Renee do Ó Souza[1]
Rogério Sanches Cunha[2]
A Lei Anticorrupção ressalvou no art. 30 a sua total independência normativa frente a outras leis que protegem a probidade administrativa. A pretensão dessa norma é admitir a cumulação de sanções previstas nas Leis nº 8.429/1992 (improbidade administrativa), nº 8.666/1993 (licitações e contratos) e nº 12.462/2011 (RDC), caso o ato praticado configure ilícito em qualquer um desses diplomas legais.
Esse regime de independência permite que uma pessoa seja responsabilizada simultaneamente por diferentes sistemas sancionatórios, como acontece no caso de uma fraude à licitação que pode caracterizar infração simultânea ao art. 5º, IV, da Lei 12.846/2013 e ao art. 10, VIII, da Lei 8.429/1992, sem falar no crime do art. 337-F do Código Penal, imputável, naturalmente, às pessoas físicas envolvidas no ato.
A autonomia da Lei Anticorrupção se assenta em seus distintos elementos estruturais e, fundamentalmente, na liberdade política do legislador em editar diferentes leis voltadas a proteção de determinados bens jurídicos. A sobreposição normativa é legitimada também pelo incremento protetivo do direito fundamental a probidade administrativa, pelo que não há propriamente um conflito de normas nesses casos. No mesmo sentido, entende Modesto Carvalhosa.[3]
A diferença de tratamento existente nessas leis é suficiente para refutar, a nosso ver, alegação de violação ao princípio do ne bis in idem, segundo o qual, ninguém pode, pelo mesmo fato, ser processado duas vezes, incorporado ao ordenamento brasileiro por meio da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica, inserido no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 678/1992), que assim dispõe no art. 8, n.º 4: “O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.
Ora, a Lei Anticorrupção Empresarial, a Lei de Improbidade Administrativa e as leis penais enfrentam a corrupção com instrumentos, estratégias e eixos diferentes, que resultam em sanções diversas entre si. Isso permite que um mesmo ato seja sancionado por diferentes normas e múltiplos sistemas de responsabilidade. Aliás, seguindo essa linha de ideias, a Suprema Corte do Brasil já reconheceu a inexistência de ‘bis in idem’ pela circunstância de, pelos mesmos fatos, terem sido aplicadas a pena de multa pelo Tribunal de Contas da União e a pena de cassação da aposentadoria pela Administração. Tratava-se de um mandado de segurança impetrado por uma servidora pública federal contra ato do Presidente da República que lhe aplicou, em janeiro de 1997, a penalidade disciplinar de cassação de aposentadoria. Alegava o impetrante, dentre outras teses, que havia dupla punição no ato uma vez que o Tribunal de Contas da União já havia lhe aplicado pena de multa em razão dos mesmos fatos. A Suprema Corte refutou a alegação ao reconhecer que a multa que foi anteriormente plicada pelo TCU, ainda que baseada nos mesmos fatos, não se confunde com a apuração e consequente punição de infrações disciplinares pela administração pública porque são independentes entre sai a responsabilização administrativa dos servidores públicos faltosos e a atuação do Tribunal de Contas da União, no exercício do controle externo das contas públicas como órgão auxiliar do Poder Legislativo[4].
Além disso, o fato de algumas sanções previstas em ambos os diplomas legais serem comuns também não justifica, a nosso ver, o afastamento de uma das leis, sob a tese de violação da proibição do bis in idem. No regime de independências de instâncias, é comum a aplicação simultânea de sanções semelhantes entre si, assentadas em normas distintas entre si, ainda que diante de uma mesma unidade factual, sem que cogite de violação ao referido princípio.
Para ficar apenas com um exemplo, anote-se que a multa é sanção prevista pela Lei Penal, Lei Concorrencial, Código De Defesa do Consumidor, Leis Ambientais, Lei da CVM (Lei nº 6.385/76), Lei das Sociedades por Ação (Lei nº 6.404/76), etc. e todas podem ensejar a aplicação de multas simultâneas, a partir de um mesmo ato ilícito.
Por isso que, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que a condenação pela justiça eleitoral ao pagamento de multa por infringência às disposições contidas na Lei 9.504/1997 (Lei das Eleições) não impede a imposição de nenhuma das sanções previstas na Lei n.º 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), inclusive da multa civil, pelo ato de improbidade decorrente da mesma conduta (STJ. 2ª t., AgRg no AREsp 606.352-SP, Rel. Min. Assuste Magalhães. j. em 15.12.2015 (info 576)).
