, posteriormente, transferido aos restaurantes e supermercados por meio de tarifas mais altas, e destes aos trabalhadores.
Assim, para coibir o “uso inadequado” do auxílio-alimentação pelos empregadores ou pelas empresas emissoras dos tíquetes, a MP prevê multa entre R$ 5 mil a R$ 50 mil, aplicada em dobro, em caso de reincidência ou embaraço à fiscalização.
O estabelecimento que comercializa produtos não relacionados ao auxílio-alimentação e a empresa que o credenciou sujeitam-se às mesmas multas.[4]
Com a devida venia, notadamente em relação às proibições previstas no artigo 3º, esta é uma regra que parece trazer mais problemas que soluções, notadamente em relação aos contratos administrativos.
De maneira curiosa, o Governo percebeu a obviedade de que, no capitalismo, custos tendem a ser transferidos pelo fornecedor, na definição de seu preço. Porém, parece ignorar que eventual empecilho a esta transferência acabará resultando em reflexos na própria definição do preço. Ao invés de deixar à livre negociação das partes e dos usuários, a resolução deste problema, a Medida Provisória tenta criar um bloqueio a este tipo de pactuação entre o empregador e a pessoa jurídica contratada para o fornecimento do auxílio-alimentação.
Hoje, é cediço que em licitações para a contratação do fornecimento de auxílio alimentação, a Administração Pública costuma conseguir desconto em relação aos “preços” a serem oferecidos como crédito aos trabalhadores. Não é incomum que licitações com este objeto tenham descontos tais, que gerem propostas finais inferiores ao crédito a ser oferecido para os trabalhadores. Mas por que isso ocorreria? Altruísmo ou generosidade das empresas licitantes? Certamente que não.
Isso se dá, via de regra, por decorrência da própria organização do mercado. Neste, as empresas fornecedoras dos “vales” firmam contratos com as empresas fornecedoras dos produtos, buscando com elas descontos, comissões ou bônus pela compra gerada pelos usuários de seus créditos alimentares (auxílio alimentação).
Sendo este um excedente disponível, assim como uma margem de lucro, diante de uma pretensão contratual interessante, o fornecedor pode usar esse potencial retorno financeiro como algo a ser utilizado para vencer uma licitação.
Este tipo de situação gera aquilo que se costumou chamar de pregão negativo ou pregão com taxa negativas, nos quais, ao invés de acrescer um percentual excedente em sua proposta, em relação ao crédito que precisará ser dado ao trabalhador (auxílio-alimentação), o licitante oferece ainda um desconto, resultando em uma proposta que representa um teórico dispêndio, por parte da Administração contratante, inferior ao crédito a ser gerado pela empresa.
- EVOLUÇAO DO ENTENDIMENTO SOBRE AS TAXAS NEGATIVAS
O Tribunal de Contas da União (TCU) todas as vezes que proclamou pela regularidade das taxas negativas se postou em defesa da não presunção (objetividade) de inexequibilidade das propostas (subsidiando-se no art. 48, inciso II, §1º da Lei nº 8.666/1993 e na Súmula nº 262 – TCU[5]), orientando que fossem abertas demonstrações de execução, já que, uma vez exequíveis essas propostas, representariam economicidade e vantajosidade ao contratante.
Neste sentido, o Tribunal de Contas da União já entendeu que, nas licitações para operacionalização de vale-refeição, vale-alimentação, vale-combustível e cartão combustível, “não se deve proibir o oferecimento de proposta de preço com taxa de administração zero ou negativa”, embora fosse necessária a avaliação sobre a exequibilidade de proposta com taxa de administração negativa ou de valor zero, a partir de critérios previamente fixados no edital[6].
Isso porque o TCU já compreendia que a organização do mercado específico permitia que a remuneração das empresas prestadoras dos serviços de fornecimento de vale-alimentação ou vale-refeição não se limitava ao recebimento da taxa de administração, decorrendo “também da cobrança realizada aos estabelecimentos credenciados e dos rendimentos das aplicações financeiras sobre os repasses dos contratantes, a partir do seu recebimento até o efetivo pagamento à rede conveniada”[7]. O mesmo entendimento, inclusive, é identificado em licitações que tenham por objeto o gerenciamento de frota com tecnologia de pagamento por cartão magnético[8].
