VICTOR AMORIM
Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito Constitucional (IDP). Membro do Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Advogado e Consultor Jurídico. Autor das obras “Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência” (Editora do Senado Federal) e “Pregão Eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019” (Editora Fórum). Site: www.victoramorim.com
Balizas normativas da fase recursal na Lei nº 14.133/2021
Alterando a sistemática recursal então observada na Lei nº 8.666/1993 e reproduzindo o modelo adotado na Lei nº 10.520/2002 e na Lei nº 12.462/2011, a Lei nº 14.133/2021 estabelece, nos incisos I e II do § 1º do art. 165, a unicidade quanto ao momento de efetivação da interposição do recurso (com a apresentação das razões recursais) e quanto à apreciação do pleito recursal.
Art. 165. Dos atos da Administração decorrentes da aplicação desta Lei cabem:
I – recurso, no prazo de 3 (três) dias úteis, contado da data de intimação ou de lavratura da ata, em face de:
[…]
b) julgamento das propostas;
c) ato de habilitação ou inabilitação de licitante;
[…]
§ 1º Quanto ao recurso apresentado em virtude do disposto nas alíneas “b” e “c” do inciso I do caput deste artigo, serão observadas as seguintes disposições:
I – a intenção de recorrer deverá ser manifestada imediatamente, sob pena de preclusão, e o prazo para apresentação das razões recursais previsto no inciso I do caput deste artigo será iniciado na data de intimação ou de lavratura da ata de habilitação ou inabilitação ou, na hipótese de adoção da inversão de fases prevista no § 1º do art. 17 desta Lei, da ata de julgamento;
II – a apreciação dar-se-á em fase única.
Consoante expresso tratamento da parte final do inciso I do §1º do transcrito art. 165, mesmo quando adotada a inversão das fases de habilitação e propostas na forma do § 1º do art. 17 da NLL, mantém-se a estrutura única da fase recursal (interposição e apreciação).
Tem-se, por conseguinte, a unirrecorribilidade dos atos decisórios exarados pelo agente de contratação no âmbito da fase externa da licitação, havendo apenas uma única oportunidade para a interposição de recurso, cuja matéria pode envolver qualquer etapa procedimental, aspecto ou ocorrência da fase externa da licitação.
Conforme dispõe expressamente o inciso I do § 1º do art. 165 da Lei nº 14.133/2021, dada a concentração da fase recursal, entendemos que a oportunidade para a interposição do recurso deverá ser observada, na própria sessão pública, após a emissão, pelo agente de contratação, do ato decisório final que implica o encerramento do certame, porquanto é plenamente possível – e até frequente – que o certame seja concluído sem que haja um licitante vencedor, como nos casos de licitação fracassada ou anulada, por exemplo.
Tão logo emitido o ato decisório final do certame (declarando o licitante vencedor, o fracasso do certame ou a anulação do procedimento), deverá o licitante interessado, sob pena de preclusão, manifestar-se expressamente quanto à intenção de recorrer na própria sessão pública. Caso a licitante não manifeste o interesse em recorrer na oportunidade da sessão, decairá o seu direito de recurso.
Diversamente do que consta do art. 4º, XVIII, da Lei nº 10.520/2002, não é exigido pela Lei nº 14.133/2021 que a manifestação da intenção de recorrer seja “motivada”. Com efeito, a manifestação da intenção de recurso deverá ser admitida pelo agente de contratação independentemente da externalização de motivo.
Assim, posta a intenção de recurso, o recorrente disporá do prazo de até 3 (três) dias úteis para apresentação das razões recursais contados da “data de intimação ou de lavratura da ata de habilitação ou inabilitação” ou, na hipótese de inversão de fases de que trata o § 1º do art. 17 da NLL, da data de intimação ou de lavratura da “ata de julgamento”. Após a “intimação pessoal ou de divulgação da interposição do recurso”, os demais licitantes disporão do mesmo prazo de 3 (três) dias úteis para apresentação das contrarrazões recursais (art. 165, § 4º).
A opção regulamentar do Poder Executivo Federal de cindibilidade do momento de registro da intenção de recurso
A despeito de nossa contrariedade, é preciso informar que o Poder Executivo Federal, na Instrução Normativa SEGES/ME nº 73/2022, adotou uma interpretação acerca do art. 165 da NLL bem peculiar.
Pelo art. 40 da norma, depreende-se que a sistemática dos recursos nas licitações eletrônicas foi estruturada da seguinte forma:
1) haverá a “segmentação” da oportunidade de registro da INTENÇÃO DE RECURSO: uma primeira oportunidade após a “aceitação da proposta” e uma segunda oportunidade após a “habilitação”;
2) as RAZÕES RECURSAIS serão apresentadas em momento único, com o ato “final” do procedimento pelo Pregoeiro/Agente de Contratação (“habilitação”, no rito comum; “aceitação da proposta”, no caso de rito invertido).
