Para onde caminham as contratações públicas brasileiras?
Considerações iniciais
Vivemos tempos de mudanças na Administração Pública brasileira. Há uma clara ansiedade em torno de alterações legislativas e, também, uma curiosidade sobre a possível influência da tecnologia no serviço público. Passaram a ser pauta corrente o risco de substituição de pessoas pela inteligência artificial e a contratação de inovações. Fala-se em mudar a forma de selecionar agentes públicos e de avaliar seu desempenho, buscando uma Administração Pública mais atenta às necessidades de seus “clientes” e rápida nas suas respostas. E especialmente, nunca se esteve tão perto de uma nova lei de licitações.
A Administração Pública brasileira atual não tem se mostrado capaz de suprir as necessidades de uma sociedade do conhecimento, conectada pelo compartilhamento de dados, cada vez mais informada, ciente de seus direitos e inserida em um mercado privado altamente competitivo, dedicado a surpreender positivamente o seu consumidor. Novas tecnologias chegam cada vez mais rapidamente às pessoas, suprindo um número maior e crescente de necessidades, mudando cenários, gerando novas demandas, interesses e direitos. A modernidade líquida[1] segue definindo o status social do século XXI e alcança também a construção da Administração Pública do futuro. Nesse contexto, excesso de burocracia, rigidez hierárquica, prolixidade normativa, lentidão e medo do controle são características de um modelo colapsado, que precisa ser substituído por outro, compatível com o “mundo lá fora”, com processos mais ágeis, rapidez nas respostas, flexibilidade, adaptabilidade a novos cenários e atuação colaborativa.
Para que isso ocorra, transformações são necessárias, inclusive no processo de contratação pública, sendo fundamental pensar, compreender e agir sistemicamente, com especial atenção para os objetivos e a coerência entre as ações realizadas nos diversos setores.
Mudanças na Administração Pública: pessoas, processos e controle
Mudanças significativas na Administração Pública dependem, a rigor, de mudanças em três aspectos: pessoas, processos e controles.
O serviço público é um ambiente refratário a mudanças. Agentes públicos, em sua maioria, são avessos ao risco, não possuem ou não desenvolveram, por falta de oportunidade ou estímulo, habilidades importantes, vistas pelas corporações privadas como fundamentais e desejáveis em seus colaboradores, pois estão diretamente relacionadas ao aumento da competitividade. Não obstante a uma parcela diferenciada de gestores com perfil empreendedor, atuando, incansavelmente, em busca de melhorias, não são eles produto do meio, nem do método de escolha utilizado, mas, sim, de um fator aleatório atuante no momento de seu ingresso nos quadros públicos.
Apesar de parecer, não é estranho falar da necessidade de uma Administração Pública mais competitiva. Cada vez mais seus resultados vêm sendo comparados aos do setor privado em níveis de eficácia e a sociedade está mais intolerante, dia após dia, ao velho jeito de fazer as coisas. Contudo, depois de séculos de inserção no regime burocrático, com todos as suas distorções, permanecer dentro do plexo de atribuições inerentes ao cargo ou função é uma diretriz evidente e segura para qualquer agente público, cujas atividades estão submetidas a um controle rígido, muitas vezes centrado em processos e procedimentos, não em resultados. Esse estado de coisas não provê estímulos a outros aprendizados, a manifestações e iniciativas de natureza transversal e, de uma maneira especial, à produtividade e às inovações decorrentes do pensar e agir coletivo. Assim, não é fácil mudar.
É evidente a necessidade de mudanças relacionadas a governança e gestão de pessoas. De um modo especial, para possibilitar a redefinição da liderança no serviço público, superando as barreiras da hierarquia excessiva e dos egos intransponíveis, atenta a mudanças e tendências operadas fora do contexto Administração Pública. São imprescindíveis, ainda, agentes públicos imbuídos de um objetivo executor, cuja performance se assemelhe mais ao empregado privado de alto rendimento, compreendendo iniciativa e produtividade dentro do conceito de eficiência.
