Adesão e limites à discricionariedade de autorização pelo órgão gerenciador

13 de janeiro de 2025

Ronny Charles L. Torres[1]

O Sistema de Registro de Preços (SRP) é amplamente reconhecido como um procedimento auxiliar que simplifica a atuação da Administração Pública em relação a contratações futuras. Por meio dele, é possível registrar formalmente preços, condições de fornecimento e informações sobre fornecedores, criando um mecanismo que atende tanto às necessidades do órgão gerenciador quanto de órgãos participantes e, em determinados casos, de órgãos não participantes.

Pode-se apontar já nas “concurrências permanentes” do Decreto nº 4.536/1922 (Código de Contabilidade da União) um embrião do sistema de registro de preços. Posteriormente, o Decreto-lei nº 2.416/1940, ao estabelecer para estados e municípios procedimentos para seleção de seus fornecedores, fazia expressa referência a um “registro de preços” como meio a ser utilizado para a realização da concorrência administrativa (modalidade alternativa à concorrência pública), embora não definisse claramente sua funcionalidade.

Passadas algumas décadas e variadas legislações, já sob a égide da Lei n. 8.666/93, notadamente após as respectivas regulamentações, o Sistema de Registro de Preços passou a deter características bem definidas que foram em grande parte mantidas na Lei nº 14.133/2021, consagrando-o como um procedimento auxiliar, com similitudes a modelagem de acordo quadro[2], que atua conjugado ao procedimento licitatório, para gerar um instrumento auxiliar (ata de registro de preços) que lastreará futuras contratações.

Traçando um paralelo com a modelagem “acordo-quadro”, pode-se dizer que o SRP, ao menos como tradicionalmente utilizado no Brasil atualmente, assemelha-se a um acordo-quadro “fechado”, por não admitir a entrada de novos fornecedores (após a definição da ata de registro de preços) e “completo”, já que este instrumento auxiliar (a ata de registro de preços) definirá (junto com o respectivo edital e contrato, se for o caso) todos os termos e condições para fornecimento de bens ou prestações de serviços.

A ata de registro de preços gera obrigações, sobretudo de fornecimento, que podem fundamentar futuras contratações. Seguindo essa lógica, a licitação no Sistema de Registro de Preços não tem como fim imediato uma contratação, mas sim a formação da ata de registro de preços, um documento vinculativo, de natureza obrigacional, que estabelece compromisso relacionado à futura contratação[3].

Utilizando esse procedimento, pode-se abrir um certame licitatório em que o fornecedor selecionado terá seus preços registrados, para que posteriores necessidades de contratação sejam dirigidas diretamente a ele, de acordo com os preços e condições aferidas, atendendo às necessidades do órgão gerenciador, dos órgãos participantes, que com o gerenciador integram a ata de registro de preços, e também dos órgãos não participantes (aderentes), os quais, embora não participem da licitação, podem, respeitando certos limites, firmar contratações baseadas na ata de registro de preços, comparável a um “contrato preliminar, que envolve a disciplina de futuras contratações entre as partes”[4].

Esta é uma das principais características do SRP. Esse procedimento auxiliar permite que uma única licitação reúna pretensões contratuais de vários órgãos públicos, o que não apenas amplia o objeto da licitação, mas também reduz os custos burocráticos associados à realização de múltiplos certames, gerando economia de escala e ampliando potencialmente o poder de barganha da Administração. Além disso, amplia o potencial de atendimento ao interesse público, já que possibilita até que um órgão que não tenha participado originalmente do procedimento (órgão não participante) possa aderir à ata de registro de preços, prática conhecida como “carona”, para firmar a contratação que necessita.

Pois bem, como é cediço, compete ao órgão gerenciador coordenar a utilização da ata de registro de preços, inclusive deliberando quanto à adesão posterior de órgãos e entidades que não tenham participado da licitação (órgãos não participantes)[5].

Trata-se de uma importante competência, que impõe ao órgão gerenciador o ônus de coordenar a utilização da ata e suas adesões, pois elas se submetem a determinados limites, como: quantitativo individual, quantitativo global, procedimental, lógico, temporal, formal e subjetivo[6]. Esses limites precisam ser observados para que não se desvirtue o excepcional regime de adesão, o qual possui natureza jurídica de contratação direta e, como exceção à obrigatoriedade de licitar, necessita respeitar as balizas legais para sua realização.

Mas é importante ressaltar: essa competência estabelecida pelo legislador tem como fundamento o acompanhamento dos limites para a adesão e não pode ser exercida de maneira arbitrária ou por motivos outros, que se desviem da conduta preconizada pela Lei. Nada obstante, em nossa experiência profissional, não foram poucos os relatos que já recebemos de negativas feitas por órgãos gerenciadores a pedidos de adesão por órgãos públicos não participantes, por razões não republicanas. Infelizmente, por vezes, tal negativa é alimentada em motivos pequenos de “antipatia política”, perseguição e até chantagem a empresas que tinham seus preços registrados em atas e se negavam a pagar propina a agentes públicos.

