Lei Complementar n.º 123 e a aprovação de legislação mais benéfica para ME/EPP por Estados e Municípios

12 de janeiro de 2024

Por Ronny Charles

 

No artigo 47 da LC 123, deve se destacar a alteração provocada pela LC 147/2014, que inseriu parágrafo único definindo que “em relação às compras públicas, enquanto não sobrevier legislação estadual, municipal ou regulamento específico de cada órgão, mais favorável à microempresa e empresa de pequeno porte, aplica-se a legislação federal”.

Essa sutil inserção exige a análise de alguns pontos interessantes.

O primeiro ponto envolve a discussão sobre a existência de restrição, apenas às compras, para a aprovação de legislação estadual ou municipal com regras mais favoráveis às microempresas e empresas de pequeno porte.

Embora o dispositivo faça a referência às “compras”, na verdade, ao tratar de “compras públicas”, ele a utiliza como uma expressão genérica, equivalente a “contratações públicas”. Basta uma interpretação sistemática para perceber que essa troca foi também utilizada pelo legislador, ao nominar a seção (“Das aquisições públicas”) que trata sobre os benefícios dado às microempresas e empresas de pequeno porte, nas licitações. Ora, mesmo usando a expressão, “aquisições públicas”, para nominar a seção que envolve os artigos 42 a 49 da LC 123/2006, o legislador criou regras de tratamento diferenciado que são aplicáveis não apenas às aquisições, mas também a outras pretensões contratuais, como as contratações de serviços. Da mesma forma deve ser interpretada a expressão “compras públicas”, como uma remissão genérica às diversas pretensões contratuais da Administração (como aquisições, serviços e obras).

O segundo ponto de interesse envolve o questionamento sobre qual a natureza jurídica e quais os limites impostos a essas novas legislações (estaduais e municipais) mais favoráveis.

Sobre licitações, embora muitos esqueçam, é a Constituição que estabelece e qualifica a competência legislativa para tratar sobre o tema. O inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal outorga à União a competência privativa para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação. Como essa competência se restringe às regras gerais, os outros entes federativos poderão legislar sobre normas específicas acerca da matéria. Há, por definição constitucional, uma competência privativa da União, no que tange às regras gerais, e uma competência comum, no que se refere às regras específicas.

Nessa feita, o regramento constitucional impõe uma limitação a essas novas legislações (estaduais e municipais) mais favoráveis, pois elas apenas poderão inovar, tratando sobre regras específicas (não gerais), sob pena de ferir o preceito constitucional que restringe a competência privativa da União para tratar sobre regras gerais.

Como ilustração, caso um estado ou município busque aprovar legislação que crie regras mais benéficas, estabelecendo novas hipóteses de dispensa, em favor das microempresas e empresas de pequeno porte, essa inovação será inconstitucional, pois, ao criar nova regra de dispensa, haveria uma usurpação da competência privativa da União para legislar, já que as hipóteses de dispensa e de inexigibilidade vêm sendo entendidas como matéria a ser disciplinada por norma geral, de competência privativa da União[1].

Noutro diapasão, em relação às regras específicas, legislar sobre o tema é prerrogativa constitucional dos entes federativos, independentemente de qualquer regra estabelecida pela lei complementar federal, já que (materialmente) ela apenas os vincula em suas normas de natureza geral.

Assim, a regra do parágrafo único que limita a superveniência das legislações estaduais e municipais às regras mais favoráveis é inconstitucional em relação a regras de natureza específica, já que sobre elas, estados e municípios têm autonomia, inclusive, para criar regras diferentes, que não sejam, necessariamente, mais vantajosas.

Da mesma forma, nos atrevemos a entender que essas inovações legislativas (por estados e municípios), não podem criar regras gerais mais benéficas, ampliando a exclusão de possíveis contratantes, não caracterizados como microempresas ou empresas de pequeno porte. Assim, como ilustração, é inconstitucional que uma Lei municipal decida ampliar para R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais) o patamar obrigatório de licitações exclusivas para essas pessoas jurídicas ou defina que apenas as microempresas com sede naquele município poderiam participar da licitação.

Convém lembrar que a exclusão de licitantes afronta o aspecto democrático do princípio da obrigatoriedade de licitar (direito do fornecedor de disputar o certame público). Este direito (de disputar a licitação) apenas pode ser afastado absoluta e abstratamente por Lei com conteúdo de norma geral (lei federal). Embora não tenha tratado diretamente da matéria, o STF já declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que estabelecia, como condição de acesso à licitação pública, para aquisição de bens ou serviços, que a empresa licitante tivesse a fábrica ou sede no Estado-membro[2].

Por fim, o terceiro ponto envolve o questionamento acerca da possibilidade de que nova legislação, do Distrito Federal, crie regras mais favoráveis para aquele ente da federação.

Nada obstante a omissão no texto legal, parece evidente que, por respeito ao pacto federativo e à isonomia entre os entes que formam esta federação, o Distrito Federal detém a mesma prerrogativa legislativa para criar regras mais benéficas, nesse campo, até porque, tratam-se, na verdade, de regras de natureza específica, competência preservada pela Constituição, para este ente federativo.


AUTOR: 
RONNY CHARLES
Advogado da União.  Doutorando em Direito pela UFPE.  Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (14ª ed. Jus Podivm); Direito Administrativo (coautor. 14ª ed. Jus Podivm); Licitações e Contratos nas Empresas Estatais (coautor. 3ª edição. Jus Podivm) e Comentários à Lei de Improbidade Administrativa (coautor. ed. Jus Podivm). Análise Econômica das licitações e contratos (coautor. Fórum).

[1].      Vale a leitura, por exemplo, do Acórdão prolatado pelo STF, na ADI nº 4.658/PR (Rel. Min. Edson Fachin), DJe 11.11.2019, através do qual o Supremo tratou sobre a impossibilidade de extensão das hipótese de contratação direta (dispensa de licitação) por lei estadual. Em sentido similar o TCU, no Acórdão 1785/2013-Plenário, TC 005.708/2013-3 (Relator Ministro-Substituto Marcos Bemquerer Costa), 10.7.2013, posicionou-se pela competência privativa da União para criar por Lei novas hipóteses de contratação direta.

[2].       STF – ADI 3583 / PR – PARANÁ. Relator(a): Min. CEZAR PELUSO. Julgamento: 21/02/2008. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.

OBS: Tópico baseado em trecho de nosso livro “Leis de Licitações Públicas Comentadas (TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 15ª. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024 – No prelo).

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