Ainda que a redação do inciso I do §1º do art. 165 da Lei nº 14.133/2021 conduza a uma certa confusão, não vemos razão na defesa da configuração da fase recursal com dois momentos distintos para registro da intenção (após o julgamento da proposta e após a habilitação) se, inegavelmente, há um só momento para a apresentação das razões recursais (que, de fato, irão consumar a efetivação do recurso administrativo, posto que a intenção não mais será motivada) e, também, um só momento para a apreciação do recurso.
Afinal, qual o sentido prático em segmentar o momento do registro da intenção de recurso? Ora, se a intenção não mais precisa ser motivada, qual o efeito prático para o certame já que o agente de contratação não terá conhecimento do porquê o licitante discordou de uma decisão adotada na fase de julgamento e/ou na fase de habilitação?
Inclusive, diante da estrutura de parametrização do Sistema de Compras do Governo Federal (Compras.gov.br), com as devidas vênias, reputamos que, além de em nada contribuir para maior eficiência do certame, a segmentação do momento de registro da intenção irá, em verdade, acarretar maiores custos transacionais e problemas na condução da licitação eletrônica, trazendo etéreas e desnecessárias discussões.
Em termos práticos: suponhamos que, após a fase de julgamento, o agente de contratação/pregoeiro tenha conhecimento do registro de intenção de recurso. Se ao agente de contratação/pregoeiro não é dado o conhecimento dos motivos da intenção e se as razões serão apresentadas posteriormente à conclusão do certame, o que, de fato, impactará para a Administração saber que há intenção de recurso naquela fase da licitação?
Podemos, também, antever um possível impasse: o licitante “B”, 2º colocado na disputa, registra intenção de recurso relativa à fase de julgamento da proposta. Na fase seguinte, não foi registrada intenção de recurso quanto à habilitação do vencedor (licitante “A”). Posteriormente, o licitante “B”, ao apresentar suas razões recursais (em fase única), evoca argumentos contrários à habilitação do licitante “A”, nada alegando quanto à aceitação da proposta. E então? Poderia tal recurso ser conhecido, já que não houve o registro de intenção quanto à matéria efetivamente agitada nas razões? Totalmente evitável essa celeuma…
Enfim, esse simples exercício de projeção de situações possíveis demonstra que a opção do Poder Executivo Federal mais trará embaraços do que eficiência aos certames. Sugere-se, portanto, que, por se envolver questões de ordem pública, a Administração aprecie todos os argumentos agitados nas razões recursais, independentemente de sua vinculação estrita ao momento de registro da intenção.
Há quem defenda que a segmentação da intenção seja relevante no caso de inversão de fases de que trata o §1º do art. 17 da NLL. Ora, pressupondo que a Lei nº 14.133/2021 expressamente estabelece que a apresentação das razões e a apreciação do recurso ocorrerá em “fase única”, para os certames com fases invertidas, também há de se reconhecer que a cisão do momento da intenção não acarreta impacto relevante para o fluxo do procedimento. Vale alertar: defender a segmentação da fase recursal nas licitações invertidas, compreendendo a existência de momentos distintos para o registro e, também, apresentação das razões e apreciação dos recursos, por mais que calcado em uma lógica pragmática, afronta claramente o disposto no art. 165 da NLL, notadamente a parte final do inciso I do §1º e o inciso II do mesmo parágrafo. Ou seja, pode-se até discordar da opção do legislador ao não prever a segmentação da apreciação dos recursos quando houver a inversão prevista no §1º do art. 17 da NLL, mas não se pode admitir uma interpretação corretiva contra legem.
Juízo de admissibilidade em relação à manifestação da intenção de recurso?
Ainda que a NLL tenha afastado a necessidade de “motivação” da intenção recursal, afigura-se aplicável para a fase recursal única, de certa forma, o consolidado entendimento do TCU acerca da prerrogativa do Pregoeiro em aferir os pressupostos legais da “intenção de recorrer”, devendo se limitar a verificar se a intenção manifestada pelo licitante reúne os requisitos de admissibilidade.[1]
É evidente que, em face da ausência da exposição objetiva do conteúdo da irresignação do licitante quando do registro da intenção, não se mostra possível aferir requisitos de admissibilidade como o “interesse recursal” e a “motivação”.
Por sua vez, reputamos ser viável por parte do agente de contratação a avaliação dos pressupostos de admissibilidade recursal atrelados à condição do licitante que manifesta a intenção, como a “sucumbência” e a “legitimidade”, e, ainda, o pressuposto objetivo de adequação ao prazo para registro da intenção (“tempestividade”), porquanto o inciso I do § 1º do art. 165 da NLL exige que tal manifestação seja imediata.
