A atividade contratual do Estado brasileiro na Constituição e a necessidade de desburocratização
Por Juliano Oliveira Brandis
INTRODUÇÃO
As diretrizes centrais da atividade contratual do Estado Brasileiro estão fixadas no texto constitucional, o que demonstra a preocupação do poder constituinte na fixação de parâmetros gerais a serem seguidos por todos os entes federativos.
Nos dias atuais, é fundamental revisitar o tema, iniciando pela releitura dos dispositivos que tratam sobre o assunto na Constituição, especialmente em razão dos seguidos escândalos de corrupção que assolaram o país em tempos recentes e da conexão direta deles com a atividade contratual do Estado.
Afinal, em que medida o perfil constitucional traçado para a atividade contratual contribuiu para o cenário atual? Quais são as matérias constitucionais que impactam diretamente nas contratações públicas? De que maneira a atividade contratual poderia evoluir em busca da efetivação dos princípios que regem a Administração Pública sem burocratizar de maneira excessiva o sistema de contratações? Essas são as questões centrais que se pretende abordar no presente trabalho.
No que tange ao primeiro questionamento, pretende-se promover uma análise crítica dos dispositivos constitucionais que cuidam do tema, com a finalidade de refletir acerca dos efeitos práticos que produziram desde sua inserção no ordenamento jurídico.
Em seguida, avaliam-se dispositivos constitucionais que consagram regras e princípios que impactam diretamente no tratamento infralegal da matéria, inspirando dispositivos introduzidos no bojo da Lei nº 8.666/93. Entre os princípios abordados, encontram-se o desenvolvimento sustentável, a livre iniciativa e o tratamento privilegiado às microempresas e empresas de pequeno porte.
Por fim, pretende-se avançar um pouco mais sobre o tema com a finalidade de ponderar como a atividade contratual poderia ser desburocratizada sem colocar em risco os princípios previstos no caput do artigo 37 do Constituição da República Federativa do Brasil.
Este último aspecto parece ser de suma importância, pois, além do custo da corrupção, a burocracia e o excesso de formalismo ocasionam o desperdício de dinheiro público, assim como afastam atores privados que se recusam a participar de um certame cercado de exigências desnecessárias.
1. Reflexões acerca dos dispositivos constitucionais sobre a atividade contratual da Administração Pública
Inicia-se o presente estudo com a menção do artigo 22, inciso XXVII, que prevê a competência privativa da União para legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III”.
Em razão desse dispositivo, a União criou um amplo arcabouço de leis, entre as quais se destacam a Lei de Licitações (Lei n° 8.666/93), a Lei do Pregão (Lei n° 10.520/02), e a recente Lei das Estatais (Lei n° 13.303/16).
É notória, portanto, a intenção de criação de um sistema normativo sobre licitações e contratos unificado, em que a União fixa as diretrizes centrais, deixando pouca margem para a atuação dos estados e municípios, sobretudo diante da dificuldade de identificar o que seriam normas gerais e o que seriam normas específicas. Retira-se, assim, a possibilidade de criação de normas que melhor se adequam à realidade de cada ente federativo, com a imposição de condições que, em certos casos, inviabilizam ou encarecem a atividade contratual.
Neste ponto, podem ser citadas como exemplo as exigências em relação a publicação dos certames em jornais de grande circulação, que constam tanto da Lei das Licitações quanto da Lei do Pregão (artigo 21, inciso III e artigo 4°, inciso I, respectivamente). Até que ponto pequenos municípios possuem condição de disponibilizar os extratos dos certames em jornais de grande circulação, que possuem preços elevados para publicação?[1] De igual maneira, devem ser questionados os dispositivos que fixam valores para a dispensa de licitação e para a escolha de modalidades licitatórias, que também podem ser considerados inadequados à realidade dos municípios e estados.
