Os efeitos das sanções em matéria de contratação pública

25 de agosto de 2020

Os efeitos das sanções em matéria de contratação pública

Por Cristiana Fortini

Na primeira semana deste mês, ocorreu a I Jornada de Direito Administrativo realizada pelo STJ e o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.

Evento de extrema relevância, por franquear aos estudiosos e/ou operadores do Direito Administrativo a oportunidade singular de levar ao palco sugestões de enunciados, a Jornada foi ao encontro do que desejava a comunidade jurídica. Prova disso está no número de propostas apresentadas.[1] .

Parte relevante das discussões envolvia temas já enfrentados pelo STJ e, claro, também no âmbito dos TRFs. Digo isso para esclarecer que temas mais recentes ou menos rotineiros também desembarcaram na Jornada.

Importante esclarecer que não fora indicado qualquer limite, salvo os de caráter formal, para conduzir os interessados a apresentar a recomendação. Logo, sugestões de enunciados em antagonismo com julgados do STJ poderiam ser oferecidas, permitindo uma discussão fora autos de teses jurídicas.

O mecanismo de discussão idealizado pela organização contemplou um sistema de filtros, razão pela qual as propostas foram submetidas aos Presidentes e Coordenadores de cada uma das comissões “setoriais” e, posteriormente, se consideradas aptas a prosseguir, discutidas pelos demais integrantes das citadas comissões.

Apenas as sugestões de enunciados que sobreviveram aos dois filtros iniciais chegaram à plenária, oportunidade em que todas as comissões se reuniram.

A plenária reuniu a coordenação geral, liderada pela eminente Ministra Assusete Magalhães, e composta ainda pelo Professor Cesar Pereira, pelo Ministro do TSE, Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, e pelo Juiz Federal Daniel Marchionatti, bem como pelos Ministros do STJ Benedito Gonçalves, Herman Benjamin, Mauro Campbell, Sergio Kukina e Og Fernandes, além do Desembargador Federal, João Batista Gomes Moreira, que presidiram as comissões. A eles se juntaram os coordenadores e demais membros das comissões.

Entre as propostas de enunciados, havia a seguinte: “Os efeitos das sanções de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a entidade sancionadora se dão exclusivamente com a entidade sancionadora, não podendo previsão editalícia estender os efeitos da sanção para toda a Administração Pública.”

Interessante trazer a público a síntese da justificativa apresentada pelo autor/autora da sugestão. Ombreado ao texto, seu/sua idealizador(a) dizia que diversos editais de licitação repudiam a participação de interessados punidos de acordo com o art. 83, inciso III, da Lei das Estatais. Afirmava-se que tais previsões violariam o citado artigo, dada a circunscrição nele prevista. Não se descuidou de indicar entendimentos judiciais na linha extensiva, fazendo-se alusão ao entendimento do próprio STJ diante de discussão semelhante, a envolver o art. 87, III da Lei 8.666/93.

Transcreve-se aqui o dispositivo, já que dele se falará ao longo deste texto. Diz a Lei:

“Art. 83. Pela inexecução total ou parcial do contrato a empresa pública ou a sociedade de economia mista poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:

III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a entidade sancionadora, por prazo não superior a 2 (dois) anos.”

Coube à comissão 2 conhecer a proposta em primeira mão, dada a temática nela inserida. A ideia de levar à discussão a sugestão, mesmo que seu conteúdo simplesmente retratasse o que dispõe expressamente o art. 83, III da Lei 13.303/16, pareceu-nos oportuna, senão crucial.[2]

Ao aprová-la na etapa 1, entendíamos chegado o momento de jogar luz sobre o tema dos efeitos das sanções aplicadas administrativamente no cenário das contratações públicas, mesmo que, preservada a proposta original, a discussão se cingisse à Lei das Estatais.

Avançando para os debates, a contar com a totalidade dos membros da comissão 2, o enunciado foi acolhido. Foi feito apenas um ajuste de redação para tornar ainda mais claro que o enunciado tratava apenas da penalidade prevista na lei das estatais[3]. Assim, a proposta ficou com a seguinte redação: “No âmbito da Lei 13.303/2016, os efeitos da sanção de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a entidade sancionadora se dão exclusivamente com a entidade sancionadora, não podendo previsão editalícia estender os efeitos da sanção para toda a Administração Pública”.