Acontece que, já em 2021, o Decreto Federal nº 10.854[9] alterou as regras envolvendo o auxílio alimentação dos inscritos no PAT. Em seu art. 175, seu texto proibiu o recebimento de deságios; a imposição de descontos sobre o valor contratado; além de alterações nos prazos de repasse que descaracterizassem a natureza pré-paga dos valores ou outras verbas e; ainda, qualquer benefício direto ou indireto desconectado das finalidades do programa.
Essas proibições ganharam mais visibilidade e reforço com a supracitada Medida Provisória nº 1.108/2022 que, seguindo a linha interpretativa já manifestada no Decreto Federal, vedou a taxa negativa em seu art. 3º:
Art. 3º O empregador, ao contratar pessoa jurídica para o fornecimento do auxílio-alimentação de que trata o art. 2º, não poderá exigir ou receber:
I – qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado;
II – prazos de repasse ou pagamento que descaracterizem a natureza pré-paga dos valores a serem disponibilizados aos trabalhadores; ou
III – outras verbas e benefícios diretos ou indiretos de qualquer natureza não vinculados diretamente à promoção de saúde e segurança alimentar do trabalhador, no âmbito de contratos firmados com empresas emissoras de instrumentos de pagamento de auxílio-alimentação.
§ 1º A vedação de que trata o caput não se aplica aos contratos de fornecimento de auxílio-alimentação vigentes, até seu encerramento ou até que tenha decorrido o prazo de quatorze meses, contado da data de publicação desta Medida Provisória, o que ocorrer primeiro.
§ 2º É vedada a prorrogação de contrato de fornecimento de auxílio-alimentação em desconformidade com o disposto no caput.
Em resumo, as demonstrações de exequibilidade – possibilidade de se executar – as propostas baseadas em taxas negativas se assentavam, justamente, em receitas indiretas/adicionais/acessórias à prestação dos serviços de facilitação/fornecimento do auxílio.
As empresas, uma vez executando os contratos, supriam o déficit decorrente da não remuneração direta pelo contratante e do complemento ao valor total que haviam se obrigado com a oferta negativa, através de tratativas com a rede de fornecedores ou com a rentabilidade dos valores depositados. Na realidade, a prestação dos serviços se tornava uma oportunidade para outros negócios, e a Administração Pública, ao conferir a exequibilidade das propostas nestes termos, consentia com essa prática, o que, com as recentes alterações, deixa de ser viável.
Obviamente, em relação às licitações, a aplicação da medida provisória sustará o efeito dos arranjos de mercado na redução do preço proposto, tornando as contratações mais caras, embora isso não impeça, per si, que os arranjos de mercado continuem existindo.
Ademais, imaginando que os arranjos são normais nesse mercado, o obstáculo definido pela Medida Provisória trará dificuldades na definição do vencedor da licitação, uma vez que, provavelmente, diversos licitantes poderão apresentar preços inferiores ao estabelecido artificialmente como mínimo.
Em uma comparação, seria como se o preço médio de mercado de um produto fosse 100 e a Administração estivesse impelida pela Medida Provisória a exigir propostas iguais ou superiores a 120. A identificação do vencedor desta licitação tende a se dar através de sorteio ou de acordo escuso entre os próprios licitantes.
Com a aplicação das regras da MP, a realização de licitação tenderá a ser uma solução ineficiente para a escolha do contratado, já que todos os interessados tenderão a ter o mesmo menor preço (desconto zerado). Assim, caso esse dispositivo não seja revisto pelo Poder Legislativo, talvez a solução prática se dê com a realização de Credenciamento, instaurado por chamamento público, como instrumento apto, que permita ao usuário a escolha da credenciada que lhe oferecerá o vale-alimentação ou vale-refeição.
Uma vez credenciadas as empresas interessadas, poderá o servidor público escolher a empresa que melhor lhe convêm, fazendo com que a transferência de benefícios se dê diretamente ao usuário, para atrair sua escolha.