Em prosseguimento, o inciso XXI do artigo 37 é o dispositivo constitucional mais específico em matéria de contratos da Administração Pública, sendo de especial relevância mencionar o seu texto:
Art. 37 (…)
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Constata-se que o dispositivo tem incidência ampla e define diretrizes que direcionam o legislador na regulamentação da matéria. É possível extrair, por exemplo, a regra da obrigatoriedade da licitação pública, ressalvados os casos especificados em leis, bem como a consagração dos princípios da isonomia e da ampla concorrência em matéria licitatória.
Porém, é a parte final que mais importa, pois dispõe que exigências de qualificação técnica e econômica somente serão permitidas caso sejam indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Este é um dos aspectos do texto constitucional que se comunica com os recentes casos de corrupção envolvendo contratos formulados pela Administração Pública.
O texto constitucional foi preciso ao limitar a previsão de exigências relacionadas à qualificação técnica e econômica justamente com a finalidade de evitar o direcionamento dos certames. Tal previsão merece especial atenção por parte do administrador e também por parte dos órgãos de controle, visto que, caso haja uma exigência dispensável, consequentemente, haverá ofensa à isonomia e à ampla concorrência, o que poderá colocar em risco a idoneidade do certame.
A presença de exigências dispensáveis, a especificação direcionada do objeto da licitação, a formação de cartéis entre as possíveis sociedades empresárias contratadas, ao lado da corrupção de agentes públicos, são as razões que viabilizaram a dilapidação do patrimônio público por meio de contratações superfaturadas.
Lado outro, também merece destaque o artigo 173, §1°, inciso III, da CRFB/88, segundo o qual a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, dispondo sobre licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública.
Apesar de o dispositivo em questão ter sido incluído pela Emenda Constitucional n° 19/98, o estatuto jurídico das estatais somente foi criado pela Lei n° 13.303, de 30 de junho de 2016, o que demonstra a morosidade do legislador no tratamento da matéria. Coincidentemente, o maior escândalo de corrupção se deu na esfera da PETROBRAS, empresa estatal, que deveria se submeter ao referido estatuto jurídico, caso tivesse sido criado anteriormente.
Ressalta-se que, mesmo que este fator tenha contribuído, ele não é o único ou o mais decisivo, pois a questão da corrupção no Brasil envolve diversas razões, sendo as não jurídicas, talvez, as mais determinantes e relevantes.
Por fim, apenas com o escopo de completar a análise, o caput do artigo 175 também trata sobre contratações no âmbito da Administração Pública ao dispor que a concessão e a permissão da prestação de serviços públicos à particulares se dará sempre por meio de licitação.
Diante do exposto, conclui-se, parcialmente, que o texto constitucional deveria salvaguardar as especificidades de cada ente federativo, permitindo que cada um possua regulamentação própria, visto que, na prática, a competência privativa para legislar sobre licitações e contrato, bem como para criar o estatuto das estatais, invade a autonomia federativa de cada ente, o que dificulta e, em alguns casos, encarece as contratações. Destaca-se, ainda, que o artigo 37, inciso XXI, se preocupa com o afastamento de exigências que nada têm a ver com o cumprimento da obrigação contratual, razão pela qual deve servir de norte para os administradores e para os órgãos de controle no combate ao formalismo excessivo nos atos convocatórios.
2. Matérias constitucionais correlatas que impactam na atividade contratual do Estado
Nota-se que a Constituição buscou enfrentar a questão da atividade contratual do Estado de maneira pontual, contudo, outros dispositivos impactam diretamente no tratamento legal sobre o tema.
Inicia-se este tópico do trabalho com a menção ao artigo 170 da CRFB/88, que trata sobre a ordem econômica, fundada nos valores da valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, observando, entre outros princípios, a livre concorrência e o desenvolvimento sustentável.
O artigo 179 da CRFB/88 dispõe que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Os dois dispositivos impactaram diretamente na Lei nº 8.666/93, conforme é possível verificar a partir da leitura do caput do artigo 3º e do artigo 5º-A, por exemplo. Assim, não basta apenas buscar a proposta mais vantajosa do ponto de vista econômico, já que outros valores também devem ser salvaguardados no momento de seleção do contratado [2]. Ressalta-se, especificamente em relação à sustentabilidade, que, em regra, se analisado a longo prazo, essa espécie de contratação pode também demonstrar-se como a mais vantajosa, inclusive do ponto de vista econômico, razão pela qual, em alguns casos, é perfeitamente possível conjugar o desenvolvimento sustentável com a vantajosidade.
