Viviane Mafissoni[1]
Amanda Guiomarino[2]
A desconsideração da personalidade jurídica é procedimento que faz parte do rito sancionador de licitantes e contratados que já vem sendo aplicada há alguns anos pela Administração Pública[3]. Inovadora em termos de norma legal no âmbito do direito administrativo, já que a teoria, até então, vinha prevista legalmente no âmbito do direito civil e do direito do consumidor, em algumas leis esparsas na esfera administrativa e mais recentemente no Código de Processo Civil.
No âmbito do direito do consumidor, o Código do Consumidor foi a primeira legislação a positivar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, regido pelo art. 28, onde define que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Já no Código Civil, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica vem prevista no artigo 50, firmando que em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Mais recentemente, o Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015) positivou também a desconsideração da personalidade jurídica, prevendo o incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos artigos 133 e seguintes.
Na legislação esparsa, esse instituto pode ser encontrado também no art. 4º da Lei n.º 9.605/1998 (Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente), art. 34 da Lei n.º 12.529/2011 (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), no art. 14 da Lei n.º 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e na atual Lei nº 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos).
Importa tecer comentários sobre a previsão na Lei Anticorrupção. O art. 14 assim dispõe:
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.
Em verdade, o ponto de convergência existente entre as Leis Anticorrupção e de Licitações, além da observância aos princípios do contraditório e ampla defesa, é o objetivo da aplicação do instituto.
Isso porque, tanto não visa apenas o efeito pecuniário, que a Lei n.º 12.846/2013 trouxe os dois institutos (extensão da responsabilidade de pessoa jurídica e desconsideração da personalidade jurídica) tratados separadamente.
Isto é, o art. 4º da Lei 12.846/2013 tratou da extensão da responsabilidade e o art. 14 da desconsideração, trazendo consequências distintas. Isso porque é direito fundamental a intranscendência da pena, preconizado pela Constituição da República no art. 5º, inc. XLV, de que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. Assim, a desconsideração da personalidade jurídica não significa a extensão da punição, mas se verifica na fase anterior, qual seja, a delimitação da autoria da conduta lesiva. É isto que autoriza a aplicação da desconsideração.
Em que pese a antiga Lei de Licitações e Contratos – Lei n.º 8.666/1993 nada ter disposto a respeito do instituto, algumas decisões dos tribunais já a admitiam casuisticamente. Para suprir tal lacuna normativa, a Lei nº 14.133/2021 – NLLC, como uma das normas gerais de licitações e contratos também vigente, trouxe uma das previsões mais completas no que diz respeito as regras para aplicação de sanções (artigo 156) a licitantes e contratados que praticam as infrações previstas no artigo 155, normatizou a desconsideração da personalidade jurídica.
Por força do artigo 160 da Lei nº 14.133/2021, a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada no caso desta ser utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos na Lei ou para provocar confusão patrimonial, estendendo todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado.
Aliás, esta é a distinção mais importante no que tange à desconsideração societária existente entre a Lei Anticorrupção e a Lei de Licitações, que é o alcance da solução trazida pelas leis. Diante da completude, transcreve-se excerto de Marçal Justen Filho[4]:
A Lei Anticorrupção admitiu a desconsideração da personalidade jurídica para estender o sancionamento aos administradores e sócios com poderes de administração. O art. 160 (da Lei de Licitações e Contratos) previu que a desconsideração poderia compreender também a pessoa jurídica sucessora e a empresa do mesmo ramo, com quem fosse mantida relação de coligação ou de controle, “de fato ou de direito”.
Conforme mencionado alhures, essa situação já vinha sendo tratada na jurisprudência do Tribunal de Contas da União – TCU, como já destacamos que existia a aplicação da teoria no direito administrativo, e que exige, para além dos requisitos da norma, a análise de evidências de determinados requisitos para sua constituição, quais sejam:
O abuso da personalidade jurídica evidenciado a partir de fatos como (i) a completa identidade dos sócios-proprietários de empresa sucedida e sucessora, (ii) a atuação no mesmo ramo de atividades e (iii) a transferência integral do acervo técnico e humano de empresa sucedida para a sucessora permitem a desconsideração da personalidade jurídica desta última para estender a ela os efeitos da declaração de inidoneidade aplicada à primeira, já que evidenciado o propósito de dar continuidade às atividades da empresa inidônea, sob nova denominação.(Acórdão 1831/2014-Plenário, TC 022.685/2013-8, relator Ministro José Múcio Monteiro, 9.7.2014)
Ou seja, para tanto, não prospera para sua configuração apenas a presença simples e clara da identificação da mesma composição societária para a caracterização da desconsideração da personalidade jurídica, há de se verificar demais requisitos para sua constituição com força de burla a sanção já aplicada anteriormente ou de sancionar diretamente sócios e administrador que praticam ilícitos para dissimular, encobrir ou facilitar práticas em relação ao cumprimento da Lei.
Ainda no ano de 2012, o TCU tratava da necessidade de se identificar, no fato, a “força/intenção de burla” e destacou, a exemplo, que a “declaração de inidoneidade de determinada empresa só pode ser estendida a outra de propriedade dos mesmos sócios quando restar demonstrada ter sido essa última constituída com o propósito deliberado de burlar a referida sanção”. (Acórdão n.º 2958/2012-Plenário, TC-028.783/2010-7, rel. Min. José Jorge, 31.10.2012.)
