Manutenção de veículos à luz da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos e a especificidade do § 7º do art. 75

2 de janeiro de 2024

Por Diego Fonseca Silva

Para consecução de diversas atividades administrativas, é necessária a utilização de veículos automotores pelos órgãos e entidades da Administração Pública. Em consequência do uso, em algum momento esses veículos vão precisar de manutenções, surgindo a seguinte dúvida para o Gestor: como contratar os serviços para manutenção de veículos à luz da Lei nº 14.133/2021?

Em que pese a regra insculpida no art. 37, inciso XXI da CF/88 estabelecer que as obras, serviços, compras e alienações serão sempre contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, o próprio dispositivo constitucional comportou uma exceção: “ressalvados os casos especificados na legislação”, que, no caso em tela, são os previstos na própria Lei nº 14.133/2021 (e em outras legislações que não serão objeto deste artigo).

Referida Lei de Licitações, que incorporou Leis e Decretos Federais, além da jurisprudência do Tribunal de Contas da União[1], trouxe duas disposições específicas sobre manutenção de veículos automotores: o art. 75, inciso I, e o § 7º, que estabelecem o seguinte:

Art. 75. É dispensável a licitação:
I – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores;
[…]
§ 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caputdeste artigo, deverão ser observados:
I – o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora;
II – o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.
[…]
§ 7º Não se aplica o disposto no § 1º deste artigo às contratações de até R$ 8.000,00 (oito mil reais) de serviços de manutenção de veículos automotores de propriedade do órgão ou entidade contratante, incluído o fornecimento de peças.

A primeira hipótese se assemelha ao art. 24, incisos I e II da Lei nº 8.666/93, conhecidos como “dispensa de licitação de pequeno valor”, havendo o acréscimo tão somente da expressão específica “serviços de manutenção de veículos automotores”.

O legislador, com o referido acréscimo na nova legislação, permitiu que a Administração Pública dispense a licitação em um mesmo exercício financeiro e com objetos da mesma natureza (§ 1º do art. 75) no valor limite de até R$ 114.416,65 (cento e quatorze mil, quatrocentos e dezesseis reais e sessenta e cinco centavos) – valor atualizado pelo Decreto Federal nº 11.317/2022 – para contratação dos serviços de manutenção de veículos automotores e os demais serviços listados no inciso I.

Para ilustrar o exposto, imaginemos que determinado Município disponha de 10 veículos automotores próprios e que todos eles apresentem defeito de uma só vez no mês de março de 2023. Após realização dos orçamentos, a Administração Pública concluiu que o valor total da manutenção será de R$ 114.416,65 (cento e quatorze mil, quatrocentos e dezesseis reais e sessenta e cinco centavos). Assim, com base no art. 75, inciso I da Lei nº 14.133/2021, poderá ser realizada uma dispensa de licitação, dentro do exercício financeiro em que tramita o processo administrativo (2023), para contratação dos serviços de manutenção dos veículos.

Essa possibilidade de contratação por pequeno valor, como dito, vem da própria Lei nº 8.666/93, apenas com um limite maior de valor e com a inclusão da expressão “serviços de manutenção de veículos automotores”, o que não quer dizer que na Lei antiga era proibida essa hipótese de dispensa, já que era possível encaixar esses serviços no fundamento do art. 24, inciso II, no contexto de “para outros serviços e compras…”.

A verdadeira novidade na Lei nº 14.133/2021, e que merece destaque neste artigo, é o já transcrito § 7º do art. 75, que estabelece não se aplicar o disposto no § 1º do mesmo dispositivo legal às contratações de até R$ 9.153,34 (nove mil, cento e cinquenta e três reais e trinta e quatro centavos) – valor atualizado pelo Decreto Federal nº 11.317/2022 – de serviços de manutenção de veículos automotores de propriedade do órgão ou entidade contratante, incluído o fornecimento de peças.

O dispositivo em questão, de forma resumida, estabelece que independentemente do somatório do valor que for despendido no exercício financeiro pela unidade gestora (art. 75, § 1º, I), e do somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza (art. 75, § 1º, II), a Administração Pública pode realizar contratações unitárias e ilimitadas de até R$ 9.153,34 (nove mil, cento e cinquenta e três reais e trinta e quatro centavos) para a execução de serviços de manutenção de veículos de propriedade do contratante, incluído o fornecimento de peças.