Por outro lado, é impossível deixar de notar como a livre concorrência está mitigada pela necessidade de criação de critérios que privilegiem as microempresas e o desenvolvimento sustentável, visto que, vários potenciais concorrentes estarão em condição de desigualdade, em razão da efetivação desses valores em matéria de contratos com a Administração Pública. Desta maneira, fica claro que o legislador, em matéria licitatória, deve encontrar o adequado balanceamento entre todos os valores constitucionalmente consagrados, visto que o privilégio excessivo de um em detrimento dos outros poderá ser extremamente danoso aos fins almejados com a contratação pública, que é, em última análise, atender de maneira eficiente à demanda por bens ou serviços da Administração.
Por último, os princípios que regem a Administração Pública, previstos no caput do artigo 37 da CRFB/88, também contribuem para identificar quais seriam as editalícias e contratuais que configuram excesso de formalismo. Os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência representam o núcleo central de valores a serem preservados também no curso da atividade contratual do Estado.
Destaca-se, conforme será visto no próximo item, que as normas que regem a licitação no Brasil devem se preocupar em ser eficientes, ou seja, possibilitar aos administrados meios aptos à satisfação dos interesses da Administração em tempo razoável [3].
3. Desburocratização da atividade contratual do Estado Brasileiro
A Emenda Constitucional n° 19/98 iniciou um processo que foi denominado como “Reforma Administrativa”, porque buscava trazer maior eficiência no desenvolvimento das funções exercidas pelo Estado. Tanto é assim que o princípio da eficiência foi expressamente incluído no caput do artigo 37, em que consta o rol de princípios norteadores da Administração Pública.
Em matéria licitatória, não há como negar que houve um movimento significativo com o intuito de criar alternativas à obsoleta Lei n° 8.666/93. A Lei do Pregão, o Regime Diferenciado de Contratações (RDC) e a recente Lei das Estatais confirmam a intenção do legislador de tornar mais célere e prático o procedimento relacionado às contratações públicas, contudo, muito há que se avançar.
Ademais, o Projeto de Lei n° 1.292/95 tramita no Congresso Nacional, que possui o objetivo de revogar a Lei n° 8.666/93 e criar nova sistematização para licitações e contratos no ordenamento jurídico pátrio. Apesar de o projeto catalisar várias das valiosas inovações introduzidas pelas leis que sucederam a lei geral, ainda há um excesso de regulamentação, o que intensifica a necessidade de debates sobre o tema.
A escolha de um modelo adequado de contratações públicas escapa inclusive à análise estritamente jurídica. Mais que isso, é necessário conhecimento de mercado para entender qual a forma de contratação seria mais eficiente e vantajosa de acordo com o objeto a ser licitado. Por exemplo, a compra de produtos de informática realizada diretamente na rede mundial de computadores, que possui vasto acervo para pesquisa e negociações relacionado a esse objeto, poderia ser mais vantajosa do que a aquisição resultante de um procedimento de pregão.
Neste ponto, é fundamental que a nova lei permita ao administrador contratar de maneira eficiente, pois a burocracia excessiva leva à perda de tempo, com aumento dos custos (gasto com servidores públicos), além de afugentar potenciais concorrentes. Também não se pode deixar de mencionar que a existência de cláusulas exorbitantes e de sanções gravosas de alcance nacional, como a declaração de inidoneidade, fazem com que as empresas incluam no preço ofertado à Administração o risco da contratação.
Também vale rediscutir o artigo 21, inciso III, da Lei n° 8.666/93 e o artigo 4°, inciso I, da Lei n° 10.520/02, já citados neste trabalho, que preveem a necessidade de publicação do ato convocatório em jornal de grande circulação. É impensável que nos dias atuais, nos quais há a difusão em massa dos meios digitais de comunicação, permaneça a necessidade de publicação em jornais. Mais sentido faria exigir que cada ente mantenha o seu portal de licitações e contratos ou, até mesmo, façam convênios entre si para a criação de um portal único, observando as normas de segurança digital, o que permitiria a ampla divulgação do certame e a redução de gastos.