No horizonte de possibilidades, um novo modelo de seleção de agentes é cogitado, ao menos no espaço acadêmico. O Policy Brief “Seleção de elite – Como mudar o concurso público para selecionar os melhores”, publicado pela Escola Nacional de Administração Pública – ENAP[2], discute algumas habilidades esperadas de agentes públicos e propõem, com base em experiências comparadas, a reformulação de seu modo de seleção. Segundo os autores, as competências brandas ou soft skills também devem ser consideradas nesse processo para que a Administração Pública traga, sistematicamente, para os seus quadros indivíduos com habilidades verbal e inter-pessoal, criatividade, honestidade, visão, entre outras, as quais não são avaliadas por meio do modelo tradicional. O estudo apresenta alguns métodos considerados eficazes, sugerindo como opção de maior potencial a criação de oportunidades temporárias para que candidatos possam demonstrá-las na prática.
Em outro flanco, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar do Senado nº 116, de 2017, que muda o enfoque da avaliação de desempenho de agentes públicos. Sob fortes críticas, o objetivo anunciado não seria a demissão do servidor, mas a maior assertividade em sua alocação no serviço público visando ao aumento da produtividade.[3] O projeto propõe avaliar aspectos diferenciados da atuação do servidor, como a tomada de providências para evitar a reincidência em erros, a contribuição para a melhoria contínua e a tempestividade na execução de tarefas para obtenção de resultados, assim como a utilização de fatores avaliativos variáveis, fundados em relacionamento profissional, foco no usuário/cidadão, inovação, capacidade de iniciativa, responsabilidade, solução de problemas e tomada de decisão.
Este conjunto de medidas, se levadas adiante, parece ser capaz, ainda que gradualmente, de produzir uma modificação profunda no DNA da Administração Pública brasileira, contribuindo para a sua transformação.
Tais mudanças somente farão sentido se acompanhadas de mudanças nos processos. É preciso, ao mesmo tempo, restaurar a confiança na capacidade do agente público, racionalizando a edição de normas operacionais e flexibilizando os procedimentos, e investir em recursos da tecnologia da informação para otimizar a execução de atividades, facilitar o controle dos processos de trabalho e melhorar a performance do ato administrativo. Novamente, o papel da governança é fundamental para pensar em novos caminhos, sob novos prismas. É preciso deixar, ainda que a passos cautelosos, a trilha que conduz à desconfiança do servidor público, que limita e controla ao máximo seu espaço de atuação e trata a necessidade de capacitação como algo supérfluo, para avançar em providências que conduzam ao desenvolvimento profissional continuado.
Nesse contexto, as tecnologias disponíveis, da mais simples à mais complexa, precisam ser absorvidas. O uso do blockchain nos procedimentos administrativos, há anos discutido, é visto como apto a assegurar a observância da lei e facilitar o controle da atuação dos agentes estatais e sujeitos privados, contribuindo com a transparência e a tempestividade dos atos.[4] A utilização dos chamados “robôs” na execução de tarefas repetitivas e da inteligência artificial na realização de avaliações e diagnósticos, no subsídio e na própria tomada de decisões, com maior garantia de resultados e redução significativa de custos parece ser um caminho sem volta e acompanha uma forte tendência do setor privado.
A boa nova é que já se pode observar uma mudança na forma de pensar as soluções para os problemas públicos, marcada por uma inteligência própria dos tempos atuais, que incorpora a tecnologia da informação à noção de eficiência e altera, discretamente, o conteúdo que tradicionalmente se dava ao princípio de mesmo nome, insculpido no art. 37 da Constituição Federal. Há plataformas e apps que concentram serviços, informações, boas práticas, economizam tempo e recursos, oferecem transparência. Educação, saúde, previdência social, segurança pública, atividades judicantes são setores que já estão permeados, aqui e ali, por ferramentas tecnológicas que simplificam a vida dos cidadãos e dão eficiência, eficácia e efetividade ao cumprimento da missão institucional. É possível perceber a preocupação em buscar inovações em todos os setores, num franco indicador de que o caminho da Administração Pública 4.0 está sendo traçado.
