Virgínia Bracarense Lopes, EPPGG da 16ª turma e integrante da diretoria da ANESP
O dia 1º de abril, conhecido como o dia da mentira, ficará marcado no Brasil por uma grande verdade: a sanção da Lei nº. 14.133/2021, nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que estabelece normas gerais para as compras públicas nacionais aplicáveis a todos entes governamentais e a todos os poderes.
A nova lei surge depois de mais de 25 anos do atual marco geral vigente, a Lei nº. 8.666/1993, que, ao longo desse tempo, sofreu inúmeras alterações e dividiu espaço com outros diplomas, na tentativa de aproximar o processo de compras públicas à realidade de mercado e do Estado. Destacam-se dentre essas normas, a Lei do Pregão (Lei nº. 10.520/2002), que introduziu, no cenário nacional, uma nova modalidade de licitação, mais célere (por meio da inversão de fases) e que abriu a possibilidade à forma eletrônica de contratações; e a Lei do Regime Diferenciado de Contratações – RDC (Lei nº. 12.462/2011), que instituiu um regime, inicialmente limitado às obras dos jogos olímpicos e da copa do mundo e depois ampliado a outras finalidades, que buscava mais eficiência, competitividade e inovação nas contratações. A nova lei virá substituir essas três normas, que deixarão de existir no ordenamento jurídico nos próximos 2 anos.
Extensa, procedimental, inovadora, democrática, complexa. Muitos são os adjetivos que vêm sendo associados à nova norma, mas, talvez, o único em torno do qual haja concordância seja: necessária! É pacífico que era preciso e urgente ter uma nova norma, mesmo que ela não seja a melhor possível e nem tenha incorporado os aprendizados deste último ano de enfrentamento à pandemia, que exigiu uma verdadeira reinvenção das compras públicas.
A nova lei, que já está vigente desde sua publicação, tem eficácia limitada, ou seja, só passará a produzir seus efeitos reais, a partir das inúmeras regulamentações que precisarão ser feitas, em âmbito federal, estadual e municipal.
Vejamos cinco mudanças que a Lei nº. 14.133/2021 traz:
1) Mudança da narrativa: do controle à governança
A Lei nº. 8.666/1993 tinha como principal justificativa, e em função do contexto de seu surgimento, o combate à corrupção, feito a partir do detalhamento exaustivo de procedimentos na própria lei e, também, em inúmeros decretos, instruções normativas, portarias, manuais e orientações de órgãos de controle. Esse objetivo, como muitos perceberam, não foi alcançado, mesmo com a redução do espaço de decisão do gestor levada ao extremo. Baixa qualidade dos bens e serviços adquiridos, morosidade nos procedimentos de contratação, baixo espaço à inovação, obsessão pelo menor preço e tantos outros problemas demonstraram que não era esse o caminho para a boa compra pública.
Diante desse cenário, a nova lei traz uma nova mensagem: o controle é necessário, mas será feito a partir de mecanismos de governança. Uma lógica que já vinha sendo utilizada em nível infralegal e restrita ao espaço dos órgãos e entidades do executivo federal e dos poderes legislativo e judiciário. Agora, trata-se da implementação de mecanismos de liderança, estratégia e controle em todos os poderes e entes por meio do envolvimento da alta gestão nas decisões (art. 11, parágrafo único), da ampliação da necessidade do planejamento anual de contratações (art. 174, §2º, I), do reforço à importância de estudos técnicos preliminares para definição das soluções a serem contratadas (art. 18, §1º), da necessidade em gerir riscos por meio de matrizes específicas (arts. 22 e 103).
E, para realizar todas essas funções, muda-se, de forma profunda, o perfil daqueles atuantes em compras públicas. Agora conhecido como agente de contratação (arts. 7º a 10), mantida a nomenclatura pregoeiro para a modalidade específica, o comprador público deverá ser servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da instituição (o que poderá ser um grande desafio num contexto de Reforma Administrativa, que tenta modificar, de forma substancial, os regimes e vínculos de trabalho junto ao Estado), deverá ser continuamente capacitado e profissionalizado, e estará sujeito a um regime de gestão por competência, sob responsabilidade da alta gestão.