Voltando ao cenário do exemplo trazido anteriormente, imaginemos que após a contratação dos serviços de manutenção no importe de R$ 114.416,65 (cento e quatorze mil, quatrocentos e dezesseis reais e sessenta e cinco centavos), ainda em 2023, um veículo de propriedade daquele mesmo Município apresente defeito e, após realização dos orçamentos, a Administração Pública concluiu que a manutenção seria de R$ 7.500,00 (sete mil e quinhentos reais).

Se levarmos em consideração o § 1º do art. 75, não seria possível mais uma manutenção por dispensa de licitação de pequeno valor (art. 75, I) por já ter sido ultrapassado o limite legal para o exercício financeiro de 2023 e para aquele objeto específico. Todavia, seria possível a dispensa de licitação com base no art. 75, § 7º.

E tal disposição não se limita a apenas mais uma dispensa. O § 1º do art. 75 deixa claro que as manutenções até o limite estabelecido no dispositivo seriam ilimitadas, ou seja, poderiam ser realizadas quantas dispensas fossem necessárias para manutenções de veículos que não ultrapassassem, de forma unitária, o valor de R$ 9.153,34 (nove mil, cento e cinquenta e três reais e trinta e quatro centavos).

O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais tratou da matéria (TCE/MG, Processo nº 1121074, Rel. Cons. Cláudio Couto Terrão, j. em 05.07.2023), estabelecendo que o limite fixado no § 7º deve ser considerado por contratação, ressaltando, neste contexto, que independe “… de os serviços de manutenção de veículos da frota do órgão ou entidade, incluído o fornecimento de peças, serem para um ou mais veículos”. Veja:

O limite fixado no § 7º do art. 75 da Lei n. 14.133/2021, que atualmente corresponde ao montante de R$9.153,34 (nove mil cento e cinquenta e três reais e trinta e quatro centavos), deve ser considerado por contratação. Ou seja, independente de os serviços de manutenção de veículos da frota do órgão ou entidade, incluído o fornecimento de peças, serem para um ou mais veículos.

Em síntese, assim como previsto no presente artigo, o TCE/MG entende que podem ser realizadas diversas contratações que respeitem o limite fixado no § 7º do art. 75, sendo irrelevante se as contratações são para um mesmo veículo ou para vários.

Jacoby Fernandes, Ana Jacoby e Murilo Jacoby[2] (apud Ronny Charles Lopes de Torres, Leis de Licitações Públicas Comentadas – 14.ed., ver., atual. E ampl. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2023, p. 461), estabelecem que apenas devem ser somadas, “para fins de restrição a aplicação e verificação do limite previsto no §1º, as despesas superiores a R$ 8.000,00 (oito mil reais)”[3] – valor que, atualizado, equivale a R$9.153,34 (nove mil cento e cinquenta e três reais e trinta e quatro centavos). A saber:

Em outras palavras, se a despesa no exercício financeiro corresponde à contratação de 30 serviços inferiores a 8.000 reais e 10 serviços de 9.000 reais, para os fins do limite do § 1º do art. 75, as contratações diretas sem licitação estão regulares. Ainda que no exercício financeiro – critério do inc. I, e sejam do mesmo ramo de atividade, critério do inc. II, somem o valor de (30 x 8.000 = 240.000 + 10 x 9.000 = 90.000) somente são somadas as despesas superiores a 8.000 reais. Considerando que essas atingiram valor inferior a 100.000 reais, as contratações atenderam ao limite do inc. I.

Os Autores – que trataram os valores sem a atualização prevista no Decreto Federal nº 11.317/2022 – estabelecem que se a contratação de serviços de manutenção de veículos ultrapassar o limite previsto no § 7º do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, ela será enquadrada no inciso I do art. 75, devendo, assim, respeitar o limite de R$ 114.416,65 (cento e quatorze mil, quatrocentos e dezesseis reais e sessenta e cinco centavos).

