Coronavírus e as compras públicas diretas internacionais
Por Jonas Lima, advogado especialista em licitações internacionais.
Diante da pandemia, pode-se adotar a metodologia de “problem solving” (resolução de problemas), aqui simplificada, com algumas justificativas técnicas e legais para tomada de decisões de gestores públicos.
1 – Identificando o problema
O Brasil se depara com a insuficiência fornecimento de produtos médico-hospitalares para combate ao COVID-19, sendo impossível o atendimento mesmo com grandes fornecedores, havendo a exposição de profissionais de saúde e outros agentes a riscos enormes e dificuldade para preservar vidas dos pacientes, o que demanda produtos diversos, insumos e equipamentos atualmente escassos, não havendo tempo para processos licitatórios tradicionais, nem capacidade local imediata de atendimento.
2 – Encontrando a causa raiz
A situação é excepcional, as consequências são incontornáveis, o Brasil tem dimensões continentais e o mercado de produção e distribuição de vários itens para combate à pandemia não estava preparado para fabricação e logística descentralizada, o que se agravou pela alta taxa de transmissão do vírus e a não uniformidade da disponibilidade dos itens, pois enquanto se tem parte de estoques comfabricantes ou importadoras da área privada, até de menor porte, há insuficiência no grande mercado público.
3 – Indicando soluções
Diante das limitações evidentes do mercado nacional é urgente “adicionar” soluções com estrangeiros, em contratações diretas internacionais pelos entes públicos, esses como importadores.
Vida e saúde são direitos pelos artigos 5º e 196 da Constituição de 88 e dever estatal.
E o artigo 4º da Lei nº 13.979/20, com a redação atualizada pela Medida Provisória nº 926/20, em regime temporário de licitações e contratações públicas, dispensa a licitação para “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, regra vinculada ao período da excepcionalidade, como estabelece o seu parágrafo primeiro.
A redação é aberta, sendo possível buscar fornecedores estrangeiros em tudo o que for demandado para ENFRENTAMENTO da pandemia: equipamentos de proteção individual, como máscaras e luvas, produtos médico-hospitalares, como álcool gel, insumos, equipamentos e outros itens.
Até a importação de bens de produção / máquinas para fabricação e matérias primas se pode considerar.
A Lei nº 13.979/20, em seu artigo VI, 4º-E, inciso VI, com a redação estabelecida pela Medida Provisória nº 926/20, estabelece, como regra geral, que estimativas dos preços podem obtidos por meio de, no mínimo, um dos seguintes parâmetros: a) Portal de Compras do Governo Federal; b) pesquisa publicada em mídia especializada; c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; d) contratações similares de outros entes públicos; ou e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores.
Nos termos do parágrafo segundo da norma, § 2º, excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, será dispensada a estimativa de preços.
Ocorre que, em se tratando de pesquisa com estrangeiros há um diferencial, vez que cotações envolvem valores diretamente em moeda estrangeira, o que não é a maior preocupação, pois qualquer oscilação cambial pode ser protegida com agilidade em emissão de carta de crédito e também, tem-se significativa diferença com a imunidade tributária de entes públicos, que zera todos os impostos, até mesmo os locais.
Então, quando a pesquisa de mercado envolver estrangeiros isso passa por urgente busca e contato com fornecedores que já fizeram atendimentos anteriores, “fornecedores de fornecedores”, que estão no exterior, sendo importante lembrar que uma empresa pode não ter um produto, mas “pode saber quem o tem” no exterior e pode até ser negociadora, de uma urgente compra direta internacional, sem licitação e com importação pelo próprio ente público federal, distrital, estadual ou municipal.
Câmaras comerciais e serviços de promoção comercial de outros países no Brasil podem ser consultados por fornecedores de seus países, podem ser realizados contatos diretos com entes públicos de outros países em busca de fornecedores e o Brasil também possui mais de 100 SECOMs (Setores de Promoção Comercial) em suas embaixadas e consulados espalhados pelo mundo, com contatos locais, pelos países.
Em substituição ao número de inscrição na Receita Federal, referenciado no parágrafo segundo do artigo 4º da Lei nº 13.979/20, pode-se indicar o “Tax ID” ou “VAT ID”, adotados em outros países, utilizando-se como base a norma geral do artigo 32, § 4º, da Lei nº 8.666/93 (equivalência de documentos estrangeiros).
Ainda surge desse último dispositivo um aspecto a considerar: os estrangeiros atendem requisitos, tanto quanto possível, com documentos equivalentes aos brasileiros. Então em compras excepcionais, mesmo com o artigo 4º- F da Lei nº 13.979/20 dispensando, mediante justificativa, a maioria dos requisitos de habilitação, restando a atender a prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do “caput” do artigo 7º da Constituição, tais requisitos não possuem equivalentes em certos países (isso precisa de interpretação conjunta com o citado artigo 32, § 4º, da Lei nº 8.666/93).