2) Extinção e criação de modalidades de licitação
A Lei nº 8.666/1993 previa cinco modalidades de licitação: concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão. As três primeiras, eram dedicadas à compra, seja de obras, serviços ou bens, e distinguiam-se pelo valor estimado da licitação, sendo a concorrência a de maior valor. O concurso era a modalidade para selecionar trabalhos técnicos, científicos ou artísticos por meio de premiações ou remuneração aos vencedores. Por fim, o leilão era a modalidade utilizada para venda ou alienação de bens.
A Lei nº. 10.520/2002, incluiu uma nova modalidade licitatória no ordenamento brasileiro, o pregão, que deixava de se orientar pelo valor, como as formas da lei geral, e observava se o objeto era passível de ser descrito em padrões facilmente identificados pelo mercado, os chamados bens e serviços comuns. Além disso, mudava de forma profunda o rito de licitação, trazendo a inversão de fases, em que primeiro tinha-se a disputa de preços (lances) entre os interessados e julgamento das propostas para, somente em relação ao vencedor, analisar seus documentos de habilitação.
A nova lei, nos arts. 28 a 32, extingue as modalidades de tomada de preços e convite, já pouco utilizadas na prática desde o advento do pregão, em especial o de forma eletrônica, e mantém as modalidades de pregão, concorrência, concurso e leilão. Uma grande diferença nessas modalidades até então regidas pela lei de 1993 é que agora elas também assumirão o formato eletrônico como regra (o que no pregão já é uma realidade), bem como passarão a ter o rito do pregão (que é o mesmo do RDC) como a regra, ou seja, primeiro julgam-se as propostas para depois habilitar o licitante. O RDC também deixa de existir, tendo vários de seus procedimentos absorvidos pelas modalidades mencionadas.
Além dessas quatro modalidades, a lei traz uma novidade: o diálogo competitivo. Trata-se de um modelo de inspiração europeia, utilizado para contratações de objetos complexos, para os quais a Administração não possui conhecimento suficiente para identificar a melhor solução e descrevê-la para uma disputa nas demais modalidades, sendo necessária a colaboração do mercado na identificação e desenvolvimento das possíveis alternativas.
3) Um novo olhar para a gestão de contratos
A nova lei trouxe significativas mudanças na etapa de gestão e fiscalização de contratos, sendo a primeira delas referente à vigência.
Anteriormente, por regra, os contratos duravam até 12 meses, havendo exceções quanto à prorrogação para os serviços de prestação continuada (por até 60 meses) ou aqueles associados a projetos cujas metas estivessem estabelecidas no Plano Plurianual (PPA).
Agora, a Administração poderá firmar contratos com vigência inicial de até 5 anos (art. 106) para os casos de serviços e fornecimentos contínuos (esta segunda hipótese é uma grande novidade), podendo ser prorrogados por até 10 anos, o que reduz boa carga do ônus administrativo de prorrogações que ocorriam nos órgãos e entidades, além de trazer mais atratividade para as licitações, dada a relação de maior tempo junto ao fornecedor. Há também previsões de contratações com prazos iniciais de 10 anos (art. 108), a exemplo de contratações com transferência de tecnologia de produtos estratégicos do SUS (art. 75, caput, XII), e com prazos entre 10 e 35 anos para os contratos que gerem receita para a Administração ou os de eficiência conforme haja ou não investimento (art. 110).
Além da mudança das vigências, vale lembrar da nova forma de garantia que poderá ser exigida dos fornecedores. No seguro-garantia para os contratos de obras e serviços de engenharia (art. 102), já existente na Lei nº. 8.666/1993, agora a Administração poderá prever a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato. Conhecida internacionalmente como step in right, trata-se de uma inovação, que reduz a dificuldade que hoje existe de licitar serviços para conclusão de objetos inacabados, mas que, também, deverá ser analisada com cuidado, pois tem relação direta com o custo da contratação.
4) Procedimentos auxiliares: instrumentos que podem transformar as contratações públicas
Atualmente presentes no nível infralegal, a nova lei traz destaque aos chamados instrumentos ou procedimentos auxiliares, que não são a licitação ou contratação em si, mas que lhes dão suporte e agregam qualidade ao andamento das compras, podendo alguns serem anteriores e outros posteriores à licitação ou à contratação. São eles: credenciamento, pré-qualificação, procedimento de manifestação de interesse, sistema de registro de preços e registro cadastral (arts. 78 a 88).