Lado outro, como já dito, se não ultrapassar o limite de R$ 9.153,34 (nove mil, cento e cinquenta e três reais e trinta e quatro centavos), a contratação da manutenção dos serviços automotores será realizada com fundamento no art. 75, § 7º da Lei nº 14.133/2021.

Por fim, um ponto que merece especial atenção e que não encontra muitas discussões dos estudiosos do tema é a condicionante do § 7º do art. 75, que estabelece que os veículos automotores devem ser de propriedade do órgão ou entidade contratante.

A Lei nº 14.133/2021, como se sabe, é uma norma geral de licitações e contratos para as Administrações Públicas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do seu art. 1º e do previsto no art. 22, inciso XXVII da Constituição Federal. Em seu turno, compete aos Estados e Municípios expedirem suas normas específicas, adequadas às realidades locais e desde que não contrariem às regras gerais trazidas pela União.

Interpretar o § 7º do art. 75 no sentido de se aplicar apenas à contratação de serviços de manutenção de veículos automotores de propriedade do órgão ou entidade contratante, seria fechar os olhos para a realidade dos diversos órgãos e entidades que, por particularidades e estratégias de gestão de recursos, não possuem em sua frota veículos próprios, mas veículos que são pertencentes a empresas privadas (contratos de locação), ou até cedidos por outros órgãos por tempo determinado.

Levando em consideração o modelo do contrato e do que for estabelecido entre as partes, em caso de defeitos com o veículo locado ou cedido, a Administração Pública poderá ser responsável pela integral manutenção, a fim de que seja possível haver a continuidade dos serviços públicos de forma célere e efetiva.

Seria inconcebível, neste contexto, impedir a aplicação do § 7º do art. 75 da Lei nº 14.133/2021 no caso exposto em virtude de os veículos não serem de propriedade da Administração Pública responsável pela sua manutenção.

A depender do tipo da prestação dos serviços, da importância dos veículos para a consecução das atividades do órgão ou entidade e da extrapolação do limite do art. 75, inciso I da Lei nº 14.133/2021 num determinado exercício financeiro, obrigar a Administração Pública a deflagrar um burocrático e demorado processo licitatório seria desarrazoado e iria contra o princípio da continuidade dos serviços públicos, bem como os princípios da eficiência, interesse público, celeridade e economicidade, previstos no art. 5º da própria Lei de Licitações.

Não parece ser essa a intenção do legislador ao estabelecer a hipótese de dispensa prevista no § 7º do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, que trata, na verdade, de uma norma que deve ser regulamentada de forma específica pelos Estados e Municípios para aplicação da Lei, atendendo, sempre, à realidade vivenciada pelo respectivos órgãos e entidades.

Por ser um tema sensível e novo, é certo que os órgãos de Controle Externo irão tratar a matéria e enfrentar os pontos discutidos nesse artigo, especialmente quanto à particularidade do § 7º do art. 75 da Lei nº 14.133/2021.

Essas hipóteses de dispensa, todavia, não excluem a regra geral prevista na Constituição Federal, que é a licitação. Com efeito, as dispensas previstas tanto no inciso I quanto no § 7º do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, desde que devidamente regulamentadas e respeitando as disposições legais, são opções mais céleres e eficazes para o Gestor Público seguir no contexto das contratações de serviços de manutenção de veículos automotores.


AUTOR:
Diego Fonseca Silva
Advogado, pós-graduado em Licitações e Contratos Administrativos, atualmente procurador jurídico do Consórcio Intermunicipal de Saneamento Básico da Zona da Mata de Minas Gerais e atuando de forma autônoma em demandas envolvendo o Direito Administrativo.

[1] Informação disponível em: <https://pge.rj.gov.br/imprensa/noticias/2023/09/viagem-redonda-a-lei-14-13321-e-o-resiliente-problema-das-normas-gerais>, acesso em 06/12/23.

[2] FERNANDES, Ana Luiza Jacoby; FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby; FERNANDES, Murilo Jacoby. Contratação Direta sem Licitação na Nova Lei de Licitações: Lei nº 14.133/2023 / 11. Ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2021. P. 180.

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