Hamilton Bonatto[1]

Vivian Aparecida Ciscato Chuchene Bonatto[2]

 

Causa de debates intensos na Administração Pública, a questão relativa à utilização do advérbio “preferencialmente” pelo legislador na Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, merece uma análise mais detida.

Desde a publicação da lei têm sido observadas distorções e interpretações equivocadas e ambíguas, vez que esse vocábulo aparece 16 (dezesseis) vezes no referido diploma legal que trata das licitações e dos contratos administrativos. Seguem as ocorrências do referido uso:

  1. Os agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei devem ser, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública (inciso I do art. 7º);
  2. No processo licitatório os atos serão preferencialmente digitais, de forma a permitir que sejam produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico (inciso VI do art. 12);
  3. As licitações serão realizadas preferencialmente sob a forma eletrônica, admitida a utilização da forma presencial, desde que motivada, devendo a sessão pública ser registrada em ata e gravada em áudio e vídeo (§2º do art. 17);
  4. Os órgãos da Administração com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, de obras e serviços e de licitações e contratos deverão instituir instrumentos que permitam, preferencialmente, a centralização dos procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços (inciso I do art. 19);
  5. Nas licitações de obras e serviços de engenharia e arquitetura, sempre que adequada ao objeto da licitação, será preferencialmente adotada a Modelagem da Informação da Construção (Building Information Modelling– BIM) ou tecnologias e processos integrados similares ou mais avançados que venham a substituí-la (§3º do art. 19);
  6. O critério de julgamento técnica e preço será escolhido quando estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação da qualidade técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital, forem relevantes aos fins pretendidos pela Administração nas licitações para contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, caso em que o critério de julgamento de técnica e preço deverá ser preferencialmente empregado (inciso I do §1ª do art. 36);
  7. Os elementos previstos no inciso XXIII do caput do art. 6º desta Lei, além de outras informações, a exemplo da especificação do produto, deverão estar contidos no termo de referência preferencialmente como descrito no catálogo eletrônico de padronização, observados os requisitos de qualidade, rendimento, compatibilidade, durabilidade e segurança (inciso I do parágrafo 1º do art. 40);
  8. Em caso de empate entre duas ou mais propostas serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão ser utilizados preferencialmente registros cadastrais para atestar o cumprimento de obrigações previstas nesta Lei (art. 60);
  9. Para a contratação de entidades privadas sem fins lucrativos, para a implementação do Programa Cozinha Solidária, que tem como finalidade fornecer alimentação gratuita preferencialmente à população em situação de vulnerabilidade e risco social, incluída a população em situação de rua, com vistas à promoção de políticas de segurança alimentar e nutricional e de assistência social e à efetivação de direitos sociais, dignidade humana, resgate social e melhoria da qualidade de vida (inciso XVIII do art. 75);
  10. As contratações com dispensa de licitação em função do valor (inciso I e II do caput do art. 75) serão preferencialmente precedidas de divulgação de aviso em sítio eletrônico oficial, pelo prazo mínimo de 3 (três) dias úteis, com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de interesse da Administração em obter propostas adicionais de eventuais interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa (§3º do art. 75);
  11. As contratações com dispensa de licitação em função do valor (inciso I e II do caput do art. 75) serão preferencialmente pagas por meio de cartão de pagamento, cujo extrato deverá ser divulgado e mantido à disposição do público no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) (§4º do art. 75);
  12. Nos contratos para serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou com predominância de mão de obra, o prazo para resposta ao pedido de repactuação de preços será preferencialmente de 1 (um) mês, contado da data do fornecimento da documentação prevista no 6º do art. 135 da Lei nº 14.133, de 2021 (§6º do art. 92);
  13. Os riscos que tenham cobertura oferecida por seguradoras serão preferencialmente transferidos ao contratado (§2º do art. 103);
  14. A aplicação das sanções requererá a instauração de processo de responsabilização, a ser conduzido por comissão composta de 2 (dois) ou mais servidores estáveis … Em órgão ou entidade da Administração Pública, cujo quadro funcional não seja formado de servidores estatutários, a comissão a que se refere o caput deste artigo será composta de 2 (dois) ou mais empregados públicos pertencentes aos seus quadros permanentes, preferencialmente com, no mínimo, 3 (três) anos de tempo de serviço no órgão ou entidade (Caput e 1º do art. 158);
  15. Quando os integrantes das linhas de defesa constatarem simples impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência, preferencialmente com o aperfeiçoamento dos controles preventivos e com a capacitação dos agentes públicos responsáveis (inciso I do §3º do art. 189);
  16. Os entes federativos instituirão centrais de compras e no caso dos Municípios com até 10.000 (dez mil) habitantes, serão preferencialmente constituídos consórcios públicos para a realização das atividades previstas no caput deste artigo, nos termos da Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005.