Além disso, para o procedimento em tela, ou seja, para “aplicar” a desconsideração da personalidade jurídica nos termos da NLLC, a Lei exige análise jurídica prévia à decisão de desconsideração, reforçando o controle de legalidade em procedimento administrativo mais severo aos licitantes e contratados.
No ponto, é oportuna a lição de Joel de Menezes Niebuhr, que frisa que a aplicação objetiva e automática da desconsideração societária pode acarretar a inconstitucionalidade diante da afronta ao art. 5º da Constituição da República. Assim restou consignado[5]:
Rememora-se que a desconsideração da personalidade jurídica é excepcional e depende de processo administrativo, garantido o contraditório e ampla defesa, em que se configurem situações fáticas que evidenciem abuso de personalidade, jamais pode ser objetiva e automática.
É importante observar, por fim, que a desconsideração da personalidade jurídica prevista na NLLC não tem um caráter pecuniário da teoria, assim como a desconsideração no âmbito do direito privado. O que se tem, exclusivamente, é dar efetividade às sanções aplicadas às pessoas jurídicas, passando para outras pessoas jurídicas ou pessoas físicas (sócios/ administradores) o sancionamento.
Tem-se, portanto, que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que se iniciou no direito privado buscando o ressarcimento das condutas lesivas por meio do afastamento do titular da obrigação, notadamente a pessoa jurídica que incorreu em abuso de poder, desvio de finalidade ou confusão patrimonial – a depender da teoria adotada –, para se incluir os administradores e sócios com poderes de administração, transfigurou-se para o âmbito administrativo.
Assim, na esfera administrativa, diante do bem maior protegido e o objetivo a ser alcançado, qual seja a probidade, a moralidade, eficiência e o cuidado no tratamento com a res pública, buscou-se muito mais dar efetividade às sanções aplicadas às pessoas jurídicas, estendendo-se a sua autoria a outras pessoas jurídicas ou seus sócios e administradores, quando devidamente comprovadas as situações fáticas ensejadoras do abuso de personalidade, por meio de procedimento administrativo com observância aos princípios do contraditório e ampla defesa.
Bibliografia
JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5ª ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora Fórum. 2022.
[1] Viviane Mafissoni é advogada; Especialista em Direito Público; Membra do Instituto Nacional da Contratação Pública; Analista de Políticas Públicas e Projetos do Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul desde 2010, atuando como pregoeira, coordenadora da equipe de aplicação de penalidades a licitantes, diretora responsável pelo planejamento de compras por registro de preços e gestão de atas, cadastro de fornecedores e penalidades e subsecretária substituta da Central de Licitações do RS; Estudou sobre Mecanismos de Controle e Combate à Corrupção na Contratação Pública (Portugal – 2019); Ex-Chefe do Serviço de Compras Centralizadas da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH, vinculada ao Ministério da Educação; Atualmente cedida à Advocacia-Geral da União – AGU como Coordenadora-Geral da Logística; Professora de pós-graduação da Escola Mineira de Direito; Premiada como melhor relato técnico do Grupo de Trabalho Governança em Gestão de Riscos e Integridade do IX encontro Brasileiro de Administração Pública; Autora de artigos e palestrante sobre temas que envolvem compras públicas.. E-mail: vivi.mafissoni@gmail.com; Instagram: Vivi Mafissoni; Linkedin: Viviane Mafissoni.
[2] Amanda Guiomarino é servidora pública. Analista Jurídico do Ministério Público do Estado do Pará desde 2013. Atuou na assessoria jurídica dos contratos administrativos. Atualmente é Pregoeira/Agente de Contratação. Graduada em Direito e Pós-Graduada em Direito Administrativo e Gestão Pública. Membra do Instituto de Direito Administrativo do Pará. Integrante do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Direito Administrativo Contemporâneo e do Centro de Estudos Empírico-Jurídicos. E-mail: amandagguiomarino@gmail.com. Instagram: Amanda Guiomarino. Linkedin: Amanda Guiomarino.
[3] AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPEDIMENTO PARA LICITAR E CONTRATAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA LEGALIDADE.
1. Inexiste qualquer ato abusivo ou ilegal, uma vez que a autoridade administrativa está vinculada à estrita observância dos preceitos de moralidade e legalidade que norteiam a sua atuação pública perante os administrados, no caso os licitantes.
2. Nesse contexto, não vislumbro o direito líquido e certo pleiteado, na medida em que a inabilitação no Pregão, encontra fundamento suficientemente demonstrado pela Administração, no sentido de que devem ser estendidos os efeitos da pena de suspensão temporária de licitar e contratar com o INSS aplicada à sociedade empresária DSD Engenharia (CNPJ n° 01.837.998/0001-46), para a ora agravante, DSD Instalações (CNPJ n° 05.197.068/0001-26), uma vez que restou evidenciado que ambas as empresas têm os mesmos sócios-proprietários, atuam no mesmo ramo de atividade, e mesmo endereço, além de identidade do corpo técnico, o que não encontra demonstração em contrário na prova dos autos. Em síntese, há forte e suficiente indício de abuso da personalidade jurídica com o fito de burlar os efeitos da penalidade aplicada. (TRF4 – Agravo de Instrumento n° 5040745-26.2016.4.04.0000 – 3ª Turma, relatora Des. Marga Inge Barth Tessler, em 22.02.2017)
[4] JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1656.
[5] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5ª ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora Fórum. 2022. Versão eletrônica. p. 1234
0 comentários