Quanto ao processo de importação, deve haver uma atenção redobrada nas especificações para evitar comprar algo “tecnicamente errado”, diferente do que se precisa.
E como os gestores vão se deparar com parte dos produtos estrangeiros sem registro na ANVISA, que é anuente de comércio exterior no SISCOMEX (comércio exterior), deve-selembrar que muitos dos produtos estrangeiros tem aprovações na “Food and Drug Administration – FDA” (USA), na “European Medicines Agency – EMA” (UE), na “National Medical Products Administration – NMPA” (CH) ou mais congêneres da ANVISA ou certificações com normas técnicas da “International Organization for Standardization – ISO”, sendo essas referências a minimizar riscos na importação e segurança dos produtos.
Acima de tudo, deve-se observar as normas da ANVISA, inclusive, a RDC nº 346/20, que flexibilizou a certificação de boas práticas de fabricação para registros (aceitando certos documentos estrangeiros) e a RDC nº 356/20, que flexibilizou a exigência de registros, mas estabelecendo parâmetros / especificações.
Esse última norma citada, em seu artigo 9º, traz ainda uma inovação:“Art. 9° Fica permitida a aquisição de equipamentos de proteção individual, ventiladores pulmonares, circuitos, conexões e válvulas respiratórios, monitores paramétricos e outros dispositivos médicos, essenciais para o combate à COVID-19, novos e não regularizados pela Anvisa, desde que regularizados e comercializados em jurisdição membro do International Medical Device Regulators Forum (IMDRF), por órgãos e entidades públicas e privadas, bem como serviços de saúde, quando não disponíveis para o comércio dispositivos semelhantes regularizados na Anvisa. § 1° A indisponibilidade de produtos regularizados na Anvisa deve ser evidenciada e arquivada à documentação do processo de aquisição.”.
Ainda que se tenha esse espaço aberto, não se pode esquecer das especificações e da recomendação de que de se faça consulta prévia à ANVISA sobre eventuais dúvidas e cautelas na aplicação desse dispositivo, pelos entes públicos, para evitar que cargas inteiras sejam retidas em portos e aeroportos na chegada ao Brasil e haja prejuízo ao dinheiro público, sendo a mesma cautela indicada para se tratar com o INMETRO, inclusive, sobre dispositivos médicos.
Quanto a tributação, quando ente público importa há imunidade tributária, zerando impostos, nos termos do artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal, o que em área médico-hospitalar tende a ser mais de 50% dos valores dos produtos e vale para todos os impostos federaise até locais.
A importação pelo estado tem esse diferencial, de custo menor, pois mesmo com a redução temporária de impostos federais, estabelecida pelo Decreto nº 10.285/20 e pelas Resoluções nº 17/20 e 22/20-CAMEX, o ICMS não foi reduzido em todos os estados e ainda é pago pelos importadores privados, que ainda podem acrescentar o “hedge”, seguro contra oscilações cambiais, já que o contrato com o cliente final aqui será em reais (ao contrário dos contratos de ente público em moeda estrangeira).
Na parte operacional, caso o ente público não tenha pessoal especializado em área de comércio exterior poderá contratar, em urgência, uma assessoria de despachantes / empresas de comércio exterior / área aduaneira, para ajudar nos processos no SISCOMEX, embora a importação seja feita pelo ente público.
Quanto aos métodos de pagamento, a carta de crédito é o meio mais utilizado pelos entes públicos, o que significa que assim que transferido o valor em reais para o banco aquele valor ficará garantido na moeda estrangeira, sem oscilação cambial, o pagamento não acontece antecipado e há garantia para todas as partes da operação. Em situação extrema pode-se pensar em solução intermediária, com transferência bancária internacional, mas nesse caso é recomendado contar com anuência dorespectivo tribunal de contas, em consulta em tese, para aprovação dessa outra forma de pagamento.
Sobre os Termos de Comercio Internacional – INCONTERMS, como não está havendo licitação, a logística pode envolver entrega em locais diferenciados, como aeroportos ou portos ou até para serem buscados no exterior, por aeronaves do governo brasileiro, eventualmente militares, ou alugadas em urgência de empresas privadas, a depender da gravidade da situação, do tempo e do custo-benefício da logística.
Último ponto para reflexão: embora não seja contra um País, há uma guerra, não se podendo descartar que o Brasil realize compras já em território estrangeiro, por exemplo, via Comissões do Exército, da Marinha e da Força Aérea em Washington e Londres, já no exterior (mediante ajustes em orçamentos) e com transporte dentro deaeronaves e embarcações militares, o que seria um outro canal de compras, com logística e burocracia agilizada.
O momento exige pensar em todas as alternativas e aqui estão algumas delas.
Publicado em: https://sollicita.com.br/Noticia/?p_idNoticia=16029&n=coronav%C3%ADrus-e-ascompras-p%C3%BAblicas-diretas-internacionais
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