Verificando-se essa opção do legislador pela palavra preferencialmente, observa-se que ao repeti-la de forma contínua estabelece uma diretriz, uma uniformidade de forma sistemática da utilização desse termo no texto. Nas previsões acima relacionadas, o acréscimo do advérbio, cuja função sintática é modificar o modo como a ação verbal será praticada. Dar preferência a um comportamento significa impor uma condição de primeiro lugar em importância, necessidade, premência[3]. Em outras palavras, houve uma evidente manifestação legislativa pela distinção entre a ação prevista e o modo como executá-la, tendendo a um propósito uniformizador com esta utilização.

Comparando-se o advérbio preferencialmente com outros dois advérbios: facultativamente e exclusivamente não restam dúvidas de que esses impõem modos distintos de execução da ação verbal. Inequivocamente não são sinônimos, especialmente quando da interpretação da Lei nº 14.133, de 2021.

Facultativamente implica numa escolha arbitrária, em voluntariedade ou uma opção a ser adotada livremente entre outras possíveis. Noutro lado, exclusivamente, designa uma condição restrita a uma única opção, onde todas as outras possibilidades são excluídas.

Observa-se, então, que praticar uma ação de modo preferencial não se encontra em nenhum desses extremos. Não se trata de liberdade de escolha, nem de obrigatoriedade de adoção. Quando a Lei nº 14.133, de 2021, utiliza o advérbio preferencialmente nos 16 (dezesseis) dispositivos supracitados, sem juízo desta opção do legislador, é preciso aceitar que é exigida a primazia da preferência de uma ação em primeiro lugar. Não há adoção de alternativas. Por conseguinte, ao não ser dada a preferência ao modo apontado para executar a ação prevista, requer-se a justificativa idônea de tal antagonismo, sob pena da caracterização de ilegalidade. Como comenta a Professora Teresa Arruda Alvim Wambier, ao citar decisão em Recursos Extraordinário, negar-se-á vigência e utilidade a todas as situações nas quais se utiliza o termo “preferencialmente”, que pode, sim, ser flexibilizada, desde que por decisão fundamentada que tenha, por exemplo, coerência com a efetividade da atividade executiva (cf. STJ, REsp 1485790/SP, Rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 11/11/2014, DJe 17/11/2014)[4].

Para exemplificar, vejamos a questão sobre o advérbio preferencialmente mais discutida, pelo menos por enquanto, na aplicação da Lei nº14.133/2021: o inciso I do art. 7º estabelece que os agentes públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei devem ser, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública.

A partir do anteriormente demonstrado a respeito dos três advérbios apontados, parece evidente que os agentes públicos não devem ser:

exclusivamente servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, pois essa obrigatoriedade, a princípio, não existe. A Lei atribuiu forma(s) ou momento(s) em que alguém, mesmo não sendo servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes, poderá exercer alguma função essencial.

Por outro lado, o gestor público não está livre para escolher alguém que não seja servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública, pois esta faculdade não lhe foi dada pela lei em tela. Não há, em contrapartida, manifestação do legislador de que as funções essenciais à execução desta Lei deverão ser escolhidas ao arbítrio da autoridade competente. Porém, foi determinado o contrário, ao enunciar que estas designações devem recair preponderantemente sobre servidores ou empregados públicos em preeminência de outros agentes, a exemplo dos comissionados.

