Anderson Sant’Ana Pedra

@andersonspedra

Advogado e Consultor (Anderson Pedra Advogados). Procurador do Estado do Espírito Santo. Pós-doutor em Direito (Universidade de Coimbra). Doutor em Direito do Estado (PUC-SP). Professor em pós-graduação de Direito Constitucional e Administrativo. Professor de Direito Constitucional e Administrativo da FDV/ES.

 

 

Ronny Charles Lopes de Torres

@ronnycharles

Advogado da União. Doutorando em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Coordenador da pós-graduação em Licitações e Contratos da Faculdade Baiana de Direito. Coordenador (junto com o Prof. Jacoby Fernandes e o Prof. Murilo Jacoby) da pós-graduação em Licitações e Contratos do CERS. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (14ª ed.); Análise Econômica das licitações e contratos (coautor) e Comentários à Lei de Improbidade Administrativa (coautor. 2ª ed.).

 

A Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLCA) surgiu com grande expectativa e a intenção de romper com alguns institutos, modelos e costumes das contratações públicas brasileiras, abrindo janelas de oportunidades para novas, modernas e disruptivas interpretações e, principalmente, regulamentações.

Embora a criação de direitos e imposição de obrigações decorra da lei (ato normativo primário), o regulamento pode explicitar como deve se dar a aplicação da Lei, definindo balizas para conceitos abertos, esmiuçando procedimentos ou estabelecendo requisitos para observância dos direitos legais. Diogo Feitas do Amaral ensina que sob “o ponto de vista prático, o poder regulamentar funda-se, por um lado, no distanciamento do legislador face aos casos concretos da vida social e, por outro, na impossibilidade de previsão absoluta ou na inconveniência de previsão completa por parte do legislador”; esta nuance tornaria necessária que a Administração atue para criar normativamente as condições de aplicação da lei aos casos da vida[1].

A NLLCA menciona explicitamente a delegação legislativa para atos normativos secundários em 51 (cinquenta e uma) passagens.[2] Soma-se a esse quantitativo outras regulamentações necessárias para a perfeita governança das contratações públicas, notadamente, a fixação de competências orgânicas; e por mais que a NLLCA se apresente deveras analítica e extensa, para sua perfeita, eficiente e segura execução, diversos regulamentos são necessários.[3]

Tem-se ainda que com o advento da NLLCA iniciou-se uma discussão sobre a sua imediata eficácia e, por consectário lógico, a sua (im)possibilidade de utilização prática, já que muitos defendiam a necessidade de implementação do Portal Nacional de Contratação Pública (PNCP), bem como a imprescindibilidade de sua regulamentação na inteireza, afirmando alguns que, para a NLLCA ser utilizada, indispensável seria que toda ela fosse regulamentada, vez que não poderia ser utilizada em partes, não sendo possível, v.g., utilizar sequer a novel legislação para as contratações diretas, já que deveria ser regulamentada, como conditio sine qua non, toda a fase preparatória com os artefatos que lhe são inerentes.

Apesar da mencionada janela de oportunidades, fato é que o tempo passou e os regulamentos com seus esperados conteúdos alvissareiros não foram editados, ao menos na totalidade e em boa parte da administração pública brasileira.

Contudo, muitos desses órgãos ou entidades que integram a administração pública possuem regulamentos (Decreto, Portaria, Resolução, Instrução Normativa etc.) que foram elaborados tendo como fundamento o marco normativo da legislação anterior (notadamente a Lei nº 8.666/93 e a Lei nº 10.520/2002), restando a seguinte indagação: os regulamentos que não foram revogados e que foram elaborados sob a égide de outro marco normativo podem ser utilizados pela administração que pretende colocar em prática a NLLCA?

Pois bem, de partida, importante trazer à balha a lição de Gasparini, o qual leciona que as “regras relativas aos princípios da aplicação da lei no tempo e no espaço valem para os regulamentos”.[4]

Como se sabe, bons e modernos regulamentos são tudo que todos esperam: agentes públicos federais, estaduais, municipais, o mercado e a sociedade, mas a sua ausência não pode impedir a utilização da NLLCA, e a  utilização de regulamentos já existentes, dentro das balizas do novo marco jurídico inaugurado pela Lei nº 14.133/2021, pode ser uma opção, já que naquilo que não contrariar o novo marco jurídico, o regulamento será recepcionado, em homenagem ao princípio da continuidade do ordenamento jurídico.