Sucumbência | A sucumbência implica derrota do interessado, somente aquele que não logrou êxito em sua pretensão de sagrar-se vitorioso no certame é que atende a esse pressuposto. |
Tempestividade | A manifestação da intenção de recurso deverá ocorrer no prazo previsto no ato convocatório. |
Legitimidade | Só há legitimidade quando a parte que interpuser o recurso for a parte sucumbente. Logo, não seria admissível que o vencedor recorra da decisão que o declarou vencedor. Da mesma forma, não seria cabível recorrer da decisão de desclassificação/inabilitação de terceiros. |
Não apresentação das razões recursais no prazo legal
Dispensada a necessidade de motivação da intenção de recurso, entendemos que, pela sistemática recursal da Lei nº 14.133/2021, não mais se mantém a celeuma então observada na Lei nº 10.520/2002 acerca da não apresentação das razões recursais após o acolhimento da intenção recursal pelo Pregoeiro.
Na NLL, mesmo com a manifestação tempestiva da intenção de recurso – e presentes os pressupostos da “sucumbência” e da “legitimidade” –, como não houve, em sede de “motivação”, a delimitação da matéria recursal, há uma dependência processual necessária da apresentação das razões recursais para a efetivação do recurso propriamente dito.
Dessa forma, concluímos que, diante da não apresentação das razões recursais no prazo legal, o recurso propriamente dito não é concretizado, permitindo, assim, a continuidade da instrução processual (art. 71 da NLL) sem a necessidade de apreciação e julgamento do pleito recursal, porquanto, inexistente.
Efeito suspensivo
Nos termos do caput do art. 168 da Lei nº 14.133/2021, interposto recurso contra decisão do agente de contratação haverá efeito suspensivo automático, a perdurar até o efetivo julgamento por parte da autoridade competente.
O termo inicial do efeito suspensivo corresponde ao momento do acolhimento da intenção de recorrer e não a partir do momento da apresentação das razões recursais.
Formalidades e procedimento do julgamento
De acordo com o art. 165, § 2º, da NLL, o recurso “será dirigido à autoridade que tiver editado o ato ou proferido a decisão recorrida”. Ou seja, a peça, contendo as razões recursais, deve ser endereçada ao agente de contratação, porquanto se trata da autoridade que proferiu a decisão objeto do recurso. Tal previsão se justifica em razão da possibilidade de reconsideração (juízo de retratação). Somente na hipótese de não reconsideração da decisão, os autos serão remetidos à autoridade hierarquicamente superior para o efetivo julgamento do recurso.
Vale salientar que o agente de contratação (autoridade que proferiu a decisão recorrida) não é competente para realizar o julgamento do recurso propriamente dito. Na verdade, como existe a possibilidade de reconsideração, caso tal agente mantenha sua decisão, deve apenas apresentar informações nos autos administrativos para subsidiar o julgamento do recurso pela autoridade superior.
Uma vez apresentada a peça contendo as razões recursais, o agente de contratação deve manifestar-se no prazo máximo de 3 (três) dias úteis. Se reconsiderar sua decisão, deverá realizar os atos decorrentes, inclusive desconstituindo retroatividade os atos praticados posteriormente à decisão objeto do recurso. Se mantiver a decisão, deverá apresentar as informações e “fazer subir” o recurso (efeito devolutivo), ou seja, encaminhá-lo à autoridade superior.
Recebidos os autos, a autoridade superior deve proferir decisão sobre o recurso (julgamento) no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis, sob pena de responsabilidade.
Efeitos da reconsideração por parte da autoridade recorrida
Com base na redação constante do § 2º do art. 165 da Lei nº 14.133/2021, constata-se a necessidade de uma primeira manifestação por parte da autoridade que praticou o ato recorrido (agente de contratação ou comissão de contratação). Nessa etapa, ao utilizar a conjunção subordinativa condicional “se”, o mencionado dispositivo legal descortina os dois caminhos possíveis para o recurso administrativo: i) reconsideração da decisão, implicando o desfazimento do ato decisório anterior e sua substituição por outro; ii) manutenção da decisão (não reconsideração), prestando as informações e subindo os autos à autoridade superior para efetivo julgamento do recurso.
Assim, ao conferir ao agente de contratação a competência para “reconsiderar” a decisão recorrida, a NLL estabelece uma condição para a subida do recurso à autoridade superior: a não retratação quanto ao ato ou a decisão recorrida.
Ao reconsiderar a decisão, o agente de contratação emitirá um novo ato decisório e, dessa forma, desconstituindo a decisão anteriormente adotada, desfazendo os atos subsequentes. Reitera-se que, na hipótese de reconsideração, não haverá a subida do recurso para julgamento por parte da autoridade superior.
Por óbvio, caso haja reconsideração pelo agente de contratação, com a desconstituição retroativa dos atos subsequentes à decisão recorrida – o que, em geral, convencionou-se a chamar de “volta de fase” –, haverá a prática de novos atos decisórios e que, consequentemente, poderão ser objeto de recurso na oportunidade processual adequada.
[1] “Em sede de pregão eletrônico ou presencial, o juízo de admissibilidade das intenções de recurso deve avaliar tão somente a presença dos pressupostos recursais (sucumbência, tempestividade, legitimidade, interesse e motivação), constituindo afronta à jurisprudência do TCU a denegação fundada em exame prévio de questão relacionada ao mérito do recurso” (Acórdão nº 694/2014-Plenário).
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