Rescisão Consensual Na Nova Lei de Licitações

4 de julho de 2024

Aplicáveis as condições legais dispostas no art. 90, §§ 8º e 9º, da Lei 14.133/2021, eventual nova licitação, caso a anterior tenha restado fracassada em razão da recusa dos licitantes convocados em assinar o correspondente contrato administrativo, ou a contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento em consequência de rescisão contratual, poderão ser realizadas por meio do aproveitamento de eventuais saldos a liquidar de despesas empenhadas ou em restos a pagar não
processados.

De modo muito similar ao que dispunha o artigo 78, da Lei Federal nº 8.666/1993, a nova legislação estabelece, em seu artigo 137, as situações que ensejam a extinção do contrato administrativo [1], com uma distribuição um pouco mais clara quanto às hipóteses motivadas pelo contratado (incisos I a IX) e pela Administração Pública (§2º).

As modalidades gerais de extinção do contrato se mantém, com alguns ajustes de redação, de forma que além da rescisão unilateral e amigável — agora denominada “consensual” —, a extinção antes motivada por decisão judicial, agora também contempla a decisão arbitral (artigo 138).

Pensando nessas diferentes modalidades de extinção contratual e características próprias a cada espécie, a questão que pauta as reflexões deste artigo está na compreensão sobre os contornos de eventual negociação envolvendo pagamentos devidos de parte a parte, especialmente com relação à extinção consensual, que se sustenta no pressuposto de que haverá certa margem para a conciliação de interesses visando à própria formalização do encerramento do contrato.

De forma bastante abrangente, a Lei nº 14.133/2021 manteve apenas a previsão quanto ao mínimo devido ao contratado nas situações em que a extinção do contrato é ocasionada pela Administração contratante. Seguindo precisamente a mesma redação da legislação anterior, prevê-se que além dos prejuízos regularmente comprovados, o contratado terá direito à devolução da garantia, aos pagamentos devidos pela execução do contrato até a data de extinção e ao pagamento do custo da desmobilização (artigo 138, §1º). Permanece a lei, portanto, sem regular o que poderia ser pleiteado e pago ao contratado nas demais hipóteses de extinção (unilateral, por culpa do contratado, consensual ou mesmo judicial/arbitral).

Da leitura dessa disposição, para todas as situações de extinção do contrato, parece-nos que o cabimento de duas dessas parcelas é indiscutível, sendo autorizado ao contratado, em qualquer forma acima mencionada, o recebimento pelos prejuízos demonstrados e pelos serviços regularmente executados até o momento da extinção, ainda que estas parcelas fiquem, de alguma forma, retidas durante o processo rescisório.

A compreensão de que esse seria um mínimo assegurado ao contratado decorre da adoção do princípio da vedação ao enriquecimento ilícito, que impediria que a Administração Pública se beneficiasse indevidamente de uma parcela executada sem a respectiva contraprestação.

Esfera judicial ou arbitral

Na esfera judicial ou arbitral, a questão não parece ter maiores complicações, visto que ações ou procedimentos arbitrais visando à recuperação de prejuízos incorridos ao longo da execução do contrato ou em razão da sua extinção integram a lógica indenizatória, de forma que tudo aquilo que estiver assegurado pelo axioma da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro e for regularmente comprovado em fase instrutória desses processos poderá ser remunerado/ressarcido ao contratado.

Já para os casos em que a extinção do contrato se opera por ato unilateral da Administração Pública, motivado em culpa do contratado, a temática dos recebimentos devidos ao agente privado fica sujeita a maiores ressalvas. Isso porque, mesmo os valores decorrentes de serviços e entregas efetivamente realizados até o momento da extinção podem vir a ser retidos para o ressarcimento de prejuízos ocasionados à Administração contratante (artigo 139, inciso IV), sem prejuízo de que a garantia contratual também seja usada para essa finalidade (artigo 139, inciso IV e artigo 156, §8º), não sendo, por essa razão, devolvida de forma imediata, como ocorre na extinção sem culpa do contratado.

Mas o campo que certamente envolve maiores dúvidas, embora nem sempre discutido com frequência, diz respeito à extinção do contrato de forma consensual, o que, agora, pode ser feito inclusive com a utilização dos institutos da conciliação, da mediação ou mediante o auxílio do comitê de resolução de disputas, desde que haja interesse da Administração Pública (artigo 138, inciso II) — tema que acabou, mais uma vez, passando ao largo de uma regulamentação que protegesse os interesses em disputa.