Por fim, mudanças nas pessoas e nos processos não produzirão os necessários resultados se desacompanhadas de mudanças no controle dos atos administrativos. O tema é demasiadamente complexo e não cabe neste ensaio. Entretanto, dois obstáculos a uma administração pública mais ágil e inovadora parecem, desde logo, claros: a) o excesso de órgãos incumbidos dessa atividade e a consequente superposição de atos de controle, que dão morosidade aos processos e desviam o foco dos agentes públicos para o cumprimento de procedimentos e formalidades; b) o medo da responsabilização pessoal eventualmente decorrente de atuação não condizente com o modo de pensar dos agentes do controle, inibindo e transformando os agentes públicos em meros cumpridores de normas ou decisões de tribunais de contas. Antes de mais nada, é necessário reconhecer como uma das causas do recrudescimento do controle ao longo dos anos o cenário de impropriedades encontradas, diretamente ligado à pouca relevância dada às ações de capacitação, que configura obstáculo real a ser superado. A par disso, as questões ora apontadas, em rol não exaustivo, precisam ser vistas como prioridade, concentrando-se, as iniciativas de mudança, na busca por meios que impeçam a produção de efeitos danosos sobre os avanços necessários. Com a aplicação da nova LINDB, esperam-se significativas mudanças na realidade da responsabilização de agentes públicos pelos Tribunais de Contas, produzindo, reflexamente, melhorias no ambiente de tomada de decisões.
Mudanças nas contratações públicas: o que nos aflige
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o mercado de compras governamentais corresponde, em média, a 13% do produto interno bruto (PIB) brasileiro. São bilhões gastos anualmente para prover as mais diversas necessidades, atreladas ao interesse público primário e secundário. Portanto, pensar as mudanças na Administração Pública brasileira exige pensar as mudanças no processo de contratação, sendo absolutamente necessário que isso se faça de maneira sistêmica, integrada e conjuntamente planejada com outras mudanças que estiverem no radar.
O assunto adquire especial relevo ao tempo em que a abertura das licitações nacionais ao mercado externo começa a ser desenhada, com a sinalização de possível adesão do Brasil ao Global Procurement Agreement – GPA, sendo absolutamente obrigatório adotar medidas que melhorem o ambiente das contratações públicas e a relação com o mercado interno.
Contudo, quando voltamos nossa atenção às contratações públicas considerando um cenário de mudanças, as preocupações são inevitáveis. Qualquer outra discussão parece sucumbir à real necessidade de concentrar, prioritariamente, investimentos em esforços para melhorar a concepção e a inteligência do negócio.[5] Desde que a Lei 8.666/93 começou a envelhecer e o pregão, a dar sinais de cansaço,[6] provocações vem sendo feitas, nem sempre em artigos científicos, mas certamente no seio de discussões acadêmicas, em busca de um novo modelo legal. Dentre os principais aspectos discutidos, estão:
- a) redução da assimetria de informações e aproximação das compras públicas com a realidade do mercado, ao invés da manutenção de um “universo particular”, com regras próprias e burocracia protagonista, que levam, entre outros, a contratações de baixa qualidade, dificuldades de fiscalização e preços inexequíveis e
- b) flexibilização do ambiente normativo e ampliação do espectro de discricionariedade administrativa, em linha de consonância com o espírito da nova Lei de Introdução ao Direito Brasileiro – LINDB, favorecendo o amadurecimento gradual dos agentes públicos, ao invés da manutenção de um sistema formado por normas analíticas, responsáveis, em grande parte, por males como engessamento de decisões, falta de pensamento crítico, infantilização da Administração Pública e medo do controle.
Reconhece-se, ainda, a necessidade de um modelo que considere, democraticamente, as diferentes realidades dos entes, notadamente dos Municípios, instituído por uma lei nacional especialmente clara em fixar normas gerais e com evidente espaço para o exercício da competência concorrente, possibilitando e incentivando o equacionamento de questões ligadas a peculiaridades e interesses locais e fortalecendo o Pacto Federativo.
