A (in)aplicabilidade dos benefícios de exclusividade ou preferência a ME e EPP nas contratações diretas por dispensa de valor regidas pela Lei 14.133/2021

10 de maio de 2023

Por Leonardo Saraiva

Com a ampliação dos limites para contratação direta por dispensa de valor, promovida pela Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLCA, por seu art. 75, incisos I e II, dúvidas têm sido suscitadas quanto à necessidade ou não da observância, nestes procedimentos, da diretriz de exclusividade de participações de microempresas e empresas de pequeno porte, quando se tratar de contratos em valor até R$ 80.000,00, conforme previsto no art. 48, I da Lei Complementar nº 123/2006.

Indagações, neste sentido, têm sido recorrentes na hipótese de adoção do procedimento de aviso de cotação previsto no §3º do art. 75 da Lei 14.133/2021, dado à similitude concorrencial com procedimentos licitatórios.

À resposta destas indagações dedicamos nossa atenção e trabalho hermenêutico nas linhas a seguir:

Sobre o tema, é de importância primacial a previsão expressa contida no art. 4º, caput da Lei nº 14.133/2021 quanto à aplicabilidade das disposições contidas nos arts. 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, ressalvadas as situações previstas no §1º, relacionadas ao enquadramento do valor receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte[1]

Quanto ao questionamento em abordagem neste artigo, este envolve, especificamente, a previsão normativa contida no art. 48, I da Lei Complementar nº 123/2006, que versa sobre a “participação exclusiva” de micro e pequenas empresas em licitações com valores de até R$ 80 mil reais, in verbis:

Art. 48.  Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública:    (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)        (Vide Lei nº 14.133, de 2021)

I – deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);

Ocorre que, embora o citado artigo 48 esteja dentre aqueles a que se remete o art. 4º da NLLCA, ressalvamos que, no tocante aos procedimentos de contratação direta, há tratamentos normativos peculiares que se hão de observar para a solução adequada, como abaixo se aclara:

Primeiramente, destaca-se que o citado art. 48, I da Lei Complementar nº 123/2006 dispõe sobre diretriz de “realizar processo licitatório” exclusivo para ME e EPP, não abrangendo, por conseguinte, hipóteses em que ausente procedimento licitatório, por ser dispensável ou inexigível.

O endosso a tal intepretação encontra-se na disposição seguinte, do art. 49, inciso I, que prevê textualmente a inaplicabilidade, em regra, dos benefícios licitatórios previstos arts. 47 e 48 da LC nº 123/2006 às hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação:

Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando:

(…)

IV – a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48.

Ronny Charles sentencia que a norma do art. 49, inciso IV chega a ser inútil porquanto “sem competição licitatória, obviamente, não haveria espaço para as regras de beneficiamento previstas pelos artigos 47 e 48”[2].

Entendemos, outrossim, pela utilidade da redundância proposital contida no inciso IV, enquanto reforço hermenêutico, a bem de afastar dúvidas possíveis no cotidiano das contratações administrativas, com atores e intérpretes com vieses hermenêuticos diversos.

Ainda se destaca a importância da ressalva expressa contida no inciso IV, de que, nas contratações por dispensa de valor, a compra (contratação) deverá ser feita “preferencialmente” a microempresas e empresas de pequeno porte[3].

Cabe, no entanto, avaliar qual a extensão e limites da diretriz de “preferência” a partir de leitura sistêmica da LC nº 123/2006 e da Lei nº 14.133/2021.

Leitura que se faz indispensável a este propósito é a dos incisos II e III do já citado art. 49 da LC nº 123/2006, que afasta do âmbito de aplicação dos arts. 47 e 48 as seguintes situações:

II – não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório;

III – o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;

Destaca-se que, se os incisos II e III autorizam a exclusão do dever de tratamento diferenciado em “licitações”, a fortiori, no tocante a contratações diretas, uma vez presentes as correspondentes circunstâncias, é cabível o afastamento da “preferência” a que se refere o inciso IV do mesmo artigo 49,


[1] Art. 4º  (…)§ 1º As disposições a que se refere o caput deste artigo não são aplicadas: I – no caso de licitação para aquisição de bens ou contratação de serviços em geral, ao item cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte; II – no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, às licitações cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte.

[2] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas / Ronny Charles Lopes de Torres – 14.ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2023. p. 1019.

[3] Embora o dispositivo se remeta textualmente à dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 às contratações diretas promovidas com fundamento na Lei nº 14.133/2021, por força do artigo 189 da nova lei.

[4] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Op. Cit. P. 1019.

[5] SARAIVA, Leonardo. Incentivos à “economicidade dinâmica” e “economicidade sistêmica” em obras públicas na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos in Obras públicas e serviços de engenharia na nova lei de licitações e contratos / coordenadores: Aldem Johnston Barbosa Araújo, Leonardo Saraiva. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. P. 307.