O registro cadastral (arts 87 e 88) trata-se de um cadastro unificado dos licitantes ou interessados em licitar com a Administração. A grande novidade é a expressão “unificado”, que pretende reunir, num único local, informações dos registros de fornecedores de todos os poderes e de todos entes federativos.
O sistema de registro de preços (arts. 82 a 86) consiste em uma forma de a Administração registrar, para contratação futura, fornecedores interessados em prestar serviços ou fornecer bens aos órgãos e entidades, com preços já definidos, mas sem haver a obrigação de contratação por parte do poder público. Anteriormente possível somente por meio de concorrência e pregão, agora a nova lei permite o uso do procedimento em hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação.
A pré-qualificação (art. 80) é um procedimento, nos termos da lei, “técnico-administrativo para selecionar previamente: I – licitantes que reúnam condições de habilitação para participar de futura licitação ou de licitação vinculada a programas de obras ou de serviços objetivamente definidos; II – bens que atendam às exigências técnicas ou de qualidade estabelecidas pela Administração”. Já se tratava de procedimento previsto na Lei nº. 8.666/1993, porém agora com avanços, como a possibilidade de alcançar bens, não somente licitantes, e a limitação da futura licitação aos pré-qualificados.
O procedimento de manifestação de interesse – PMI (art. 91) trata da possibilidade de a Administração solicitar ao mercado “a propositura e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública”. Seria uma etapa de prospecção de soluções para orientar uma futura licitação pelo Estado, podendo os custos da iniciativa privada serem ressarcidos, conforme definido em edital, pelo vencedor da licitação. Cabe registrar a diferença entre o PMI e o diálogo competitivo. Aquele trata de prospecção de informações e estudos para orientar uma futura licitação, que pode nem ocorrer. Já o diálogo competitivo é a licitação propriamente dita, e, durante seu andamento, são debatidas e definidas as soluções adequadas.
Por fim, o credenciamento (art. 79) trata-se de situação em que, para a Administração, é conveniente se relacionar com o máximo de fornecedores possível, havendo uma etapa preliminar de habilitação dos interessados para que, quando houver a necessidade de contratação, esta seja viabilizada por uma inexigibilidade de licitação, utilizando-se preços previamente definidos. É um formato muito utilizado atualmente para serviços de saúde e instituições de habilitação de motoristas, por exemplo. A lei também previu um formato inovador, quando se tratar de mercados em que não é possível fixar preços antecipadamente, o que se chamou de mercados fluidos, sendo, talvez, essa a grande possibilidade de operacionalização de mercados eletrônicos de compras conhecidos como e-marketplaces públicos.
5) Portal Nacional de Contratações: transparência e compartilhamento
A nova lei de licitações amplia a perspectiva das compras eletrônicas, sendo seu processamento feito por meio de plataformas corporativas ou privadas. Atualmente, há uma multiplicidade de soluções utilizadas pelas instituições, o que, para os fornecedores e cidadãos, dificulta, apesar de todos os esforços de transparência, o acesso facilitado às informações sobre as licitações e contratações públicas.
Nesse sentido, a Lei nº. 14.133/2021 dispõe sobre o Portal Nacional de Contratação Públicas (PNCP), que se destinará tanto a reunir informações de editais, atas de registro de preços, contratos e outros documentos do processo de contratação pública, quanto também poderá ser o canal utilizado pelos órgãos e entidades dos diversos poderes e entes federativos para o processamento de suas contratações.
Atualmente, o Comprasnet, sistema do Governo Federal, já é amplamente utilizado por municípios e por alguns estados, porém, há atores com sistemas tão evoluídos quanto, como os integrados com informações de pessoal, orçamento e financeiro. Nesse sentido, a nova previsão da lei é louvável, mas demandará todo um esforço de orquestração de informações, arquiteturas de tecnologia, definição de parâmetros, diálogo e colaboração.
Enfim, temos uma nova lei! E ela exigirá, a partir de já, muitas discussões, reflexões e interpretações. O cenário se complexifica um pouco mais ao se considerar que cada ente federativo e cada Poder poderá fazer seus regramentos específicos. Esta é outra etapa a ser vencida: o que na nova lei é entendido como regra geral e, portanto, aplicável a todos, sob fundamento da competência privativa da União, prevista no art. 22, XXVII, da Constituição Federal de 1988, e o que é regra específica, aplicável somente ao Executivo do Governo Federal? Que todas essas discussões sejam feitas com o olhar para o futuro, e não pelas interpretações do passado.
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