Ronny Charles Lopes de Torres[1]
O sistema recursal tem como fundamento os princípios do contraditório e da ampla defesa, garantias constitucionais que se apresentam como parte dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito, ao assegurar que, em qualquer processo administrativo ou judicial, as partes envolvidas possam se manifestar adequadamente, influenciando o resultado da decisão, seja por meio de provas, alegações ou recursos. A ampla defesa, por sua vez, vai além do direito de apresentar razões, englobando também o direito ao conhecimento integral dos atos e fundamentos que motivaram a decisão administrativa. A conjugação desses princípios cria um ambiente no qual se promove a isonomia e a transparência, evitando que decisões se tornem arbitrárias e garantido que o procedimento siga os ditames legais e constitucionais.
O recurso administrativo é um instrumento fundamental de controle e revisão dos atos administrativos. Ele assegura que erros ou injustiças no procedimento sejam corrigidos, além de proporcionar transparência e garantir a isonomia entre os participantes.
Pode-se dizer também que o recurso administrativo é uma forma de insurreição contra a decisão proferida por autoridade, órgão ou entidade da Administração em processo administrativo devidamente instaurado, mediante manifestação do inconformismo nesse mesmo processo. Em outras palavras, o recurso administrativo é um legítimo instrumento de resistência contra decisão proferida por autoridade administrativa.
Nas licitações, o direito de resistir a uma decisão administrativa através de recurso adquire uma relevância especial, pois além da pretensão do licitante de defesa de seus interesses, sua insurreição recursal pode ter como efeito colateral constituir-se em instrumento de controle contra ilegalidades, algo benéfico para a sociedade. Ao garantir que cada licitante possa questionar a legalidade e a conformidade dos atos administrativos, o sistema de recursos protege não apenas os interesses individuais dos participantes, mas também o interesse público, uma vez que busca assegurar que a Administração contrate o fornecedor mais adequado, dentro dos parâmetros legais.
Assim, é imprescindível que, respeitados os pressupostos definidos pela legislação e o rito procedimental adotado, seja resguardado o direito do licitante de apresentar recurso a uma decisão administrativa.
Segundo o rito ordinário previsto na Lei n. 14.133/2021, os licitantes apresentam suas propostas e somente o primeiro colocado precisa, em um primeiro momento, apresentar os documentos de habilitação. Caso seja habilitado, inicia-se a fase recursal, onde os demais licitantes podem impugnar essa decisão.
Este rito, inspirado no procedimento desde outrora adotado no pregão pela Lei n. 10.520/2022, visa reduzir os custos transacionais do processo, evitando a análise de habilitações de todos os concorrentes antes de se saber quem tinha a proposta mais vantajosa (como ocorria anteriormente na Lei n. 8.666/93).
Conforme descrito no inciso I do artigo 165 da Lei n. 14.133/202, cabe recurso, no prazo de 3 (três) dias úteis, contado da data de intimação ou de lavratura da ata, em face de determinadas decisões administrativas como: a) ato que defira ou indefira pedido de pré-qualificação de interessado ou de inscrição em registro cadastral, sua alteração ou cancelamento; b) julgamento das propostas; c) ato de habilitação ou inabilitação de licitante; d) anulação ou revogação da licitação; e) extinção do contrato, quando determinada por ato unilateral e escrito da Administração.
Especificamente em relação às decisões de julgamento das propostas e de ato de habilitação ou inabilitação de licitante, a NLLCA define ainda que deve haver manifestação imediata da intenção de recorrer, sob pena de preclusão; o prazo para apresentação das razões recursais, no rito ordinário, será iniciado na data de intimação ou de lavratura da ata de habilitação ou inabilitação e, por fim, que a apreciação dar-se-á em fase única.
Pois bem, necessário firmar que é o ato decisório de habilitação que dá início ao prazo para manifestação recursal e ulterior juntada das razões (após a pertinente intimação ou lavratura). Caso ele ocorra novamente, deve-se abrir nova oportunidade recursal.
