Ronny Charles[1]
Ao tratar sobre o Sistema de Registro de Preços, a Lei nº 14.133/2021 repetiu a plataforma consagrada pelos regulamentos federais, com o acréscimo de interessantes inovações.
Uma das inovações que merecem destaque, sem dúvida, é a possibilidade de prorrogação do prazo de vigência da ata de registro de preços, conforme definido pelo artigo 84 da NLLCA, segundo o qual “o prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso”.
O regulamento federal, ao tratar sobre a vigência da ata de registro de preços, em seu artigo 22, basicamente repete o texto legal ao definir “o prazo de vigência da ata de registro de preços será de um ano, contado do primeiro dia útil subsequente à data de divulgação no PNCP, e poderá ser prorrogado por igual período, desde que comprovado que o preço é vantajoso”. Acrescenta o regulamento, no parágrafo único do referido artigo, que “o contrato decorrente da ata de registro de preços terá sua vigência estabelecida na forma prevista no art. 36”.
Nada obstante, a possibilidade de prorrogação da ata de registro de preços traz interessantes dúvidas práticas, dentre elas a seguinte: a possibilidade de prorrogação da ata permite a renovação dos quantitativos inicialmente definidos no edital da licitação?
Importante ressaltar que o regulamento federal, expressamente, em seu artigo 23, veda acréscimos nos quantitativos estabelecidos na ata de registro de preços. Contudo, a referida disposição parece estar relacionada ao aumento quantitativo dos itens previstos originalmente na ARP. Assim, em princípio, inexistiria a possibilidade de aumento quantitativo dos itens registrados, de forma similar à autorizada para as alterações unilaterais dos itens contratados, nos moldes do artigo 125 da Lei n. 14.133/2021. Nesta linha, se a ata previu um quantitativo de 10.000 unidades, este quantitativo não pode ser ampliado em 25%, durante a vigência do instrumento auxiliar.
Diferentemente, a questão por nós suscitada envolveria a possibilidade de renovação dos quantitativos registrados, em modelagem similar à adotada outrora para os serviços contínuos. Nessas situações, a expressão prorrogação é utilizada em sentido amplo, significando na verdade uma “renovação” do prazo.
Na prorrogação em sentido estrito, há apenas um prolongamento do prazo, sem mudança no escopo quantitativo do instrumento. Na renovação (espécie de prorrogação em sentido amplo), o prazo do instrumento e seu escopo de fornecimento são repetidos (renovados). A sutil diferença possui reflexos práticos relevantes.
Quanto um contrato ou uma ata de registro de preços são renovados, há uma repetição do instrumento, renovando-se as condições do período anterior. Assim, por exemplo, se o instrumento tinha vigência de um ano e valor total de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), a renovação permitirá uma repetição do instrumento, pelo mesmo período e com o mesmo valor, que poderá inclusive ser atualizado, sem que isso implique aumento quantitativo.
Em suma, dá-se, na renovação, uma repetição do instrumento firmado no período anterior, o que repercute não apenas na vigência, mas também nos valores a serem executados.
Em sentido diverso, na prorrogação (em sentido estrito), o principal elemento envolvido é tão somente a vigência do instrumento. O ato de prorrogação (em sentido estrito) apenas admite que que o prazo de vigência do instrumento seja elastecido, sem obrigatória repercussão direta no valor de sua execução. Assim ocorre, por exemplo, em uma reforma que, não sendo concluída no prazo estabelecido no contrato, pode ter sua vigência prorrogada, nas hipóteses admitidas pela Lei.
Pois bem, ao estabelecer que o prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e “poderá ser prorrogado, por igual período”, o legislador preconizava uma prorrogação em sentido estrito ou a possibilidade de renovação do instrumento?
Essa pergunta é fundamental porque, sendo tão somente uma prorrogação em sentido estrito, a duplicação do prazo de vigência da Ata por mais um ano não refletiria no quantitativo estimado para sua utilização. Por outro lado, sendo compreendida a prorrogação definida pelo legislador como uma hipótese de renovação, o novo período da ata traria consigo também a renovação dos quantitativos estimados.
Ambas as interpretações são legítimas e podem ser adotadas como alternativa pela regulamentação produzida pela autoridade competente.
Inicialmente, nas edições anteriores de nosso livro Leis de licitações comentadas, defendemos precipitadamente que eventual prorrogação da ata não teria o condão de permitir a renovação dos quantitativos firmados inicialmente na licitação. Importante salientar, este entendimento era majoritariamente adotado na égide da Lei n. 8.666/93, quando a prorrogação da ARP se dava apenas dentro do prazo de 12 meses. Neste período, inclusive, o TCU externou entendimento de que a prorrogação da ata de registro de preços, não permitiria o reestabelecimento dos quantitativos inicialmente fixados na licitação[2]. Assim, inicialmente, entendíamos que o entendimento firmado outrora, na legislação anterior, deveria ser mantido agora com a aplicação da Lei nº 14.133/2021.
Todavia, melhor refletindo sobre o assunto, mudamos nosso entendimento.
