Ronny Charles Lopes de Torres[1]
Maria Emanuelle de Andrade Dantas[2]
A nova Lei de Licitações, Lei nº 14.133/21, de maneira interessante, inseriu, no capítulo de apresentação de propostas e lances, a previsão da exigência de garantia.
No regime anterior, a garantia de proposta era admitida pela Lei n. 8.666/93, inclusive na modalidade concorrência, porém vedada pela Lei n. 10.520/2002, para a modalidade pregão. No regime da Lei n. 14.133/2021, contudo, não há qualquer vedação ao uso da garantia de proposta, de maneira que ela, em tese, pode ser aplicada tanto na modalidade pregão como na modalidade concorrência.
Nos termos do caput do art. 58 da Lei n. 14.133/2021, a Administração poderá exigir da empresa licitante a comprovação de quantia a título de garantia de proposta, como requisito de pré-habilitação.
As modalidades admitidas pelo legislador para a garantia de proposta seriam as mesmas admitidas para a garantia contratual. Assim, o licitante poderá escolher a modalidade de garantia entre as dispostas no §1º do art. 96 da NLLC, quais sejam: caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública, seguro-garantia (bid bond), fiança bancária[3] ou título de capitalização custeado por pagamento único, com resgate pelo valor total[4].
Salientamos: garantia de proposta e garantia contratual são garantias diferentes, sendo necessário diferenciá-las. Elas são exigidas em momentos diversos e possuem funcionalidades específicas.
A garantia de proposta é um requisito de pré-habilitação exigível a todos licitantes, enquanto que a garantia contratual somente é exigida do licitante vencedor, quando da assinatura do contrato. Enquanto a primeira é requisito para todos os que querem participar da licitação, e tem por funcionalidade sinalizar (signaling) uma atuação responsável da empresa, coibindo a participação no certame de licitantes aventureiros, a segunda é exigida apenas do vencedor da licitação, como instrumento sinalizador e garantidor de que o contrato será devidamente executado.
Apesar da finalidade de mitigar o risco de participação de aventureiros na licitação, a exigência da garantia de proposta é alvo de críticas. Marçal Justen Filho, por exemplo, argumenta que a garantia não propicia benefício para a Administração, uma vez que a formulação da proposta não gera riscos de danos, além de afetar negativamente os licitantes[5].
Respeitosamente, neste ponto, divergimos do notável jurista por entendermos que a exigência de garantia de proposta pode sim propiciar benefícios para a Administração, regulando a escorreita participação no certame.
As licitações eletrônicas reduziram custos para a participação nos certames públicos (custos de transação que podem ser classificados como custos de negociação e decisão), induzindo uma ampliação da competitividade e admitindo que uma mesma empresa, através de um único representante, possa participar simultaneamente de várias licitações em regiões diferentes do país. Contudo, se, por um lado, houve ganhos com a ampliação de competitividade, por outro, a modelagem de licitação on line fomentou rearranjo na organização do mercado de fornecedores para a Administração, pois, embora tenha reduzido os custos transacionais de negociação e decisão, o modelo tradicional de licitação eletrônica manteve altos custos transacionais de pesquisa e informação.
Assim, se a redução de custos transacionais decorrente das sessões eletrônicas permitiu uma ampliação da competitividade, atraindo novas empresas para o mercado das licitações públicas, a manutenção de um modelo burocrático e formalista de seleção induziu a entrada neste mercado de empresas criadas exclusivamente para disputar licitações, sendo atravessadoras entre a administração e o fornecedor real, e também a participação de empresas aventureiras, que mesmo vencendo a licitação, não honram com os compromissos assumidos, ampliando demasiadamente as incidências de frustrações contratuais. Situação de alto custo administrativo e social.
A exigência de garantia de proposta tende a criar desestímulos à participação do licitante aventureiro, já que ele apenas participará se tiver segurança de que pode manter a proposta firmada ou mostrar a documentação exigida para a contratação, servindo como eficiente sinalização de sua condição de aptidão.
Embora possa proporcionar uma sutil restrição à competição (como também proporciona qualquer exigência habilitatória ou mesmo a enfadonha leitura de um edital), é um instrumento que pode auxiliar a construção de um melhor ambiente competitivo, afastando licitantes aventureiros. Economicamente, ela é mais um custo transacional do processo licitatório, mas que pode ser estratégico para a eficiência do processo seletivo. Também nessa linha, Joel de Menezes Niebuhr pondera: “pressupõe-se que, se o licitante não tem condições de oferecer garantia limitada a 1% do valor estimado do contrato, ele não tem condições econômico-financeiras de executá-lo”[6].
