Resumo
O dinâmico ambiente de negócios entre empresas depende das operações societárias com alto grau de especialização e os atestados de capacidade técnica são ativos que “valem ouro” para o acesso rápido ao mercado de contratos governamentais. A prova de experiência prévia, também conhecida como “past performance”, tem potencial de gerar valor para pagar dívidas milionárias de uma empresa em quase falência.
Mas tem ocorrido uma prática ilícita de se utilizar, abusivamente, a incorporação societária como meio de contornar sanções administrativas, ou seja, uma empresa sancionada é incorporada por outra empresa, com o intuito de se burlar restrições legais e permitir participação “dissimulada” daquela antiga empresa em licitações, com os atestados herdados.
Por meio de uma análise da legislação brasileira, incluindo a Constituição Federal, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a Lei Anticorrupção, o Código Civil, a Lei das Sociedades Anônimas e a Lei de Defesa da Concorrência, serão explorados dispositivos normativos relativos à ilicitude dessa conduta e suas implicações jurídicas.
Introdução
Os processos licitatórios no Brasil são regidos por um conjunto de princípios e normas com o objetivo de garantir a transparência, a isonomia e a eficiência na contratação de bens e serviços pelos entes públicos. Nesse contexto, a comprovação de capacidade técnica é uma exigência fundamental para as empresas concorrentes.
Contudo, diante do foco da jurisprudência nos temas ligados a sócios comuns e de parentesco, algumas empresas têm buscado contornar penalidades por meio da prática ilegal denominada “lavagem de atestado” de capacidade técnica, utilizando operações societárias, inclusive com sócios desconhecidos entre si, com fins ilícitos.
Premissas sobre operações societárias e seus reflexos em licitações
Buscando detalhes para o contexto tratado, deve-se lembrar que a Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas) estabelece o seguinte:
“Artigo 219 — Extingue-se a companhia:
(…)
II – pela incorporação ou fusão, e pela cisão com versão de todo o patrimônio em outras sociedades.
(…)
Artigo 227 — A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.
(…)
Artigo 228 — A fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações.
(…)
Artigo 229 — A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.
§1º. Sem prejuízo do disposto no artigo 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados.
(…)
Artigo 233 — Na cisão com extinção da companhia cindida, as sociedades que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da companhia extinta. A companhia cindida que subsistir e as que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da primeira anteriores à cisão”.
De outro lado, o Código Civil estabelece:
“Artigo 1.116 — Na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos tipos.
(…)
Artigo 1.118 — Aprovados os atos da incorporação, a incorporadora declarará extinta a incorporada, e promoverá a respectiva averbação no registro próprio.
Artigo 1.119 — A fusão determina a extinção das sociedades que se unem, para formar sociedade nova, que a elas sucederá nos direitos e obrigações”.
Compreendidas essas ideias elementares, cabe atentar que as normas de Direito Privado são consideradas nos contratos administrativos, por força do artigo 89 da Lei nº 14.133/2021, que assim dispõe:
“Art. 89. Os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”.
A “lavagem” de atestado de capacidade técnica
A Lei nº 14.133/2021, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, incorporando algumas ideias de normas dos Estados Unidos e outros países, passou a valorizar o bom histórico das licitantes, isso sendo evidenciado para análise de proposta (artigo 37, inciso III), desempate (artigo 60, inciso II) e habilitação (artigo 67, inciso II).
Mas a prática que tem como finalidade transferir um atestado de capacidade técnica válido da empresa sancionada para uma outra empresa, permitindo, assim, a continuidade da operação dissimulada e com outro formato de participação em licitações, não deve ser aceita.
Note-se que não se questiona a operação societária que seja lícita, mas apenas e tão somente aquela que é especificamente planejada para contornar uma sanção aplicada e haja elementos de prova evidente disso.
Ilicitude da Prática
A prática de “lavagem” de atestado de capacidade técnica é ilícita sob diferentes perspectivas legais.
A Constituição Federal, em seu artigo 37, caput e inciso XXI, preza pela isonomia e tratamento com igualdade entre licitantes, o que não admite competição com empresa “zumbi”, sancionada, mas que, por outro modo, já consegue ter vida dissimulada em licitações seguintes. Ademais, a situação não se compatibiliza com a livre concorrência, do artigo 179, inciso IV, da Carta Magna.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021), em seu artigo 155, incisos IX, X e XI, respectivamente, tipifica como infrações as condutas de fraudar a licitação, de comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza e de praticar atos ilícitos com vistas a frustrar os objetivos da licitação, o que em toda evidência se aplica à conduta de empresa que, apesar de ter sido sancionada, pretende contornar a penalidade por meio de incorporação societária, o que é ilegal e contra a integridade e a lisura da licitação e prejudica a concorrência justa entre os licitantes.
Já o Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002), em seu artigo 422, estabelece a boa-fé objetiva para os contratos, o que precisa ser considerado contra a dissimulação de situações de sanções pretéritas e vigentes como meio de obter, ilicitamente, os contratos.
Além disso, a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), em seu artigo 2º, impõe a responsabilização objetiva para as empresas que praticam atos lesivos contra a administração pública, havendo no artigo 5º, inciso IV, alíneas “a” e “e”, respectivamente, menção a infrações tipificadas nas fraudes em licitações e criação, de modo fraudulento ou irregular, de pessoa jurídica para participar de licitação ou celebrar contrato.
Por fim, no âmbito da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011), que tem o objetivo de assegurar a livre concorrência e coibir práticas anticompetitivas, há a menção em seu artigo 36, inciso I, à infração concorrencial de limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, o que inclui empresa que sofre punição mas logo em seguida, por uma operação societária, transfere seu atestado para uma forma de continuar participando, dissimuladamente, de licitações, o que prejudica a igualdade de oportunidades e a concorrência leal, violando os princípios estabelecidos naquela lei.
Conclusão
Embora as operações societárias sejam plenamente respaldadas pela legislação, inclusive com efeitos em licitações e possibilidade de alteração de titularidade de empresas em contratos administrativos, a prática ilícita de “lavagem” de atestado de capacidade técnica por meio de operações societárias tem como objetivo contornar as restrições legais e permitir que empresas impedidas ou declaradas inidôneas participem de licitações de forma indevida. E a análise de cada caso é necessária para distinguir operações lícitas das ilícitas.
É fundamental que os órgãos de controle e fiscalização atuem de forma efetiva na identificação e punição das empresas envolvidas nesse tipo de conduta ilícita. De outro lado, é imprescindível que as empresas adotem uma postura ética e legalmente responsável, respeitando os princípios da isonomia, da transparência, da moralidade e da justa concorrência nos processos licitatórios.
*Texto disponível em https://www.sollicita.com.br/Noticia/?p_idNoticia=20406&n=undefined
**Jonas Lima é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público e Compliance Regulatório e sócio de Jonas Lima Sociedade de Advocacia.
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