Acontece que a questão foi sensivelmente modificada pela nova previsão do § 2º do art. 3º e §§ 6º, 7º e 8º do art. 12, ambos da Lei 8.429/1992 com a redação dada pela Lei 14.230/2021, que cria um sistema de independência relativa entre a Lei Anticorrupção e de Improbidade. Vejamos.
Dispõe referidas normas:
Art. 3º (…)
§ 2º As sanções desta Lei não se aplicarão à pessoa jurídica, caso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à administração pública de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
Art. 12 (…)
§ 6º Se ocorrer lesão ao patrimônio público, a reparação do dano a que se refere esta Lei deverá deduzir o ressarcimento ocorrido nas instâncias criminal, civil e administrativa que tiver por objeto os mesmos fatos.
§ 7º As sanções aplicadas a pessoas jurídicas com base nesta Lei e na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem.
Primeiro ponto a ser considerado, ao contrário do que poderia autorizar uma leitura apressada, é que essas novas disposições legais não isentam a pessoa jurídica de responsabilidade pelo sistema da Lei de Improbidade. Na verdade, essas normas se referem apenas as sanções e criam uma espécie de detração sancionatória, que permite um desconto ou um abatimento de sanções aplicadas por violação à Lei Anticorrupção Empresarial junto à esfera da improbidade administrativa.
Isso significa que, caso a pessoa jurídica não seja responsabilizada à luz da Lei Anticorrupção, porque, por exemplo, o caso foi fulminado pela prescrição, nada impede que ela o seja à luz da Lei 8.429/1992. Se a intenção do legislador fosse evitar e impedir que a pessoa jurídica respondesse pelo sistema da Lei de Improbidade Administrativa bastaria ter feito uma textual previsão assim.
Mas como se vê, o § 2º do art. 3º da Lei 8.429/1992 apenas isenta a pessoa jurídica das sanções aplicadas na órbita da improbidade administrativa caso, pelo mesmo ato, tenha sido sancionada à luz da Lei Anticorrupção. Observe-se que, para incidir essa hipótese normativa, deve o ato ilícito praticado amoldar-se nas duas leis e, além disso, ter havido prévia condenação pela Lei Anticorrupção Empresarial.
A lei impôs assim algumas condições para a ocorrência dessa detração: além de duas condenações sucessivas, elas devem se referir ao mesmo fato. Trata-se de previsão crucial para evitar a formação de uma espécie de crédito em favor da pessoa jurídica envolvida em atos ilícitos, que lhe permitiria praticar novos atos ímprobos diferentes daqueles correspondentes à condenação por violação à lei anticorrupção que restariam indistintamente neutralizados por um indevido saldo remanescente da primeira condenação. Essa é a interpretação capaz de evitar manobras oportunistas e a desproteção do direito fundamental à probidade administrativa.
Assim, doravante, caso a pessoa jurídica seja sancionada pela Lei Anticorrupção Empresarial poderá ter computada a sanção aplicada pelo sistema de responsabilidade da Lei de Improbidade Administrativa, regra que rompe, ainda que parcialmente, com sistema de independência normativa entre as Leis.
Anote-se, contudo, que devido à falta de previsão legal, essa compensação sancionatória é via de mão única: só ocorre se primeiro houver condenação na Lei Anticorrupção Empresarial e depois na esfera da improbidade administrativa. Não há previsão legal de desconto em sentido contrário, mesmo porque, a Lei Anticorrupção é regida pela independência total proclamada pelo seu art. 30, I.
Essas disposições compensatórias desafiam questões relevantes de ordem prática principalmente por causa da diferença de tempo na investigação e processamento destes ilícitos, situação que deverá ser analisada caso a caso.
[1] Mestre em Direito. Promotor de Justiça em Mato Grosso. Membro Auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público. Professor e autor de obras jurídicas.
[2] Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor da Escola Superior do Ministério Público dos estados de São Paulo, Mato Grosso e Santa Catarina. Coordenador Pedagógico e Professor de Penal e Processo Penal do Curso RSConline. Fundador do site www.meusitejuridico.com.br. Cofundador e coordenador pedagógico do JUSPLAY. Autor de obras jurídicas.
[3] CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a Lei anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei n. 12.846/13. São Paulo: RT, 2015. p. 424.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS n. 22.728/PR. Pleno. Relator: Ministro Moreira Alves. Brasília, 22 jan. 1998. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=85824>. Acesso em: 04 nov. 2018.
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