- IMPACTOS DA MP NOS CONTRATOS VIGENTES
O contrato administrativo pode ser entendido como “um tipo de avença travada entre a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado”[10].
Em consequência, contém os seguintes requisitos: é sempre bilateral e, em regra, comutativo, sinalagmático, formal, oneroso e realizado intuitu personae. Com isto, podemos afirmar que é um acordo de vontades (e não um ato unilateral e impositivo da Administração); é comutativo, porque estabelece compensações recíprocas e equivalentes para as partes; é sinalagmático, porque estabelece obrigações recíprocas; é formal, porque se expressa por escrito e com requisitos especiais; é oneroso, porque remunerado na forma convencionada; e é intuitu personae, porque exige a pessoa do contratado para sua execução.
Ademais, em face do princípio da supremacia do interesse público, norteador de todo o agir da Administração Pública, o contrato administrativo atribui à Contratante os poderes relacionados no artigo 58 da Lei nº 8.666/93, quais sejam: determinar modificações nas prestações devidas pelo contratante em função das necessidades públicas; acompanhar e fiscalizar continuamente a execução dele; impor as sanções estipuladas quando faltas do obrigado as ensejarem; e rescindir o contrato sponte propria se o interesse público o demandar.
Destarte, para que haja equilíbrio nas relações jurídicas, o mesmo contrato assegura à contratada alguns direitos oponíveis aos poderes da contratante, dentre os quais podemos destacar: preservação da identidade do objeto; alegação da exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus)[11]; e manutenção do equilíbrio da equação econômico-financeira do contrato, ou seja, integral proteção quanto às aspirações econômicas que ditaram seu ingresso no vínculo e se substanciaram, de direito, por ocasião da avença, consoante os termos ali estipulados.
Evidente, então, que o chamado contrato administrativo de modo algum configura relação em que assistem vantagens e poderes apenas para uma das partes. Nesse sentido, importante trazer à colação as lições de Caio Tácito, quando alude a um traço imprescindível do contrato administrativo, consistente no resguardo dos interesses do contratante, designado direito ao equilíbrio econômico-financeiro:
Essa garantia do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo preserva a sua natureza comutativa (equivalência intrínseca entre as prestações) e sinalagmática (reciprocidade das obrigações)[12].
A equação econômico-financeira do contrato é “a relação que as partes estabelecem inicialmente, no ajuste, entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração para a justa remuneração da obra, do serviço ou do fornecimento”[13]. Para Marçal Justen Filho:
[…] significa a relação (de fato) existente entre o conjunto dos encargos impostos ao particular e a remuneração correspondente.
(…) abrange todos os encargos impostos à parte, ainda quando não se configurem como ‘deveres jurídicos’ propriamente ditos. São relevantes os prazos de início, execução, recebimento provisório e definitivo previstos no ato convocatório; os processos tecnológicos a serem aplicados; as matérias-primas a serem utilizadas; as distâncias para entrega dos bens; o prazo para pagamento etc.
(…) delineia-se a partir da elaboração do ato convocatório. Porém, a equação se firma no instante em que a proposta é apresentada. Aceita a proposta pela Administração está consagrada a equação econômico-financeira dela constante. A partir de então, essa equação está protegida e assegurada pelo Direito [14].
Ou seja, é a correlação entre o objeto do contrato e sua remuneração, originariamente prevista e fixada pelas partes em números absolutos ou em escala móvel, e que deve ser conservada durante toda a execução do contrato.
Até porque, enquanto a Administração visa o atendimento das necessidades públicas, o contratado objetiva lucro, através da remuneração consubstanciada nas cláusulas econômico-financeiras. Nota Celso Antônio que:
“na teoria do contrato administrativo, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é aceita como verdadeiro ‘artigo de fé’. Doutrina e jurisprudência brasileiras, em sintonia com o pensamento alienígena, assentaram-se pacificamente em que, nesse tipo de avença, o contratado goza de sólida proteção no que concerne ao ângulo patrimonial do vínculo, até mesmo como contrapartida das prerrogativas reconhecíveis ao contratante governamental. Este indiscutido direito, como é óbvio – mas importa dizê-lo – corresponde a uma garantia verdadeira, real, substancial e não a uma garantia fictícia, simulada, nominal.