Obviamente, o fornecedor não possui o direito subjetivo a alcançar a integral contratação da ata, seja em relação a participantes ou a não participantes; porém, o exercício da competência do órgão gerenciador em autorizar ou não a adesão de órgãos não participantes à ata de registro de preços deve ser pautado por critérios objetivos e pela efetiva observância ao interesse público.

A negativa a um pedido de adesão somente se justifica quando houver razões legítimas, fundamentadas em princípios como a eficiência administrativa, a economicidade ou a necessidade de preservação da sustentabilidade da ata frente ao volume contratado. Caso contrário, abre-se espaço para que essa competência seja exercida de maneira desvirtuada, comprometendo os princípios que regem as contratações públicas.

Outrossim, cabe frisar a vinculação ao edital da licitação que originou a ata de registro de preços. Quando o edital prevê expressamente a possibilidade de adesão por órgãos não participantes, essa cláusula cria uma legítima expectativa para os licitantes e interessados, reforçando o caráter vinculativo das disposições editalícias. Assim, eventual negativa por parte do órgão gerenciador que não esteja devidamente fundamentada em razões de interesse público configura desvio de finalidade, com potencial para causar prejuízos tanto ao licitante quanto ao órgão aderente.

É imprescindível que o órgão gerenciador atue em consonância com o princípio da boa-fé administrativa, que impõe à Administração o dever de agir com lealdade, transparência e objetividade, tanto em relação aos licitantes quanto aos órgãos interessados na adesão. Como ensina a brilhante Procuradora do Estado de Minas Gerais, Raquel Carvalho, a discussão sobre a boa-fé objetiva começou no Direito Civil, destacando a lealdade e a confiança nas fases pré-contratual e de execução dos contratos, alcançando o Direito Administrativo com fundamento na impossibilidade de o Estado violar a confiança gerada pela presunção de legitimidade dos atos administrativos, evitando comportamentos contraditórios que desrespeitem o princípio do venire contra factum proprium[7].

A negativa de adesão não pode ser utilizada como instrumento de pressão, retaliação ou favorecimento, sob pena de subverter a finalidade do Sistema de Registro de Preços, que é assegurar a ampliação do acesso a bens e serviços de forma eficiente e justa.

Sobre uma perspectiva econômica, convém frisar, a possibilidade de adesão funciona como um incentivo, exercendo influência direta na formação dos preços propostos pelos licitantes, já que estes projetam a ampliação de contratação que ela permite (com demandas dos órgãos não participantes) na definição do preço de sua proposta.

Assim, por exemplo, diante da regra prevista no § 5º do artigo 86 da Lei n. 14.133/2021, que admite a adesão de até o “dobro do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços”, em uma licitação para aquisição de determinado bem, na qual este quantitativo era de 1000 unidades, o licitante é induzido a projetar a ampliação da demanda (que pode totalizar até 3000 unidades, com o acréscimo da adesão), reduzindo o preço de sua proposta a um patamar inferior ao eventualmente apresentado se não fosse possível a venda a órgãos não participantes.

A perspectiva de ampliação da demanda, proporcionada pela inclusão de órgãos não participantes, é fator relevante na definição de preços mais competitivos, com impactos positivos na economicidade do certame. Ao desconsiderar essa projeção e negar de forma injustificada pedidos de adesão, o órgão gerenciador pode frustrar a lógica de precificação adotada pelo licitante, comprometendo os benefícios esperados pela Administração e subvertendo ilegitimamente a equação econômica da proposta.

Inafastável perceber que a adesão gera uma informação que afeta a precificação das propostas dos licitantes.

Por fim, deve-se observar que, a priori, a adesão à ata de registro de preços também está intrinsecamente ligada à legitimidade do atendimento de demandas públicas.

Quando um órgão não participante solicita adesão, essa demanda geralmente se baseia em um diagnóstico real de suas necessidades, previamente analisadas e compatíveis com os limites normativos estabelecidos. A negativa a essa solicitação, sem justificativa plausível e fundamentada em razões legítimas, compromete não apenas a efetividade da política pública, mas também prejudica o atendimento a demandas essenciais que podem impactar diretamente os serviços prestados à sociedade.