Como ocorreu com o procedimento judicial, os procedimentos administrativos também devem acompanhar a evolução tecnológica, que permitem maior transparência com menores custos, além de atenderem o desenvolvimento sustentável. Em que pese a previsão do pregão eletrônico, que acabou se tornando a espécie mais comum no dia a dia das repartições pública, é preciso que todo o procedimento, incluindo a fase interna e a publicação do ato convocatório, se valha dos meios digitais.
CONCLUSÃO
Conclui-se com o presente trabalho que a atividade contratual do Estado brasileiro está devidamente tratada no texto constitucional, inclusive com a estipulação de normas que tratam sobre competência legislativa, princípios aplicados à matéria, bem como outros princípios e valores que devem ser cotejados pelo legislador e pelo administrador no momento da escolha da proposta mais vantajosa.
Em razão do “pacto federativo”, opina-se no sentido de ampliação do espaço de conformação da matéria pelos estados e municípios, que possuem características e necessidades diversas daquelas da União.
Apesar da necessidade de avanço na simplificação e desburocratização do procedimento licitatório, sobretudo com a difusão dos meios digitais no curso do rito, não é razoável imputar à legislação os problemas recentes que o Brasil vivenciou com o superfaturamento de contratações públicas. Contudo, o sistema atual, em razão do formalismo ainda excessivo, desperdiça dinheiro público em virtude da ineficiência na hora de contratar.
Algumas dessas barreiras podem ser superadas através da aprovação do Projeto de nova Lei de Licitações, contudo, outras barreiras, tais como, a falta de capacitação dos servidores, a existência de cartéis entre as sociedades empresárias, a corrupção de agentes públicos, não podem ser superadas por lei, mas sim por meio da atuação efetiva dos órgãos de controle, sobretudo Ministério Público e Tribunais de Contas.
REFERÊNCIAS
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2014.
FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2014.
RIBEIRO, Leonardo Coelho. O direito como “caixa de ferramentas”: uma nova abordagem da ação pública. São Paulo: Malheiros Editores, 2016.
SUNDFELD, Carlos Ari Sundfeld. Fundamentos de Direito Público. 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2017.
_______________ Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros Editores. 2013.
[1] Neste ponto, vale ressaltar que a Medida Provisória 896/2019 dispensou os órgãos da administração pública da publicação de editais em jornal de grande circulação. Contudo, o Ministro do STF Gilmar Mendes deferiu liminar suspendendo a eficácia da Medida Provisória nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.229.
[2] Sobre este ponto, vale expor o pensamento crítico de Carlos Ari Sundfeld: “Em uma avaliação geral, pode-se dizer que a lei de 1993 foi um desvio de rota, pois sucumbiu ao lobby de um setor (o das empreiteiras emergentes de atuação regionalizada), limitando o princípio da concorrência sem um interesse público de caráter geral que o justificasse. A reação legal de 2002 iniciou uma revisão claramente pró-competição. Mas, a correção de rumo não se completou, e é imprudente dizer que seja irreversível. Por fim, algumas limitações à ampla competição vêm sendo criadas por leis recentes, mas com foco dirigido por políticas públicas mais consistentes: a proteção, de um lado, de empresas nacionais e, de outro, de microempresas e empresas de pequeno porte” (Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros Editores. 2013. p. 24).
[3] Juarez Freitas vai além e professa sobre a existência de um direito fundamental à boa administração, que dever ser compreendido como “direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas (Direito fundamental à boa Administração Pública. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2014. p. 21).
AUTOR:
Juliano Oliveira Brandis
Subprocurador do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-Graduado em Direito Administrativo pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
FONTE: PROCESSO E TECNOLOGIA
Disponível em:
https://www.processoetecnologia.com.br/a-atividade-contratual-do-estado-brasileiro-na-constituicao-e-a-necessidade-de-desburocratizacao/
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