(…)
O respeito a tal equação só existe quando ambas as partes cumprem à fieldade o que nela se traduziu. Então, uma delas, o contratado, tem que executar a prestação ou as prestações devidas com absoluto rigor e exatidão. A outra parte, o contratante público, está, de seu turno, adstrito a assegurar ao contratado, com o pagamento ou pagamentos, o valor que, à época da fixação de seus termos, por ambos foi havida como remuneração apta a acobertar o custo da prestação e o lucro que a ela corresponderia.
(…)
A proposta aceita consubstancia, então, a base econômica em vista da qual se compõe o equilíbrio do contrato. É dizer: aos encargos previstos corresponderá uma contrapartida econômica dessarte qualificada como idônea para acobertar os custos em que incorrerá o proponente com o contrato e para remunerar-lhe a atividade devida.
É bem de ver, pois que a equação econômico-financeira tem seus termos definidos antes do travamento do contrato, pois são ditos termos que recebem a avaliação de preço, em vista da qual alguém se qualifica para ser o contratado. Em conclusão: nas licitações em que o preço é fator final e decisivo, a adjudicação traz consigo o reconhecimento de que a composição econômica proposta é a contrapartida adequada dos encargos previstos no certame, motivo pelo qual deverá ser intransigentemente preservada a igualdade que disto resulta. Daí que a citada igualdade é pra ser mantida até conclusão do contrato, pois aqueles termos econômicos (correlatos aos encargos supostos) é que credenciaram o ofertante à constituição do vínculo. Por força disto, a Administração só não pode, mas deve, mediante os necessários reajustes, manter a equação econômico que proclamou satisfatória, inclusive porque impotentes para obstar-lhes a aplicação” [15] (g.n.).
É certo que durante toda a vigência do contrato deve a Administração Pública manter intangível a proposta apresentada pelo contratado. Destarte, caso esse mesmo contrato tenha sofrido inúmeras alterações, não se pode imaginar que a proposta ainda seja suficiente para cobrir todos os novos custos. Imperioso, então, que se proceda à devida revisão dessa relação jurídica.
Referida correlação deve ser mantida durante todo o período de vigência do contrato. Isto significa dizer que, os Contratos Administrativos, da mesma forma que os regidos pelo direito privado, são atingidos pela pacta sunt servanda (imutabilidade do inicialmente pactuado no contrato).
Entretanto, situações podem ocorrer que venham a causar desequilíbrio e que permitem o acerto da equação econômico-financeira.
Dentre as cláusulas contratuais, identifica-se as que são mutáveis unilateralmente e as que os são consensualmente.
As cláusulas mutáveis unilateralmente são aquelas pertinentes à adequação do objeto à satisfação da finalidade buscada por meio da contratação. Isso envolve o projeto e suas decorrências, tais como o local, o material, o prazo, a tecnologia, os quantitativos.
As cláusulas mutáveis consensualmente são aquelas que envolvem a alteração do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, o qual não pode ser alterado unilateralmente pela Administração.[16]
Como as obrigações contratuais hão de ser entendidas em correlação com o estado das coisas ao tempo em que se contratou, quando algum dos lados da balança se altera, surge um desequilíbrio que pode ser resolvido de duas maneiras: por meio de um reajuste (aléa[17] econômica ordinária) ou através de revisão de preços (álea econômica extraordinária e extracontratual).
Isto porque, quando afeta a álea econômica ordinária, o desequilíbrio é absorvido, por decorrer de situações normais da execução. Nesse caso, basta o reajustamento contratual de preços, que se faz em atendimento à condição do próprio contrato.
Com relação aos contratos vigentes, a intelecção do art. 3º, § 1º, da Medida Provisória nº 1.108/2022, os excepciona da vedação, porquanto indica expressamente que não se aplica aos contratos de fornecimento de auxílio-alimentação vigentes até seu encerramento ou até que tenha decorrido o prazo de quatorze meses, contado da data de publicação desta Medida Provisória, o que ocorrer primeiro.