Mais especificamente, busca-se um modelo que se sustente em outras premissas, tais como:
- a) desoneração da Administração quanto a encargos que não condizem com a sua condição de comprador;
- b) desoneração do mercado quanto a obrigações que representem ônus comercial agregado à específica condição de fornecedor público;
- c) apropriação de práticas privadas que garantam a qualidade dos fornecedores e de seus produtos;
- d) eliminação, total ou parcial, de problemas decorrentes exclusivamente do modo peculiar de contratar;
- e) uso de tecnologias como pressuposto inerente à busca por melhores resultados;
- f) flexibilidade e inovação como consequência de seu processo evolutivo;
- g) foco na compra pública inteligente e sustentável[7], valendo-se do poder de compra do Estado para incentivar políticas públicas sem comprometer a eficiência do processo ou os resultados do contrato;
- h) incentivo e facilidade na contratação de qualquer espécie de solução considerada inovadora, oferecido por qualquer player do mercado;
- i) perenidade, possibilitando a acomodação de situações futuras ainda não identificadas, por não tratar de detalhes ou descer a minúcias, nem se apegar a entendimentos e práticas compatíveis com certo momento no tempo.[8]
Em paralelo a discussões sobre mudanças legislativas, questões relacionadas à governança nas contratações precisam ser revisitadas. Há alguns anos se observa, com certa apreensão, a existência de uma relação de dependência entre órgãos e entidades de diferentes níveis federativos e a proposição de inovações, quer normativas[9], quer materiais, a partir da realidade da Administração Pública federal direta. O mesmo pode ser dito em relação a entidades paraestatais e conselhos profissionais e, também, a órgãos e entidades federais que possuem estrutura diferenciada particular. Ações como cópia fiel de normas, utilização indiscriminada de modelos de documentos do processo de contratação, tentativa de incorporar práticas que, na maioria das vezes, não conseguem ser transplantadas ipsis litteris para a realidade dessas organizações, produzem transtornos de diversas ordens. Há uma influência especial do Tribunal de Contas da União, quando classifica ações federais como modelos de benchmarking, porque fundadas em princípios de natureza constitucional[10], mas o problema é maior do que isso. Há, como bem alertou Adilson Abreu Dallari[11], uma vassalagem, um “vício antigo de curvar a espinha dorsal e baixar a cabeça” que precisa ser corrigido.
É mandatório que as soluções comecem a ser pensadas a partir da leitura dos problemas por aqueles que os vivenciam, considerando a sua realidade, de forma desvinculada das soluções concebidas no âmbito da Administração Pública federal direta, onde, a priori, abundam recursos. Para isso, cabe reconhecer que, guardadas as necessárias exceções, os demais entes e organizações possuem capacidade interna para encontrar soluções ajustadas à sua realidade ou para se ajustarem a soluções já existentes, sendo fundamental o papel da governança na manutenção do diálogo e no estímulo a inovações bottom up, identificando e valorizando líderes situacionais e criando um ambiente oportuno para que os próprios agentes inseridos nas contratações públicas estudem e proponham soluções. Nessa linha, regras claras e consoantes à nova LINDB, que distingam o erro honesto[12], que incentivem a criatividade, motivem agentes e eliminem instâncias podem ser editadas. Nos pequenos municípios ou naquelas organizações que não possuem condições técnicas ou de recursos humanos necessárias a um estudo avaliativo com diagnóstico assertivo, deve-se não somente entender como correta, mas estimular a busca de soluções junto a especialistas do setor privado, por meio do competente processo administrativo de contratação via inexigibilidade de licitação, respeitados todos os princípios e normas regentes.
Em qualquer nível federativo, administração direta ou indireta, é essencial deixar de enxergar a capacitação como perfumaria e abandonar a prática de ações isoladas, desconectadas e de baixo investimento, para manter políticas de desenvolvimento de pessoas efetivas e planos de capacitação assertivos, abarcando níveis operacionais e estratégicos, capacitando para a prática de funções específicas e proporcionando o desenvolvimento de outras habilidades, correlatas e complementares. É imperioso que as organizações sejam mais cuidadosas ao contratar cursos e treinamentos, considerando, para tanto, suas necessidades peculiares e o tipo de capacitação que, de fato, proporcionará resultados. É preciso focar nas lideranças e no desenvolvimento do pensamento crítico, sendo coerente avançar alguns passos e qualificar o agente público para lidar com dados e tecnologia.