Nada obstante, talvez por falha na compreensão do texto da Lei n. 14.133/2021, algumas plataformas têm definido uma ritualística incompatível com os fundamentos que justificam a fase recursal, como instrumento de controle à arbitrariedade.
Imagine-se a seguinte situação: Licitante A, classificado em primeiro lugar nas propostas, é inicialmente habilitado. Licitante B, segundo colocado, manifesta intenção de recorrer e, após apresentar suas razões, seu recurso é provido, resultando na inabilitação do Licitante A. Seguindo o fluxo, o agente de contratação/pregoeiro passa a analisar a proposta e habilitação do Licitante B que, em seguida, é habilitado, sem que o Licitante C tenha a oportunidade de se manifestar. Essa prática impede que o Licitante C possa contestar a habilitação de B, violando seu direito de ampla defesa e contraditório.
Em nossa opinião, uma nova decisão de habilitação exige que seja reaberto o prazo para manifestação recursal.
Frise-se que, diante do rito ordinário, é exigida a apresentação dos documentos de habilitação apenas pelo licitante vencedor, de maneira que os documentos de habilitação do segundo colocado sequer poderiam ser impugnados via recurso, por não terem sido apresentados ainda.
A partir do momento que eles forem apresentados e tomada a decisão de habilitação, deve ser aberta nova oportunidade recursal. Esta parece ser a posição também adotada por Joel Niehbur, para quem, diante do provimento de recurso que gere a inabilitação de licitante, deve ser dado prosseguimento à licitação, com análise da proposta e habilitação do próximo classificado, seguida de nova oportunidade para a interposição de recurso em relação ao juízo do agente ou da comissão sobre a proposta e os documentos de habilitação apresentados por ele[2].
Esse entendimento também foi corretamente defendido pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, em Acórdão relatado pelo Exmo. Conselheiro Substituto Alexandre Sarkis[3]. No referido julgamento, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo analisou uma representação que apontou irregularidades em um pregão eletrônico, pelo cerceamento do direito de uma empresa de interpor recurso após a sua inabilitação e posterior habilitação da empresa concorrente, com ausência da abertura de nova fase recursal antes da adjudicação e homologação do certame.
O Relator, Conselheiro Substituto Alexandre Sarquis, observou que uma nova oportunidade de recurso deveria ter sido concedida, registrando que ao habilitar outro licitante como vencedor, firmou-se uma nova configuração ao certame que demandaria a repetição de etapas como a preferência de ME/EPP e nova negociação, bem como a reabertura de prazo para manifestação recursal. Com muita razão, o Relator entendeu que a falta de nova fase recursal violou os direitos dos demais licitantes.
Quando um licitante é habilitado, os demais licitantes devem ter a oportunidade de analisar a habilitação desse novo potencial vencedor e impugnar a decisão por recurso, caso considerem que ela contraria as normas licitatórias. O não cumprimento dessa fase adicional de recurso configura uma violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Em suma, no rito procedimental comum, a ausência de reabertura do prazo recursal para contestar a habilitação de um novo vencedor implica na violação direta dos direitos dos licitantes, prejudicando o princípio da obrigatoriedade em sua perspectiva subjetiva, o que pode justificar a invalidação do procedimento.
[1] Advogado, Consultor e Parecerista. Doutor em Direito do Estado pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Advogado da União licenciado. Foi Membro fundador da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (15ª ed.); Direito Administrativo (coautor. 14ª ed.); Licitações e Contratos nas Empresas Estatais (coautor. 3ª ed.) e Improbidade Administrativa (coautor. 4ª ed.), todos pela editora JusPodivm, além de Análise Econômica das licitaç~eos e contratos (coautor. 2ª edição, Ed. Fórum).
[2] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. 1247 p. ISBN 978-65-5518-330-6
[3] TCE/SP. TC-00019433.989.24-1
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