Por conta de tudo isso, entendemos que a garantia de proposta como requisito de pré-habilitação pode ser um excelente instrumento capaz de regular positivamente a licitação, a fim de desestimular a participação de licitantes irresponsáveis e aventureiros, preservando o interesse público e, consequentemente, salvaguardando a obtenção da vantajosidade.
De qualquer forma, a exigência precisa ser devidamente justificada, o que amplia a relevância de motivação pertinente durante a fase preparatória. Assim, a garantia de proposta deve ser exigida quando “a Administração identificar, ainda no planejamento da contratação, eventuais riscos que possam ser superados com o requisito da pré-qualificação em análise”[7].
O art. 58 da NLLC aponta regras que devem ser adotadas pelo ente público ao exigir a garantia de proposta.
Primeiramente, o limite para a exigência de garantia será de até 1% (um por cento) do valor estimado para a contratação, sendo possível a escolha da modalidade de garantia, pelo licitante.
Tratando-se de um requisito de pré-habilitação, sendo ela exigida, caso o licitante não a apresente oportunamente, deve ter sua proposta desclassificada.
Nesse ponto, convém avaliar quando deve ser feita a aferição do atendimento, pelo licitante, à exigência de garantia de proposta. Para alguns, deveria ser um documento verificado antes da abertura das propostas/lances, para outros, deveria ser no julgamento da proposta (após a sessão de lances). Realmente, a Lei não define exatamente o momento para aferição da exigência, sendo certo que ela ocorrerá antes da análise da habilitação.
Em nossa opinião, a melhor opção é realizar tal aferição quando do julgamento das propostas (após a etapa de propostas/lances). Isso porque a antecipação da análise da garantia (para momento anterior ao julgamento das propostas) poderia ferir uma das grandes vantagens do processo eletrônico, que é o anonimato da disputa. Em nível de sistema, poderia ser exigido que o licitante, no rito ordinário, realizasse previamente o upload do documento comprovador do atendimento da exigência (garantia de proposta), o qual seria aberto e analisado antes da conclusão do julgamento da proposta.
Para os licitantes que não se sagrarem vencedores do certame, a garantia apresentada deve ser devolvida no prazo de 10 (dez) dias úteis, sendo o prazo iniciado a partir da assinatura do contrato ou da data em que for declarada fracassada a licitação.
Quanto à execução da garantia, importante frisar que ela somente ocorrerá caso o licitante se recuse assinar o contrato ou não apresente os documentos necessários para a contratação, pois a mera inabilitação ou desclassificação do participante na licitação não é motivo para que haja execução da garantia de proposta[8].
Como dito anteriormente, a fase do planejamento é fundamental para analisar e justificar a necessidade desta exigência. Bem aplicada, a garantia de proposta pode ser uma importante ferramenta de signaling para evitar a participação de licitantes aventureiros, que vencem os certames, porém depois não cumprem com o compromisso de fornecimento dos bens, serviços ou execução das obras necessárias ao atendimento do interesse da Administração Pública, problema real nos dias de hoje, que vem prejudicando o atendimento de políticas públicas em diversas áreas sensíveis da atuação estatal.
[1] Advogado da União. Doutorando em Direito do Estado pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Pós-graduado em Direito tributário (IDP). Pós-graduado em Ciências Jurídicas (UNP). Membro da Câmara Nacional de licitações e contratos da Consultoria Geral da União. Membro fundador do Instituto Nacional de Contratações Públicas (INCP). Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (15ª Edição. Ed. JusPodivm).
[2] Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Estagiária do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba (TCE/PB); Estagiou na Superintendência de Obras do Plano de Desenvolvimento do Estado (SUPLAN/PB) e no Ministério Público do Estado da Paraíba (Comarca de Santa Rita); Atuou como monitora da disciplina de Direito Administrativo II.
[3] Emitida por banco ou instituição financeira devidamente autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil.
[4] Esta última modalidade foi incluída no rol por meio da Lei 14.770 de 2023.
[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 698.
[6] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 805.
[7] FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO, Tatiana et al. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 571.
[8] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 805.
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