Nesse contexto, ainda, o exercício cuidadoso e consciente da função normativa é decisivo. É preciso identificar corretamente os hiatos que precisam ser preenchidos por normas operacionais, atentando para eventual excesso, responsável pela dependência paralisante. O volume de normas é indiretamente proporcional à confiança na capacidade dos seus destinatários e, portanto, a mensagem clara é no sentido de que apenas a autoridade normalizadora possui condições para saber o que deve ser feito. Portanto, normas são necessárias, mas limitadas ao necessário.
Por fim, sem a pretensão de esgotar o tema, é preciso racionalizar o gasto público e fortalecer a parceria com o setor privado. Não é consentâneo com o princípio da Eficiência e com a busca da eficácia administrativa que haja investimento de esforço público direto na busca por objetos inseridos em setores em que a oferta privada abunda com excelência. É fundamental, nesses casos, enxergar o mercado, especialmente o nacional, como parceiro e aproveitar seu potencial para oferecer soluções eficientes, dedicando-se, a Administração Pública, a buscar residualmente, com forças próprias, apenas as soluções que ele não pode ou não deve suprir. É preciso avançar para a parceria com foco nas compras públicas inovadoras, estimulando o mercado a oferecer novos produtos e serviços cada vez mais consentâneos com o aumento da eficiência na Administração Pública.
Então, para onde caminham as contratações públicas brasileiras?
Não há, como desde o início se previa, resposta para essa indagação. Seria de uma imprudência juvenil tentar prever o futuro de um segmento permeado por tantos e diversos interesses. Não há dúvida, contudo, quanto à necessidade de mudar o modelo de contratação e de revisar práticas equivocadas de governança.
É importante alertar para o erro de se planejar e realizar mudanças em outros setores da Administração Pública sem considerar as mudanças necessárias na contratação pública, ao que se relacionam diretamente não só a manutenção da máquina, mas a realização do interesse público primário. Assim, as mudanças na contratação pública devem ser pensadas, avaliadas e concebidas conjuntamente com as demais, em um mesmo locus, garantindo a coerência do resultado. Nesse contexto, a busca por uma Administração pública mais moderna, tecnológica, habitada por um novo tipo de agente público, mais produtivo, mais habilidoso, capaz de entregar cada vez mais, não é compatível com um regime jurídico de contratações públicas descritivo, prolixo, engessado, com pouco espaço para o exercício da discricionariedade e para o aperfeiçoamento orgânico de processos, mas, sim, com um novo modelo de negócio público, repensado e concebido para atender às novas demandas de eficiência e eficácia administrativa, capaz de eliminar problemas congênitos ao modelo vigente. Ainda, necessitamos de regras duradouras, adaptáveis a diferentes realidades temporais, menos sensíveis a discussões em tese, que estimulem a criatividade dos operadores do Direito e da Administração Pública na busca por soluções inovadoras, permitindo uma evolução contínua independentemente de atualizações normativas.
A condição especial dos Municípios, sua importância e autonomia dentro do Pacto Federativo, assim como a diversidade de situações particulares precisam ser levadas em consideração em qualquer processo de mudança, recebendo especial atenção, senão para conceber solução diferenciada, para criar um espaço claro e seguro para regulamentação própria.
Por fim, é preciso investir em uma verdadeira parceria com o mercado privado, seja interno ou externo, despida de traços de oposição ou competição. Cabe reconhecer a inteligência de uma relação de simbiose, em que nenhum dos lados é melhor ou pior, em que o diálogo franco, além de melhorar os resultados, abre portas para contratações públicas inovadoras, com estímulos à oferta, pelo setor privado, de soluções que possibilitarão o melhor desempenho da Administração Pública no exercício de seus misteres.
Isto posto, se por um lado não é prudente arriscar previsões futuras, por outro, é perfeitamente possível, olhando para o passado, enxergar mudanças imprescindíveis a uma nova versão das contratações públicas brasileiras, mais eficientes, eficazes e inovadoras.
[1] A expressão pertence à teoria do sociólogo polonês Zigmund Bauman e ilustra um estado permanente de mudanças da vida moderna.