Entretanto, o § 2º do mesmo dispositivo, veda a prorrogação de contratos em desacordo com as novas regras.
Qual a solução, na prática, para a aplicação deste dispositivo?
Para uma primeira corrente, haveria, então, necessidade de adequação dos contratos administrativos formalizados, tendo como fundamento o fato do príncipe previsto na alínea ‘d’, inciso II, art. 65 da Lei nº 8.666/1993, o que implicaria ser formalizada por acordo entre as partes, já que afeta diretamente o equilíbrio econômico-financeiro[18].
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, apenas poderia ser enquadrado como fato do príncipe se a ordem geral, não relacionada diretamente com o contrato, mas que nele repercute, provocando desequilíbrio econômico-financeiro em detrimento do contratado. Além disso, segundo a autora, somente será aplicável se a autoridade responsável for da mesma esfera de governo em que se celebrou o contrato; se for de outra esfera, aplica-se a teoria da imprevisão[19].
José dos Santos Carvalho Filho, embora professe a convicção de que o fato do príncipe pode restar configurado por medidas de autoridade alheia à estrutura da administração contratante, contrapõe-se à restrição anteriormente apontada. Fundamenta: “com a devida vênia, entendemos que o ‘príncipe’ é o Estado ou qualquer de suas manifestações internas”[20]. Esse parece ser o mesmo entendimento de Jessé Torres Pereira Junior: “pode ser tanto da Administração Pública contratante como de qualquer outra esfera de poder”[21]. Essa se afigura como a postura doutrinária dominante e agasalha, certamente, maiores traços de razoabilidade.
Nada obstante, entende-se como teoria da imprevisão “todo acontecimento externo ao contrato, estranho à vontade das partes, imprevisível e inevitável, que causa um desequilíbrio muito grande, tornando a execução do contrato excessivamente onerosa para o contratado”[22].
Como consequência da teoria da imprevisão, deve o contrato ser revisado, como forma de recomposição da equação econômico-financeira eventualmente violada, desde que presentes os seguintes requisitos:
(i) evento imprevisível ou previsível, mas de consequências incalculáveis;
(ii) não pode ter culpa de qualquer das partes;
(iii) nexo causal entre o evento e o retardamento ou a situação impeditiva;
(iv) onerosidade excessiva, pensando globalmente na mesma.
(v) evento tem que ser extracontratual.
De qualquer forma, como reequilíbrio econômico decorrente de fato do príncipe ou aplicação da teoria da imprevisão, para a primeira corrente, considerando os requisitos acima, o contexto da edição da Medida Provisória nº 1.108/2022 e, em especial, a situação descrita no § 2º, do seu art. 3º, nos contratos já firmados, seria obrigatória a revisão do percentual negativo de desconto originalmente indicado pela contratada, o que implica, em princípio, no não impedimento da aceitação do novo percentual, no montante de 0,00% (zero por cento).
Uma segunda corrente, contudo, identifica dificuldade na aplicação deste entendimento, compreendendo que o §2º do artigo 3º da Medida Provisória nº 1108, ao vedar a prorrogação de contrato de fornecimento de auxílio-alimentação em desconformidade com o disposto no caput, acaba prejudicando a continuidade desses pactos contratuais, não sendo possível a aplicação da teoria da imprevisão ou reequilíbrio econômico.
Isso ocorreria porque, nada obstante a regra do artigo 3º, os acordos entre as empresas prestadoras dos serviços de fornecimento de vale-alimentação ou vale-refeição e os estabelecimentos credenciados, bem como os rendimentos das aplicações financeiras sobre os repasses dos contratantes, persistiriam. Nesta feita, a aplicação do obstáculo definido pelo referido dispositivo não teria o condão de impactar economicamente o contrato.
Ter-se-ia na espécie, um fato do príncipe que não teria repercussão econômica direta nos custos da contratação. Assim, a aplicação do reequilíbrio para alterar o percentual de desconto para uma alíquota zero, ao invés de equilibrar, traria desequilíbrio à equação econômica do contrato, notadamente em prejuízo ao órgão público contratante.