Assim, é possível dizer que, de acordo com a Lei nº 14.133, de 2021, um agente público que não seja servidor efetivo ou empregado público pode exercer uma função essencial. No entanto, é defeso que a autoridade competente explicite a justificativa idônea para essa designação.

A Professora Tatiana Camarão, ao tratar do tema, entende que na ausência de servidores ou empregados públicos, é possível que sejam designados os agentes comissionados, contudo, acresce que é essencial que o gestor responsável pela nomeação justifique a razão pela qual tal decisão foi tomada[5].

Parece uma escolha simples, mas não é! Como um órgão ou entidade, especialmente da União ou de um dos Estados da Federação ou ainda de um Município de médio ou grande porte justificará de forma idônea de que não dispõe de servidor público para o exercício, por exemplo, da função de gestor ou fiscal de contrato?

A Lei nº 14.133, de 2021, entrou em vigor no dia 1º de abril e oportunizou um tempo razoável para a adaptação ao novo Diploma Legal, em torno de 32 meses para que os órgãos e entidades pudessem se preparar para cumpri-la integralmente. Houve tempo para a realização de concurso público, de capacitar servidores efetivos ou empregados públicos, enfim, exercer a governança pública. A regra constitucional determina a estabilidade do servidor público[6], regra do artigo 37 sobre a qual repousam muitos cânones da teoria do Estado a impedir a transformação integral do setor público em artefato eleitoral.

As razões para que o legislador impusesse ao gestor a preferência pelo servidor efetivo ou empregado público estão inseridas em várias questões teóricas cujo espaço de discussão não cabe aqui, mas também na segurança jurídica, na organização do sistema público. No caso, por exemplo, de um fiscal de contrato, alguém com cargo em comissão, nomeado a doc, fica extremamente sensível a pressões de suas chefias para praticar atos não republicanos, tendo em visto que sua negativa tende a resultar na perda do cargo, o que não acontece no caso em que a demissão depende de processo administrativo disciplinar com direito ao contraditório e à ampla defesa.

Quer-se fazer ver que não é qualquer justificativa ou a repetição delas que deve prevalecer, pois a inidoneidade deve ser censurada pelos órgãos de conta. O parágrafo único do art. 11 da Lei nº 14.133, de 2021 atribuiu à alta administração do órgão ou entidade a responsabilidade pela governança das contratações, em prover meios para o cumprimento da própria Lei.

O fato é que princípio basilar de hermenêutica jurídica está aquele segundo o qual a lei não contém palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipienda), pelo que se deve o seu cumprimento sem a criação de subterfúgios e ações astuciosas, mas na busca da melhor compreensão e interpretação ao aplicá-la.

[1] Hamilton Bonatto é advogado. Procurador do Estado do Paraná. Mestre em Planejamento e Governança Pública. Especialista e Direito Constitucional; Especialista em Advocacia Pública; Especialista em Construção de Obras Públicas; e Especialista em Ética e Educação; É Autor de diversos trabalhos na área de Licitações e Contratos de Obras e Serviços de Engenharia.

[2] Vivian Aparecida Ciscato Chuchene Bonatto é advogada. Assessora Técnica de licitações e contratos, atualmente lotada na Secretaria de Comunicação do Estado do Paraná; Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania; Especialista em Direito Constitucional, em Direito do Estado e em Direito Administrativo; Licenciada em Língua Portuguesa e Inglesa.

[3] Obtido em https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=prefer%C3%AAncia. Consulta realizada em 22/Jan./2024.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Ordem Cronológica: Preferencialmente. Disponível em: [4] https://www.migalhas.com.br/coluna/entendendo-direito/238018/ordem-cronologica—preferencialmente. Avesso em 09/02/2024.

[5] CAMARÃO, Tatiana. I Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021/ coordenado por Cristiana Fortini, Rafael Sérgio de Oliveira, Tatiana Camarão. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

[6] Há um constante atrito em desmoronar as carreiras públicas, olvidando-se dos árduos concursos públicos e de que o estado existe para mediar as relações sociais, para impedir opressões, atritos, carências, buscando o equilíbrio para a paz social.

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