Todavia, no dia seguinte, após a discussão na plenária e contabilizados os votos de todos os participantes, ele não vingou.

Curioso perceber que, olhada a literalidade do dispositivo, sequer faria sentido um enunciado para melhor traduzir ou guiar a interpretação do art. 83, III da Lei 13.303/16, tamanha a clareza do dispositivo.[4]

Todo modo, os debates na plenária da Jornada reforçaram a existência de opiniões dissonantes, nos moldes do que ocorre com o art. 87, III da Lei Geral de Licitações.

Sabe-se que, a respeito do artigo 87, III, da Lei 8.666/93, algumas são as interpretações . Há quem defenda que os efeitos territoriais da punição ali descrita ultrapassam os muros da entidade/órgão que a aplicou e alcançam toda esfera de governo em que se “localiza” a unidade sancionadora.

Para o TCU, diversamente  (e curiosamente, dado que postura outra poderia se esperar diante de sua função controladora), a expansão não ocorreria, compreendendo-se que a sanção está, pela dicção do art. 6º, XII, constrita aos contornos de quem a aplicou. O mesmo raciocínio abraçado pelo TCU é adotado também pela AGU[5] e pela normatização do Poder Executivo Federal[6] e pela quase totalidade da doutrina sobre o tema[7][8].

E, finalmente, a visão do STJ, para quem a punição reverbera por toda a Administração Pública, inabilitando a participação do condenado de norte a sul, leste a oeste. Trata-se, na minha visão, de entendimento não sintonizado com a Lei, seja porque não se pode desconsiderar a legal distinção entre Administração e Administração Pública[9], o que por si só inviabilizaria o entendimento sufragado pelo Tribunal, seja porque, ao assim fazer, aproximam-se sanções dos incisos III (suspensão e impedimento) e IV (inidoneidade) que o legislador quis distinguir, exatamente traçando repercussões distintas para cada uma delas.

 Na plenária, veio à tona a Lei 8.666/93, embora dela não se cuidasse. O enunciado endereçava outro dispositivo, como dito. Esse o primeiro equívoco, com todo o respeito.

Utilizar a régua da Lei geral é inservível. A Lei 13.303/16 foi criada exatamente diante do imperativo constitucional a exigir tratamento apartado para as empresas estatais, quanto às licitações e contratos. E não há no art. 173, § 1º , III da Constituição da República[10] qualquer virgula a autorizar um abate na liberdade do legislador para disciplinar de forma diversa a matéria das sanções no âmbito das estatais.

Portanto, ainda que a Lei 8.666/93 realmente prescrevesse a amplitude de efeitos que o STJ aponta, nenhuma consequência daí se extrairia porque a regra em análise é outra, prevista em outra lei. E o legislador responsável pela Lei das Estatais redigiu de forma cristalina o dispositivo, encerrando na entidade sancionadora as repercussões da punição. Se há desacerto, o que implica avaliação subjetiva alimentada pelo ideário punitivista, que se altere o comando legal.  Cabe aos que entendem ser infeliz a redação firmar fileiras a favor da mudança. Afinal, a regra não é imutável.

O que não parece sustentável é distorcer ou ignorar o dispositivo enxertando conteúdo que não é seu. À doutrina não é dado fazê-lo e ao Judiciário igualmente se veda.

A pluralidade de interpretações diante do que estabelece o art. 87, III da Lei 8.666/93[11], que não delimita, segundo alguns, textualmente os efeitos da sanção de impedimento e suspensão, embora, ao empregar a palavra administração, acione-se o conceito constante do art. 6º, XII da mesma Lei Geral de licitações e contratos[12], não importa diante de outra regra constante da Lei das Estatais.

Compreende-se que exista uma preocupação com comportamentos inadequados adotados pelas empresas . Evidentemente que não se trata de aplaudir descumprimentos contratuais ou o descompasso com a lei. Mas, novamente, inconveniências legais são passíveis de correção, observadas as prescrições jurídicas. É fundamental ressaltar que trata-se aqui de sanções administrativas, que restringem direitos, daí a necessidade de estarem apoiadas na lei[13].