Assim, para esta segunda corrente, não seria possível a respectiva alteração contratual, o que resultaria no impedimento à continuidade da contratação, nos termos definidos pela licitação, solução gerada pela despropositada redação do §2º do art. 3º.
- MAS, E O FUTURO?
Em consulta ao site do Congresso Nacional[23], verifica-se que o prazo para deliberação da citada Medida Provisória foi prorrogado até 7 de agosto p.f.[24]
Entretanto, mesmo ciente de que toda Medida Provisória é norma com força de lei, necessária a posterior apreciação pelas Casas do Congresso Nacional (Câmara e Senado) para se converter definitivamente em lei ordinária.
Assim, tanto há chance de ela ser promulgada, quanto de ser rejeitada ou até de perder a eficácia. Nesse caso, “o Congresso Nacional detém a prerrogativa de disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas decorrentes de sua edição. Não se materializando a edição do referido decreto legislativo no prazo de 60 (sessenta) dias, as relações jurídicas constituídas durante o período de vigência conservam-se regidas pela MPV. Cabe destacar, ainda, que aprovado um PLV, a MPV mantém-se integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto”[25].
Outro ponto se refere à eventual questionamento acerca da constitucionalidade do disciplinado na citada Medida Provisória. Aqui, a resposta pode não ser tão simples, porquanto, “nos termos da jurisprudência hoje assentada pelo Supremo Tribunal Federal, o destino da ação direta de inconstitucionalidade proposta em face de medida provisória cuja conversão em lei se deu de forma intercorrente dependerá: (i) da ‘modalidade’ da inconstitucionalidade arguida, isto é, se o vício aferido é de ordem formal ou material; (ii) se material, a ação pode prosseguir caso o conteúdo da lei de conversão seja fiel ao da medida provisória, sem que seja necessário sequer o aditamento da petição inicial; (iii) ainda se material, em havendo alteração do texto da medida provisória pela lei de conversão, a ação direta de constitucionalidade resta prejudicada, tendo em vista o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, sendo necessário o ajuizamento de nova medida, agora em face da lei de conversão; (iv) se exclusivamente formal, com a conversão da medida provisória em lei, também conforme juízo propalado pela Suprema Corte, estaria suprimido o vício, perdendo a ação direta de inconstitucionalidade seu objeto”[26].
Pensamos que o ideal seria uma melhor reflexão do poder executivo, sobre o texto da Medida Provisória, para corrigir os rumos canhestros propostos por seu texto, no âmbito das contratações públicas.
Entretanto, a depender do futuro dessa Medida Provisória, em especial se com sua conversão em Lei, a questão continuar a ser disciplinada nos termos atuais, diversos problemas práticos poderão ser identificados nos respectivos contratos administrativos.
[1] Advogada especialista em Licitações e Contratos Administrativos; Professora Doutora e Mestre de Direito Administrativo na PUC/SP;
Assessora de Controle Externo no Tribunal de Contas do Município de São Paulo.
[2] Advogado da União. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da AGU.
Doutorando em Direito do Estado (UFPE). Mestre em Direito Econômico (UFPB). Pós-graduado em Direito tributário (IDP) e em Ciências Jurídicas (UNP). Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (13ª Edição. Ed. JusPodivm);
[3] “A unanimidade entre todos os participantes do mercado está no fim do rebate. Essa prática comum no mercado de tickets alimentação é uma forma que as empresas encontraram para conquistar clientes.
A operadora do cartão oferece um desconto para a empresa que fechar contrato com ela. Se a companhia precisa creditar R$ 1.000 em um cartão de vale-alimentação, a facilitadora aceita o repasse de um percentual menor, cobrindo o valor que falta.
O problema é que isso passa a ser um custo da facilitadora, que o repassa para bares e restaurantes através da taxa cobrada pela transação. O estabelecimento comercial também não fica com o prejuízo e ele vai parar no prato do trabalhador.