A recepção (constitucional)[5] é o instituto jurídico pelo qual uma nova norma paradigmática (Constituição) aceita/mantém/recepciona as normas anteriores, inferiores hierarquicamente, (leis) ao novo marco normativo que com ela estejam devidamente compatíveis materialmente, legitimando, assim, o princípio da continuidade do ordenamento jurídico – que homenageia a segurança (legislativa) jurídica – significando o aproveitamento dos atos normativos anteriores quando compatíveis com a nova norma paradigmática – novação legislativa, a fim de evitar um vácuo normativo.

A novação legislativa existe independentemente de norma expressa nesse sentido. Em qualquer sistema normativo há uma cláusula tácita de novação legislativa, desde que não haja previsão contrária no próprio texto normativo paradigmático.

Com o instituto da recepção evita-se o hercúleo trabalho de reiniciar a construção de qualquer sistema normativo – aqui o microssistema normativo das contratações públicas, sendo muito mais racional e eficiente fazer com que as normas inferiores e anteriores à nova norma paradigmática sejam aproveitadas desde que com essa sejam compatíveis.

Pois bem, esse mesmo marco teórico de berço constitucional se amolda perfeitamente quando se tem como texto paradigmático o de um instrumento normativo primário (Lei nº 14.133/2021) e como normas a serem recepcionadas os diversos regulamentos eventualmente existentes e que foram elaborados sob a égide das Leis nºs 8.666 e 10.520, e dos artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011.

Nos termos do art. 2º, § 1º da LINDB, eventual ato normativo novo revoga o ato normativo anterior quando expressamente o declare (revogação expressa), quando seja com ele incompatível ou quando regule ou quando regule inteiramente a matéria tratada pelo ato normativo anterior (revogação tácita) – o que pode ocorrer total (ab-rogação) ou parcialmente (derrogação). Não estando diante de nenhuma dessas situações, o regulamento anterior seria reconhecido pela novel legislação, desde que passe pelo seu “filtro”, ou seja, desde que haja compatibilidade material entre o regulamento anterior e a novel legislação.

Tendo sido ocorrido a revogação da Lei nº 8.666/1993, da Lei nº 10.520/2001 e dos artigos 1º a 47-A da Lei n.º 12.462/2011 pela Lei nº 14.133/2021, sendo que todas exigiam regulamentação, parece-nos perfeitamente possível afirmar o aproveitamento total ou parcial pela NLLCA dos regulamentos pretéritos, tendo como fundamento o instituto da recepção.[6]

Em sede de conclusão, não tendo ocorrido a extinção do regulamento editado anteriormente à Lei nº 14.133/2021, o mesmo passa a ser recepcionado pela novel legislação em homenagem ao princípio da continuidade do ordenamento jurídico, podendo suas normas regulamentares serem utilizadas desde que compatíveis com a NLLCA, evitando-se assim um vácuo normativo.

As referências a este artigo deverão ser feitas da seguinte maneira:
PEDRA, Anderson Sant’Ana; TORRES Ronny Charles Lopes de. A nova lei de licitações e a recepção dos antigos regulamentos. Disponível em: www.ronnycharles.com.br. Acesso em: dd/mm/aaaa.

[1].     AMARAL, Diego Freitas. Curso de direito administrativo. Lisboa: Almedina, 2015. p. 164.

[2] Compreendendo: 44 menções a “regulamento”; 5 menções a “regulamentação”; 1 menção a “normas e orientações” e 1 menção a “ato normativo”.

[3] “Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas” (LINDB).

[4] GASPARINI, Diógenes. Poder regulamentar. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p.  194.

[5] Insta frisar que o instituto da recepção tem berço no Direito Constitucional: TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 280-281.

[6] Nesse sentido: FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 369.

 

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