Entendemos não se sustentar, para fins de expandir as consequências da reprimenda, ler a norma (ainda que contra ela própria) entendendo-a como ferramenta na luta contra a corrupção.

Infrações contratuais não são corrupção, salvo também se se decidir novamente adicionar, marginalizando o Poder Legislativo e o processo democrático de produção legislativa, palavras e hipóteses ao que prescrevem o caput e os incisos do art. 5º da Lei 12.846/13.

E ainda que se estivesse diante de ato catalogado legalmente como corrupção, a pessoa jurídica por isso responderia em ambiente outro e observadas regras próprias. Afinal, a mencionada Lei anticorrupção prescreve sanções administrativas e judiciais passiveis de aplicação quando configurado ato de corrupção. A isso se somam as disposições da Lei de Improbidade.

Tudo isso a desconstruir a precária sustentação segundo a qual há de se ler o art. 83, III da Lei das Estatais como se fosse um instrumento de combate à corrupção e isso respaldaria amplificar a repercussão sancionatória.

Ainda que a vocação da norma fosse outra, que não endereçar descumprimentos contratuais ou desrespeito à lei, a luta contra a corrupção não justificaria a fragilização da segurança jurídica. O combate a este mal não se faz provocando novo desprestígio à ordem jurídica, em especial quando verbalizado por quem tem o dever de aplicá-la.

Sugestão de enunciado refutada. Placar respeitado, como deve ser num ambiente democrático. Nem por isso a sensação é menos ruim.


[1] Foram apresentadas 743 sugestões das quais 40 foram, ao final, aprovadas.

[2]  A comissão 2 foi Presidida pelo Ministro Og Fernandes e composta pelo Professor Rafael Wallbach Schwind e por mim.

[3] A respeito da evolução das normas de licitação das estatais, veja-se: AVELAR, Mariana Magalhães. Licitações das empresas estatais: delineamento do regime jurídico aplicável aos procedimentos de contratação do Estado empresário. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 15, n. 177, p. 49-64, set. 2016.

[4] Sobre a referida sanção na Lei das Estatais, sugerimos ler GUIMARAES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das Estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei n 13.303/2016. Belo Horizonte: Forum, 2017 e DAL POZZO, Augusto; MARTINS, Ricardo Marcondes(coord). Estatuto jurídico das empresas estatais. São Paulo: Contracorrente,2018. Nesta segunda obra, destacamos o artigo de autoria de Francisco Zardo.

[5] AGU. Parecer nº 02/2013/GT Portaria nº 11, de 10 de agosto de 2012, aprovado pelo Consultor-Geral da União.

[6] A Instrução Normativa nº 06/2018, que regulamenta o SICAF, no §1º de seu artigo 34, adota o entendimento de que a restrição gerada pela sanção suspensão ocorre apenas “no âmbito do órgão ou entidade responsável pela aplicação da sanção”.

[7] Neste sentido, entre tantos outros: NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2011.978/980. BITTENCOURT, Sidney. Licitação passo a passo. 10ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2019. P. 773/776. TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 10ª edição. Salvador: ed. Jus Podivm, 2019. P. 877/882;

[8] O próprio Marçal Justen Filho, único autor citado no RESP 151.567-RJ, um dos precedentes do STJ sobre o tema, tem destacado em recentes edições de seu livro que esta não é a sua posição e que nunca adotou orientação no sentido de inviabilidade do estabelecimento da sanção com efeitos delimitados à entidade sancionadora! Vide: JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de licitações e contratos administrativos. 16ª edição. São Paulo: Revista dos tribunais, 2014. P. 1155/1156.

[9] Art. 6 º XI – Administração Pública – a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas; XII – Administração – órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente;

[10] § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

[11] Art. 87, III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;

[12] Art. 6º    XII – Administração – órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente;

[13] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 10ª edição. Salvador: ed. Jus Podivm, 2019. P. 882

 


AUTORA:

 é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Visiting scholar na George Washington University e professora visitante na Universidade de Pisa.

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