[2]CARNEIRO, Breno Zaban et. all. Seleção de Elite – Como Mudar o Concurso Público para Selecionar os Melhores. Publicado em https://www.enap.gov.br/documentos/Sele%C3%A7%C3%A3o_Servidores.pdf, acesso em 6.12.2019.
[3] Vide notícia veiculada em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/07/02/para-especialistas-avaliacao-de-servidor-publico-deve-integrar-projeto-de-gestao, acesso em 6/12/2019.
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. “A tecnologia realizará a promessa que o Direito Administrativo não cumpriu?
Como a implantação do blockchain afetará os procedimentos administrativos.” https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/a-tecnologia-realizara-a-promessa-que-o-direito-administrativo-nao-cumpriu-26112019, acesso em 6/12/2019.
[5]Floriano Azevedo Marques Neto e Rafael Véras de Freitas, em artigo publicado no início de 2018, já defenderam: “É hora, pois, de se repensar o sistema de contratações públicas brasileiro. Cuida-se de um momento no qual se despertam toda sorte de embates e de paixões. Inúmeros projetos de lei são apresentados, comissões são constituídas, grupos de interesse defendem suas posições, instituições tentam ampliar o seu espetro de poder (v.g. a ampliação da atuação dos Tribunais de Contas). Mas, até agora, o que se tem notícia é da apresentação de projetos de lei que não alteram, por completo, a sistemática das contratações públicas brasileiras. De fato, as referidas proposições se limitam a realizar o trespasse de inovações trazidas por diplomas normativos mais recentes (como o RDC, e dos normativos que instituíram o pregão) para o regime geral. É bem pouco. A LGL deve ser, totalmente, reformulada, tendo por lastro um viés fomentador da eficiência, que reduza os custos de transação entre o poder público e os seus contratados.” (“O futuro das contratações públicas”, divulgado em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-futuro-das-contratacoes-publicas-12032018, acesso em 31.01.2020)
[6] Marçal Justen Filho, em entrevista concedida à Revista “O Pregoeiro”, alertou: “Há muito tempo, eu cunhei a expressão “mutação dinâmica das propostas”. Indica o processo decisório do licitante que vai reduzindo a qualidade do objeto a ser entregue à Administração à medida em que o preço é diminuído no processo competitivo do pregão. A margem de lucro do particular permanece inalterada, o seu custo é reduzido e a Administração recebe um produto imprestável. Esse problema foi descrito pela Economia, há quase cinquenta anos. Chama-se “seleção adversa”. Nas hipóteses em que a qualidade do produto é incerta, a aquisição fundada exclusivamente no critério do menor preço conduz a uma compra desastrosa. (…) Ou seja, o pregão é adequado para contratações em que a qualidade do objeto seja invariável ou irrelevante. É a famosa questão do “objeto comum”. Ocorre que a difusão do pregão afetou o próprio mercado de objetos comuns. Hoje, é difícil afirmar que água mineral, para fins de pregão, seja um produto efetivamente comum: é necessário exigir uma amostra para avaliar o produto “água mineral” ofertado pelo licitante. Portanto, se a Administração necessitar de uma prestação dotada de alguma qualidade, é muito problemático valer-se do pregão. É verdade: o pregão (especialmente eletrônico) é muito cômodo e muito rápido. Mas se o argumento for esse (rapidez e comodidade), a solução é eliminar a licitação. Muito mais cômodo e rápido é consultar um sítio de vendas e realizar a compra. Aliás, por que não substituir o pregão eletrônico por um procedimento já aprovado pelo mercado?” (JUSTEN FILHO, Marçal. Opinião sobre o PL 6814/17, a falência da licitação na modalidade pregão e outros temas de licitações e contratos no Brasil. Curitiba: Revista O Pregoeiro, Dez/17, pp. 27 a 31.).
[7] Uma compreensão para o conceito de compra pública inteligente é proposta por PAIM, A.C., em “Compras públicas inteligentes: uma proposta para a melhoria da gestão das compras governamentais”, disponível em https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3166/1/ARTIGO%20COMPRAS%20P%C3%9ABLICAS%20INTELIGENTES.pdf, acesso em 15.12.2019.