Com efeito, a questão da negociação nos contratos administrativos sempre foi temática tormentosa, pois envolve compreender limites nem sempre bem estabelecidos, e que muitas vezes permeiam um debate vazio entre direitos disponíveis e supremacia do interesse público. Durante muitos anos, essa discussão foi, inclusive, um empecilho para que os contratos administrativos pudessem ser submetidos a métodos alternativos de resolução de conflitos e, mesmo hoje, com maior abertura legislativa a essa possibilidade, persistem muitas dúvidas e incompreensão sobre o quão consensual é, de fato, uma negociação visando à extinção de um contrato administrativo.

Embora a jurisprudência dos Tribunais de Contas seja bastante consolidada no sentido de que a extinção amigável não é discricionária, cabendo de forma residual, sempre que inaplicáveis as demais hipóteses legais [2], trata-se de interpretação restritiva que não se coaduna ao texto legal, que não trouxe qualquer alternatividade entre as medidas. Pelo contrário, a redação da nova lei de licitações reforça ser o interesse da Administração a causa determinante dessa modalidade de extinção contratual, de modo que somente a análise casuística permitirá a conclusão sobre a adequação da rescisão amigável.

Seguindo a lógica de que essa modalidade de extinção será adequada quando houver interesse da Administração, não se visualizam razões para que eventuais ressarcimentos encontrem limitações genéricas de pagamento. Concorda-se, nesse aspecto, com a visão de Heraldo Garcia Vitta quanto à amplitude do dever indenizatório, contemplando, “além dos danos emergentes (comprovados, inclusive as despesas financeiras do contratado, na obtenção de empréstimos bancários), são devidos lucros cessantes, quanto ao remanescente do objeto do contrato não executado (o que o contratado deixou, razoavelmente, de ganhar)” [3].

Nessa hipótese, portanto, além dos valores devidos por serviços entregues, prejuízos comprovados e custos de desmobilização, o contratado pode vir a pleitear aquilo que razoavelmente deixou de ganhar em razão da extinção antecipada da avença negociada de forma consensual entre as partes [4].

A despeito desse entendimento, que nos parece bastante acercado, não há dúvida de que a matéria está longe de ser pacífica. Ao deixar de regular de forma mais precisa os valores devidos em caso de extinção contratual, a Lei nº 14.133/2021 deixa lacunas relevantes e acaba perdendo uma oportunidade interessante de inovação, fazendo com que a matéria permaneça em constante debate no Judiciário ou nos Tribunais de Contas, que naturalmente possuem uma visão mais restritiva sobre o assunto.

Mesmo que nem todas as matérias possam ser, de fato, regulamentadas, a ausência de diretrizes claras para negociações e compensações no caso de extinção contratual perpetua a incerteza jurídica, trazendo uma visão protecionista e desequilibrada, que não contempla caminhos para a modernização dos contratos públicos.

[1] Inclusive o vocábulo é corrigido, tratando a nova legislação da “extinção” de forma mais ampla, visto que o termo “rescisão”, empregado pela norma anterior, era muitas vezes criticado, na medida em que apresenta um conteúdo específico, diferenciando-se, no âmbito da Teoria Geral dos Contratos, da resolução e da resilição.

[2] Nesse sentido: “Considerando o poder-dever da Administração de zelar pelo fiel cumprimento do contrato e o próprio princípio da indisponibilidade do interesse público, entendo que a entidade contratante não possui a liberdade discricionária de deixar de promover a rescisão unilateral do ajuste caso seja configurado o inadimplemento do particular. Nesse sentido, só existe campo para a rescisão amigável de um contrato administrativo quando houver conveniência para a Administração e não ocorrer nenhuma das hipóteses previstas para a rescisão unilateral da avença” (TCU. Acórdão nº 740/2013-Plenário. Relator Min. Benjamin Zymler. Sessão de 03/04/2013).

[3] VITTA, Heraldo Garcia. Aspectos da rescisão dos contratos administrativos. Revista RJLB. Ano 1, n. 4, 2015.

[4] Essa é a posição manifestada pelo Superior Tribunal de Justiça: “Os contratos administrativos regem-se não apenas por suas cláusulas e pelas normas de direito público, mas também lhes são aplicáveis, supletivamente, as normas de direito privado (art. 54 da Lei 8.666/93), de maneira que é devido o ressarcimento dos lucros cessantes por descumprimento de contrato administrativo (EDcl nos EDcl no REsp 440.500/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias – Juiz Federal Convocado do TRF 1ª Região -, DJe de 25.4.2008; EDcl no REsp 440.500/SP, 2ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 13.11.2007; REsp 190.354/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 14.2.2000; REsp 737.741/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 1º.12.2006)”.

Fonte: CONJUR

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