Ao buscar a interpretação de um texto legal, é fundamental soltar velhas poitas, respeitando a autonomia normativa do texto produzido pelo legislador para evitar o equívoco hermenêutico de tentar compreender a norma nova com olhos fitos no retrovisor que aponta para a norma antiga, prejudicando interpretações que respeitem a evolução pretendida pelo texto legal. Seguindo o importante alerta feito pela doutrina do Ministro Luis Roberto Barroso, deve-se rejeitar a patologia crônica da hermenêutica brasileira, de interpretar retrospectivamente o texto novo “de maneira a que ele não inove nada, mas ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo”[3].
Ora, sob a égide da Lei n. 8.666/93, o não reestabelecimento dos quantitativos, na prorrogação da vigência da Ata se demonstrava pertinente porque esta prorrogação se dava apenas dentro do período de 12 meses. Admitir a renovação de quantitativos poderia dar ensejo a que uma ata fosse forjada para fornecimento pelo período de três meses, com sucessivas renovações pelo mesmo período, até chegar ao período de 12 meses, implicando em um aumento do quantitativo ao quádruplo do originalmente previsto.
Ora, o planejamento é anual. Admitir que num mesmo ano esse quantitativo pudesse ser aumentado pela prorrogação da Ata parecia algo temerário.
Contudo, a Lei n. 14.133/2021 prevê uma vigência ordinária para a ata de registro de preços de 01 ano, com a possibilidade de prorrogação por mais um ano, nuance que, em nossa opinião, exige tratamento diverso do projetado no passado, sobretudo diante de uma intepretação sistemática de seu conjunto normativo.
Como já dito, dessume da própria Lei n. 14.133/2021 a anualidade do planejamento. O plano de contratações deverá ser anual (§ 1º, art. 12) e o próprio planejamento das compras deve considerar a expectativa de consumo anual (art. 40), do que resulta que a expectativa de consumo para a ARP deve respeitar também a anualidade.
Interpretar que a prorrogação admitida para ARP deveria ser compreendida como uma prorrogação em sentido estrito (inadmitindo, portanto, a renovação dos quantitativo) induziria o agente público competente a, para resguardar utilidade à prorrogação da ata de registro de preços, projetar o quantitativo previsto anualmente para um período de 24 meses. Assim, uma ARP envolvendo a pretensão contratual de fornecimento estimado em 10.000 unidades no ano, seria projetada com um quantitativo de, pelo menos, 20.000 unidades (para abarcar o quantitativo grosseiramente estimado para o período subsequente). Tal postura induziria um planejamento impreciso e provavelmente seria recebida como uma indicação falsa ou superestimada do quantitativo pretendido pela Administração, algo que geraria desconfiança entre os fornecedores sérios, prejudicando a obtenção de melhores propostas, pelo aumento de risco, baixa fidedignidade da demanda informada e perda de confiabilidade do órgão licitante.
Outrossim, essa posição afrontaria o princípio da anualidade do orçamento, induzindo o gestor responsável a ampliar a periodicidade da projeção de demanda.
Também parece inadequado defender que não seria possível renovar os quantitativos porque a prorrogação teria apenas como utilidade a conclusão do resíduo previsto na Ata. Ora, partindo do pressuposto que o planejamento foi sério e anual, o resíduo a ser contratado significaria apenas um pequeno percentual do previsto na ata de registro de preços. Se fosse para tratar a prorrogação da ata de maneira estrita, equiparando-a à continuidade de um contrato de escopo, não faria sentido o texto legal já definir que a prorrogação se daria por mais um ano, mesmo período da vigência inicial da ata de registro de preços, já que na prorrogação de um instrumento para a conclusão da execução (escopo) o período acrescido deve ser o estritamente necessário à conclusão do objeto (fornecimento).
Ao definir que prorrogação (renovação) da ata de registro de preços se dará pelo mesmo período original[4], o legislador parece ter indicado uma modelagem de renovação, similar à outrora admitida para os serviços continuados, nas prorrogações admitidas pelo inciso II do artigo 57 da Lei n. 8.666/93.
Nessa linha de entendimento, a decisão administrativa de prorrogação da ata de registro de preços, que apenas deverá ocorrer quando o preço for vantajoso, permitirá a renovação do referido instrumento por mais um ano, admitindo a renovação de seus quantitativos. Exemplificando: se o planejamento da pretensão contratual identificou uma necessidade anual de 10.000 unidades, após o final da vigência ordinária de 01 ano, o instrumento poderia ser prorrogado por mais um ano, com a renovação do quantitativo, admitindo que no segundo ciclo de vigência (renovação) mais 10.000 unidades fossem contratadas pelo gerenciador e eventuais participantes.
Em suma, parece-nos que o legislador, ao se referir à prorrogação da Ata, optou pela possibilidade de renovação do instrumento, o que repercute na possibilidade de renovação dos quantitativos inicialmente previstos para o ciclo anual original.
[1] Advogado da União. Doutorando em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (14ª ed. Jus Podivm); Direito Administrativo (coautor. 13ª ed. Jus Podivm); Licitações e Contratos nas Empresas Estatais (coautor. 3ª edição. Jus Podivm) e Comentários à Lei de Improbidade Administrativa (ed. Jus Podivm). Análise Econômica das licitações e contratos (coautor. Fórum).
[2]. TCU. Acórdão nº 991/2008, Plenário.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 4. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 71.
[4] Art. 84. O prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso.
Bem-vindo seu artigo.