[6] Ao tratarem das deficiências do sistema de compras públicas, ancorado em busca bitolada do “menor preço”, Marcos Nóbrega e Rafael Sérgio de Oliveira apontam disfuncionalidade da seleção adversa que igualmente se verifica, mutatis mutandis, na contratação de obras públicas: “É cediço que na tradição brasileira há um verdadeiro fetiche pelo menor preço dos produtos a serem adquiridos. Sem dúvida, este é o principal critério de julgamento da Lei nº 8.666/1993, sendo o único admissível para a licitação de bens. Não se pode dizer que o menor preço despreza a qualidade, mas em alguns casos o uso desse único parâmetro (preço) faz com que a licitação seja uma verdadeira máquina de seleção adversa”. (NÓBREGA, Marcos; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. O Projeto da Nova Lei de Licitação, o “Fetiche da Mediocridade” e o Empecilho ao Best Value for Money. Disponível em: www.licitacaoecontrato.com.br. Acesso em: 03/08/2021)

[7] Ibidem. . P. 1020.

[8] Neste sentido, em recente pronunciamento do TCE/PE“ Não é obrigatório que em contratações diretas haja alguma espécie de disputa entre possíveis interessados. Basta, apenas, que a escolha do futuro contratado seja motivada e que o preço seja compatível com o mercado, o que não depende, insista-se, de cotações de preços com outros fornecedores ou interessados” (NIEBUHR, Joel de Menezes)”. (TCE/PE, Acórdão nº 1474/ 2022, Processo TCE-PE n° 20100647-9, Órgão Julgador: Segunda Câmara, Relator: Conselheiro Carlos Neves, Data de Publicação: 28/09/2022)

[9] Justen Filho, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021/ Marçal Justen Filho. – São Paulo : Thomson Reuteres Brasil, 2021. p. 944.

[10] Niebuhr, Joel de Menezes Licitação pública e contrato administrativo /João Joel de Menezes Niebuhr. – 5. ed. – Belo Horizonte : Fórum, 2022. P.

[11] Marçal Justen Filho destaca a importância do princípio da proporcionalidade na escolha da modelagem da licitação: “(…) A proporcionalidade é muito relevante para a licitação, que se configura como uma atividade administrativa destinada a selecionar uma entre diversas propostas de contratação. A autoridade administrativa desempenhará uma atividade de escolha de meios concretos para obtenção de determinados fins. Ao cogitar de promover uma contratação administrativa, a autoridade necessária necessita realizar uma escolha quanto à destinação de recursos públicos – o que exige uma atuação orientada a privilegiar certos interesses e excluir outros. Na sequência, a modelagem da licitação implicará decisões administrativas que afetam direitos, interesses e pretensões dos particulares diretamente envolvidos”. (Justen Filho, Marçal. Op. Cit.. p.)

AUTOR: 
Leonardo Saraiva
Advogado e Consultor jurídico especialista em Direito Administrativo. Conselheiro Estadual da OAB/PE. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/PE. Professor de pós-graduação. Vice-presidente do Instituto de Infraestrutura e Energia -INFRAE. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Autor de livros e artigos. Sócio administrador do escritório AZEVEDO SARAIVA ADVOGADOS ASSOCIADOS.

OBSERVAÇÃO:  Texto disponível em: https://jus.com.br/artigos/103844/a-in-aplicabilidade-dos-beneficios-de-exclusividade-ou-preferencia-a-me-e-epp-nas-contratacoes-diretas-por-dispensa-de-valor-regidas-pela-lei-14-133-2021#fn11

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2 Comentários

  1. André Felipe Araújo

    Excelente Artigo.

    No meu Órgão estamos passando por uma situação que se encaixa com o entendimento do autor.

    Sempre tivemos dificuldades em adquirir sal mineral para cavalos por pregão eletrônico em razão do item ser exclusivo para ME/EPP (por estar abaixo de 80 mil). Poucas empresas se interessam e normalmente o item resta fracassado ou deserto.

    Daí decidimos fazer uma dispensa pelo valor nos moldes da NLL Art. 75 Inc II, justificando a livre concorrência da compra direta em razão das recorrentes licitações frustradas por desinteresse histórico do mercado de ME/EPP em fornecer sal mineral, haja vista, nos últimos 8 anos termos conseguido contratar apenas em duas licitações, o resto findou fracassado ou deserto.

    Grato pelo excelente conteúdo!

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  2. Ludmila Bezerra

    1 – Uma licitação fracassada na 8.666/93 poderá ser dispensada utilizando o art. 75, inciso III, alínea ‘a’ da 14.133/2021?
    2 – Mantendo as mesmas condições/regras, na dispensa deverá ser concedido o tratamento diferenciado em atendimento a Lei 123/2006, conforme previsto no Pregão Fracassado/Deserto?
    Desde já agradeço e parabenizo pelo conteúdo disponibilizado.

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