A expectativa de todos é que com o fim do rebate ocorra uma diminuição no preço das refeições fora do lar.
A versão original da MP, apresentada pelo Ministério do Trabalho e Previdência, já propunha o fim concessão de descontos na contratação de empresas fornecedoras de auxílio alimentação. O argumento do governo é que a prática causa prejuízo ao trabalhador.” (Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/08/relator-propoe-vale-alimentacao-em-dinheiro-restaurantes-veem-risco.shtml . Acesso em: 2 Ago. 2022)
[4] Medida provisória regulamenta teletrabalho e muda regras do auxílio-alimentação. Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/861554-medida-provisoria-regulamenta-teletrabalho-e-muda-regras-do-auxilio-alimentacao/ . Acesso em: 27 Jun. 2022.
[5] O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas “a” e “b”, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta.
[6] TCU. Acórdão 2004/2018 Primeira Câmara (Representação, Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues).
[7] TCU. Acórdão 1482/2019 Plenário (Denúncia, Relator Ministro-Substituto Augusto Sherman).
[8] TCU. Acórdão 321/2021 Plenário (Representação, Relator Ministro Augusto Nardes).
[9] No dia 11 de julho foi publicada decisão exarada pelo Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, extinguindo os processos movidos por duas entidades contra dispositivos do referido Decreto Federal. As ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 7041 e 7133) foram ajuizadas pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) e pela Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT).Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/07/14/stf-julga-extintas-acoes-contra-decreto-do-vale-refeicao.ghtml . Acesso em: 2 Ago. 2022.
[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 15. ed., 2022, Malheiros, ps. 569 e 170.
[11] Com certas restrições definidas pelo regime jurídico de direito público, protetivo ao contrato administrativo.
[12] TÁCITO, Caio. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 292.
[13] MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 15. ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 264.
[14] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 18. ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1286-1287.
[15] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Licitação – Leis de Mercado e Preços – Equilíbrio Econômico-Financeiro, RTDP 09/2005, p. 78-95.
[16] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 18. ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1279.
[17] Álea – probabilidade de perda concomitante à probabilidade de lucro.
[18] OLIVEIRA, Ricardo Alexandre Pinheiro de. O equilíbrio econômico-financeiro lato sensu dos contratos administrativos e as suas múltiplas espécies. Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 216, p. 125-137, fev. 2012.
[19] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 321.
[20] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 218.
[21] PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei de Licitações e Contratações da Administração Pública. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 656.
[22] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. 35. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 321.
[23] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/152406 . Acesso em: 27 de Jun. 2022.
[24] A Câmara dos Deputados aprovou no dia 2 de agosto, por 248 votos a 159, o texto-base da medida provisória. Os deputados vão analisar ainda os chamados destaques. Finalizada essa etapa, o texto vai ao Senado. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/08/03/camara-aprova-texto-base-de-medida-provisoria-que-altera-regras-para-auxilio-alimentacao-e-estabelece-teletrabalho.ghtml . Acesso em: 3 Ago. 2022.
[25] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/entenda-a-tramitacao-da-medida-provisoria . Acesso em: 27 Jun. 2022.
[26] MAMARI FILHO, Luís Sérgio S. O controle concentrado de constitucionalidade e a intercorrente conversão em lei de medida provisória. Brasília. a. 43, n. 170, abr./jun., 2006. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/92747/Mamari%20Filho%20Luis.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 27 de Jun. 2022.
Parabéns pela matéria LICITAÇÕES PÚBLICAS E O PAGAMENTO DO AUXÍLIO-ALIMENTAÇÃO – Medida Provisória 1108, muito didática e esclarecedora. Todavia, com a sua expertise no assunto, como ficaria as parcerias pela lei federal 13019/2014, para selecionar entidades sem fins lucrativos que tenha como objeto administração e gerenciamento de cartões magnéticos de vale alimentação? Na sua opinião é viável este tipo de procedimento, tendo em vista a nova situação imposta pela MP? Desde já agradeço a oportunidade de acesso ao seu canal e, novamente, parabéns!!!
Parabéns pelo artigo! Muito bem colocado os principais pontos da MP.