[8] O tema foi preteritamente explorado no artigo de minha autoria, intitulado “A importância das compras públicas no Brasil e o paradoxo da ineficiência” publicado em https://www.conjur.com.br/2018-jun-16/gabriela-percio-compras-publicas-paradoxo-ineficacia, junho de 2018, acesso em 15.12.2019.
[9] Vale lembrar, conforme assevera Fabrício Motta, “o campo próprio para a edição de atos normativos pela Administração, segundo a concepção tratada, é o das matérias de repercussão exclusivamente administrativa, com efeitos no âmbito doméstico da Administração.” (MOTTA, Fabrício. Função Normativa da Administração Pública. Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2007: p. 160)
[10]Vide Acórdão nº 1.215/09 – Plenário.
[11]DALLARI, Adilson Abreu. Lei estadual de concessões e legislação federal superveniente, Revista trimestral de Direito Público, p. 70-73.
[12] SOARES e PRETE conceituam o erro honesto como sendo “efeitos negativos não esperados de alguma ação com a intenção de acertar e melhorar alguma atividade, em contraponto a um erro desonesto, que, por sua vez, diz respeito a uma ação propositalmente feita para gerar resultados negativos, como boicotes ou corrupção”. (SOARES, Fabiana de Menezes; PRETE, Esther Külkamp Eying (org.) “Marco Regulatório em Ciência, Tecnologia e Inovação – Texto e Contexto da Lei nº 13.243/2016”. ARRAES Editores, Belo Horizonte: 2018, p. 59)
Gabriela Pércio
Mestra em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Especialista em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito de Curitiba (FDC-UNICURITIBA). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Advogada e consultora para a Administração Pública em Licitações e Contratos. Autora das obras Contratos Administrativos – Manual para Gestores e Fiscais (2ª ed., Curitiba: Ed. Juruá) e Instrução Normativa 05/17-MPDG – Comentários a Artigos e Anexos (Porto Alegre: Ed. INGEP).
Referências bibliográficas
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BERMÚDEZ, Andrés Pastor; FUENTES, Pedro Nogales. El futuro del trabajo en la administración pública. ¿Estamos preparados?. Revista Vasca de Gestión de Personas y Organizaciones Públicas. Núm. especial 3/2019. Págs. 34-51 or. ISSN: 2173-6405 e-ISSN: 2531-2103.
CARNEIRO, Breno Zaban et. all. Seleção de Elite – Como Mudar o Concurso Público para Selecionar os Melhores. Escola Nacional de Administração Pública – ENAP. Disponível em https://www.enap.gov.br/pt/noticias/enap-lanca-policy-brief-sobre-selecao-de-elite-como-mudar-o-concurso-publico-para-selecionar-os-melhores, acesso em 06.12.2020.
DALLARI, Adilson Abreu. Lei estadual de concessões e legislação federal superveniente, Revista trimestral de Direito Público nº 11, p. 68–74, 1995.
JUSTEN FILHO, Marçal. A tecnologia realizará a promessa que o Direito Administrativo não cumpriu? Como a implantação do blockchain afetará os procedimentos administrativos. Revista Jota. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/a-tecnologia-realizara-a-promessa-que-o-direito-administrativo-nao-cumpriu-26112019, acesso em 11/02/2020.
______________________. Opinião sobre o PL 6814/17, a falência da licitação na modalidade pregão e outros temas de licitações e contratos no Brasil. Curitiba: Revista O Pregoeiro, Dez/17, pp. 27 a 31.
MARQUES NETO, Floriano Azevedo e FREITAS, Rafael Veras de. O futuro das contratações públicas. Revista Jota. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-futuro-das-contratacoes-publicas-12032018, acesso em 31.01.2020.
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PAIM, A.C. Compras públicas inteligentes: uma proposta para a melhoria da gestão das compras governamentais. Disponível em https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3166/1/ARTIGO%20COMPRAS%20P%C3%9ABLICAS%20INTELIGENTES.pdf, acesso em 11.02.2020.
SOARES, Fabiana de Menezes; PRETE, Esther Külkamp Eying (org.) Marco Regulatório em Ciência, Tecnologia e Inovação – Texto e Contexto da Lei nº 13.243/2016. Arraes Editores, Belo Horizonte: 2018.
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