Esse tipo de negativa, quando não amparada em critérios objetivos, pode abrir espaço para arbitrariedades que deturpam a finalidade do Sistema de Registro de Preços. Como se sabe, a discricionariedade administrativa não confere ao gestor a liberdade de atuar segundo motivações pessoais, especialmente quando estas contrariam os princípios da eficiência, da moralidade administrativa e da continuidade do serviço público. Negativas motivadas por razões alheias ao interesse público, como preferências políticas ou retaliações, configuram abuso de poder e comprometem a credibilidade do sistema de contratações públicas.

Em suma, sob o aspecto jurídico, a vinculação ao edital que originou a ata de registro de preços reforça o dever do órgão gerenciador de atuar com objetividade. Quando o edital prevê a possibilidade de adesão por órgãos não participantes, cria-se uma legítima expectativa para os licitantes de que essa condição será observada, desde que respeitados os limites legais. Desrespeitar essa cláusula editalícia não apenas contraria a legalidade e a boa-fé administrativa, mas também prejudica a previsibilidade do processo licitatório, podendo impactar negativamente a qualidade e a competitividade das propostas apresentadas. Sob o ponto de vista econômico, a adesão à ata de registro de preços atua como um importante mecanismo de incentivo para os licitantes, que, ao considerarem a ampliação da demanda potencial, projetam custos mais atrativos e acessíveis na fase de formação de suas propostas. Essa perspectiva de escala reduz os preços finais, gerando economia para a Administração e promovendo o interesse público. Quando a adesão é negada injustificadamente, essa lógica de precificação é comprometida, afetando negativamente os benefícios econômicos do sistema e enfraquecendo a confiança dos fornecedores no processo.

Analisada sem preconceitos, a possibilidade de adesão em licitações para registro de preços não se distancia muito de modelos adotados, com elogios e certo entusiasmo, em outros países.

Portanto, o poder discricionário conferido ao órgão gerenciador deve ser exercido com parcimônia, sempre ancorado em critérios objetivos e orientado pela finalidade pública. A negativa de adesão deve ser a exceção, nunca a regra, e sua fundamentação deve resistir ao crivo da transparência, da razoabilidade e do interesse público.

Negativas à adesão desprovidas de fundamentação legítima, devem ser combatidas pelo Judiciário e devidamente avaliadas pelos órgãos de controle, preservando a integridade do Sistema de Registro de Preços e assegurando a eficiência das contratações públicas.


[1] Advogado. Consultor Jurídico. Parecerista. Doutorando em Direito do Estado. Mestre em Direito Econômico. Pós-graduado em Direito tributário. Pós-graduado em Ciências Jurídicas. Coordenador da pós-graduação em Licitações e contratos, da Faculdade Baiana de Direito. Professor do Centro de Ensino Renato Saraiva (CERS). Já atuou, pela AGU, como Consultor Jurídico Adjunto da Consultoria Jurídica da União perante o Ministério do Trabalho e Emprego e Coordenador da Câmara Nacional de Licitações e Contratos. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (15ª Edição. Ed. JusPodivm); Licitações e contratos nas empresas estatais (3ª edição. Coautor. Ed. Jus Podivm). Comentários à Lei de Improbidade administrativa (2ª edição. Coautor. Ed. Jus Podivm). Análise Econômica das licitações e contratos (2ª edição. Coautor. Ed. Fórum).

[2][2] O acordo-quadro, na perspectiva da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é um acordo firmado com um ou mais operadores econômicos visando o fornecimento de bens, serviços e obras, objetivando o estabelecimento de termos ou condições para futuras contratações, a serem firmados por autoridades adjudicantes em um determinado período, que contém a definição de preço máximo e as especificações técnicas mínimas (OECD. Manual for framework agreements. 2014. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/ethics/manual-framework-agreements.pdf)

[3] PINTO, Vera Regina Ramos. Um breve histórico sobre inovações em compras e licitações públicas no Brasil / A brief history of innovations in procurement and public bidding in Brazil. Brazilian Journal of Development, [S. l.], v. 6, n. 8, p. 63378–63397, 2020. DOI: 10.34117/bjdv6n8-680. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BRJD/article/view/15862

[4][4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1159.

[5] Nessa linha define, por exemplo, o art. 7º do Decreto nº 11.462/2023 (regulamento federal do sistema de registro de preços)

[6] Para aprofundamento sobre os limites à adesão, sugerimos a leitura de nosso livro Leis de licitações públicas comentadas. 15. Edição São Paulo: Editora Jus Podivm, 2024. Pp 594-605.

[7]. CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Volume I. Salvador: Juspodivm, 2008. p. 110.

 

OBS.:  Este pequeno artigo é baseado em trecho de nosso livro Leis de licitações públicas comentadas, publicado pela Editora Jus Podivm.

Imagem Fonte: Freepik
Posts recentes

Artigos relacionados

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Precisa de ajuda?