Luciano Ferraz
Quando comecei a escrever o seriado The Walking Dead na Administração Pública, a intenção era – e continua a ser – apresentar ao público quatro temporadas. A primeira sobre o posicionamento do TCU quanto à tese da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário, depois das decisões do STF nos Temas 897 e 899 da repercussão geral (confira-se aqui a Temporada 1); a segunda sobre o entendimento sufragado pelo STJ para tornar ações populares, que foram tratadas como “ações fungíveis”, capazes de discutir sortes distintas de causas de pedir e pedidos (?) (confira-se a Temporada 2); o terceiro tratou das inovações legislativas veiculadas pela Lei 13.964/19 quanto aos acordos de não persecução cível, bem como sobre a tentativa de se limitar, via atos normativos, seu âmbito de incidência, mesmo depois do veto ao art. 17-A (Lei 8.429/92) – (confira-se aqui a Temporada 3); a temporada final dependia da edição da Nova Lei de Licitações e Contratos, que veio a lume, em 01.04.2021, como Lei 14.133/21.
O objeto da quarta temporada é o art. 74, III da Lei 14.133/21, cujo teor dispõe ser inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de: contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação: a) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos ou projetos executivos; b) pareceres, perícias e avaliações em geral; c) assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; d) fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; g) restauração de obras de arte e de bens de valor histórico; h) controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia (que se enquadrem no disposto no inciso III).
Ao se comparar a redação do novo dispositivo (art. 74, III) com seu espelho na Lei 8.666/93 (art. 25, II), ver-se-á que o legislador excluiu da disposição autorizadora da contratação direta, a expressão serviços “de caráter singular”, que tem sido objeto de interpretações as mais diversas, criando um cipoal de instabilidade jurídica no uso desse tipo de contratação.
Ver-se-á, ainda, que o legislador da Lei 14.133/21 excluiu do conceito de notório especializado a expressão “o mais adequado” (constante da Lei 8.666/93 – art. 25, §3º), substituindo-a por “adequado”, deixando ver que o que se busca, afinal, com as inexigibilidades fundadas no preceito, é antes um juízo de compatibilidade da contratação com a necessidade administrativa, do que um juízo de otimização única no momento da eleição do contratado (art. 74, §3º e art. 6º, XIX).
Com efeito, o conceito de singularidade, conforme consta da Lei 8.666/93, tem sido diversas vezes confundido com unicidade do prestador (pessoa e não objeto); singular tem sido também inadvertidamente interpretado como inédito, inovador, inusual, complexo, não corriqueiro ou tudo ao mesmo tempo, deixando ao sabor de particularidades e das paixões, a incumbência de julgar, hostilizar, sentenciar, condenar o uso da hipótese legal autorizadora da contratação direta.
Penso que a alteração legislativa obriga novamente à reflexão, contribuindo para que se desfaça a enorme confusão conceitual, havida sob a égide da Lei 8.666/93, entre necessidade administrativa (necessidade do serviço) e objeto contratual (prestação do serviço).
Com efeito, é a necessidade administrativa a ser satisfeita com a contratação, e sua ambientação em termos de resposta eficiente da Administração, que justifica a busca de um profissional diferenciado no mercado para executar o contrato. A necessidade é o motivo da contratação. O serviço é o objeto da contratação. Motivo e objeto não se misturam na teoria dos atos administrativos.
Nesse sentido, o art. 2º, parágrafo único, letra “c”, da Lei 4.717/65 prescreve que “a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo”; enquanto que a letra “d” do mesmo preceito prescreve que “a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido.”
Logo, qualquer cogitação sobre se a Administração deveria ou não ter contratado um profissional notório especializado para a execução de dado objeto (serviço) – juízo sobre a conveniência da contratação – não é uma discussão que reside no conteúdo em si do objeto do contrato, senão no âmbito da necessidade administrativa a ser satisfeita por seu intermédio. Com a previsão da hipótese de contratação por inexigibilidade baseada fundamentalmente em notória especialização do prestador, o legislador democrático objetivou afastar o teste, a experimentação, o risco, optando pela qualificação certa e comprovada de profissionais experts que se podem colocar a serviço da Administração Pública. O diferencial subjetivo é que prepondera neste caso, mercê da vinculação da atividade administrativa ao princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição).
Um exemplo pode nos auxiliar a descortinar o que se diz. Suponhamos que a Administração identificou uma necessidade administrativa, de natureza técnica, e cogita, para o seu suprimento, realizar uma contratação externa. Neste momento, as seguintes opções (sequenciais) se colocam à frente da Administração: (a) utilizar os próprios meios existentes e à sua disposição para suprir a necessidade administrativa (execução direta); (b) fazer um processo objetivo e selecionar propostas no mercado, segundo os parâmetros legais (execução indireta precedida de licitação); (c) contratar um notório especializado, detentor dos predicados diferenciados de qualificação técnico-profissional, e proceder à execução do contrato (execução indireta precedida de inexigibilidade). O que fazer?
Resposta 1. Se os meios internos à disposição da Administração forem capazes de atender à necessidade administrativa, com o mesmo grau (elevado grau) de certeza, segurança e qualidade (eficiência), não se deve contratar ninguém para o desempenho do serviço, uma vez que inexiste o motivo. Se, por outro lado, os meios internos não forem capazes de suprir a necessidade com o mesmo grau de certeza, segurança e qualidade, haverá motivo para a contratação de terceiros (execução indireta).
Resposta 2. Se identificada a necessidade administrativa, concluir-se que não faz a mínima diferença, em termos de certeza, segurança e qualidade, que o objeto do contrato seja executado por A, B, C ou N, podendo-se esperar resultados idênticos com a execução realizada por qualquer profissional minimamente qualificado, será o caso de licitar o objeto (serviço). Se, por outro lado, fizer diferença em prol da Administração, em termos de certeza, segurança e qualidade, que a execução do objeto se dê por intermédio de um profissional ou empresa cujo conceito, no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permitindo inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado (e não o mais adequado) à plena satisfação do objeto do contrato, será o caso de realizar a contratação direta.
O que se quer significar, com o exemplo, é que discussões sobre a necessidade da contratação vis-à-vis aos meios que se colocam à disposição da Administração para cumprir a finalidade pública subjacente, com o mesmo grau de certeza, segurança e qualidade (eficiência), não dizem respeito à singularidade do objeto (que no novo dispositivo legal encontra-se implicitamente pressuposta à hipótese de contratação direta do art. 74, III), reclamando embates de outra ordem (sobre a necessidade administrativa e a proporcionalidade da solução dada).
É que a identificação da necessidade pública e a definição quanto ao meio mais eficiente para o seu provimento é, no exame das situações de inexigibilidade, um processo avaliativo de matriz qualitativa e não quantitativa. A razão de ser é singela: nesse tipo de contratação predomina o aspecto subjetivo, a ver a balança pesar em favor da garantia de qualidade e eficiência do serviço, que decorrem essencialmente do diferencial técnico do executor.
The End.
0 comentários