Covid-19 é risco sistêmico à economia e ao Judiciário
Na crise, é preciso preservar os contratos, com concessões mútuas
Por Rodrigo Borges e Marcos Nóbrega
Enquanto especialistas e pesquisadores da saúde e políticas públicas discutem as medidas para contenção dos avanços da Covid-19, os impactos econômicos da pandemia já causam muitas dúvidas no meio jurídico, sobretudo em decorrência da impossibilidade de manutenção de condições contratuais negociadas antes do surgimento da pandemia.
As medidas de isolamento social resultaram na redução drástica da atividade econômica, impossibilitando a manutenção de compromissos passados, nos mais variados setores, desde os serviços até a indústria automobilística e infraestrutura. A covid-19 é um risco sistêmico que provoca efeitos drásticos na oferta e demanda, causando disrupções em vários mercados ao mesmo tempo, como supply chain, turismo, passagens aéreas e serviços. Dessa forma, a crise “explodiu” o equilíbrio dos mercados e, por isso, judicializar não irá resolver os problemas – provavelmente os intensificarão.
Nas relações em que há desequilíbrio entre as partes, como nas relações de consumo, agências têm relevância
A questão é: por que não devo ir ao Judiciário? O custo de transação já é grande (demora para resolver), soma-se a isso um custo de transação indireto (ou subjetivo) dado pelo “cognitive bias” (viés cognitivo) que é aumentado pela complexidade da situação.
Diante desse dilema, governos ao redor do mundo tem buscado medidas para evitar uma enxurrada de processos judiciais envolvendo o reequilíbrio das relações comerciais após a pandemia, visto que tais medidas, além de sobrecarregarem o Poder Judiciário, poderão resultar em um colapso ainda maior da economia. Enquanto não se tem a adequação de legislações, especialmente aquelas de defesa do direito dos consumidores, é fundamental às partes o bom senso nas relações, caso contrário a aplicação fria da lei poderá resultar em prejuízos ainda maiores para a sociedade.
Nessa linha, alguns países que enfrentaram a pandemia antes do Brasil, como é o caso de Cingapura e do Reino Unido, adotaram medidas que vão no sentido de desonerar as empresas, a fim de lhes conferir uma sobrevida neste momento de crise econômica global.
Em abril foi aprovada em Cingapura uma das primeiras legislações nesse sentido, pela qual foi conferida às empresas e pessoas físicas uma proteção de 06 (seis) meses contra ações judiciais que vierem a ser ajuizadas no curso da situação de pandemia. A medida abrange quaisquer contratos celebrados pré-crise da covid-19, incluindo, por exemplo, reservas de hotel, locações e casamentos, cuja discussão deverá se dar após transcorrido o período de proteção.
No Reino Unido, o governo aprovou uma ajuda emergencial no valor de 60 mil libras esterlinas aos familiares dos profissionais de saúde que vierem a falecer por terem sido contaminados pelo coronavirus. Tal medida visa aliviar as discussões jurídicas surgidas quanto à responsabilidade dos hospitais e demais entidades de saúde privadas em relação à saúde de seus profissionais.
Já nos Estados Unidos, onde a cultura da judicialização e, em especial das ações coletivas, é muito forte, juristas têm se questionado até que ponto valeria recorrer ao Poder Judiciário, sob a alegação de “força maior”, para buscar a rescisão de contratos e restituição de recurso. O governo norte-americano tem sido pressionado por juristas para a criação de um pacote de salvaguardas, tal como ocorreu quando do ataque às torres gêmeas ou da crise de 2008, a fim de evitar uma explosão de casos no Judiciário, cuja conta dificilmente seria paga sem que milhares de empregos fossem perdidos.
No Brasil a situação não é muito diferente: imaginem o impacto econômico de decisões judiciais exigindo a devolução imediata pelas companhias aéreas de valores pagos por viagens não realizadas neste momento de redução de 90% da demanda. Seria catastrófico.
Na mesma linha, é impensável o surgimento de decisões judiciais para exigir o cumprimento de obrigações de volumetria mínima, neste momento de baixa ou até inexistência de demanda. Recentemente a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores divulgou que a produção de automóvel despencou 99% em abril. Assim, inegável o prejudicial impacto de se exigir que referida indústria mantivesse a volumetria mínima nos contratos de fornecimento de energia, quando praticamente inexiste produção e, consequentemente, receita.
Diante desse cenário, encontram-se em discussão perante o Congresso diversos projetos de lei que visam flexibilizar algumas regras para minimizar os impactos da pandemia, tal como a suspensão de prazo prescricional (PL 1.179/20), suspensão de novos inscritos em cadastro positivo (PL 675/2020) e proibição de ação de despejo (PL 936/20). Tais projetos encontram-se em discussão no legislativo e, a depender do prazo de implementação, essas medidas poderão deixar de surtir o efeito desejado.
Por essa razão, um ponto fundamental a ser analisado neste momento é o equilíbrio das relações, sendo fundamental às partes renegociarem os contratos, seja por renegociação direta ou mediação, para que encontrem o novo ponto de equilíbrio na relação, o qual certamente não será alcançado pela análise fria do contrato e/ou da lei. Afinal, prevalecendo a boa-fé e bom senso, ninguém melhor do que as partes, inseridas em um determinado mercado, para definir as bases para definir a viabilidade da relação.
Por outro lado, em relações em que há desequilíbrio entre as partes, como nas relações de consumo, autoridades setoriais ganham especial relevância nesse cenário de instabilidade. Nesse sentido, a Agência Nacional de Saúde vem acompanhando de perto e propondo medidas e negociações a operadoras de plano de saúde para minimizar conflitos. A Secretaria Nacional do Consumidor tem estimulado acordos entre consumidores e fornecedores, a fim de evitar a judicialização de questões que, como dito anteriormente, aplicada a letra fria da lei, traria prejuízos ainda maiores à sociedade. Até o momento foram expedidas orientações relativas a passagens aéreas, instituições de ensino, academias, prática de preços abusivos e eventos.
Momentos de instabilidade econômica e social, tal como o experimentado com a pandemia da covid-19, exigem a preservação da “teoria econômica do contrato” mais do que a “teoria da imprevisão”. Dessa forma, a principal medida a ser adotada neste cenário é da preservação dos contratos, com concessões mútuas, para se evitar a inviabilização de negócios e a promover, ainda que de maneira gradual, a recuperação econômica.
Rodrigo Caldas de Carvalho Borges é advogado e sócio no CB Associados.
Marcos Nóbrega é visiting scholar no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e professor na Faculdade de Direito do Recife (UFPE).
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