Concurso público: experimentação administrativa ou lei nacional?

11 de dezembro de 2023

Por Paulo Modesto*

Entre os dias 18 e 19 de agosto de 1984, há 39 anos, a Prefeitura de São Paulo fez o primeiro concurso público prático para ingresso de servidores documentado que se tem notícia no país. Sem qualquer prova teórica escrita, 526 operadores de máquinas pesadas cumpriram no Campo de Marte manobras e exercícios destinados a revelar a perícia e o conhecimento que detinham na operação de 16 equipamentos disponibilizados para testes pela prefeitura.

O concurso foi diretamente acompanhado pelo então prefeito Mario Covas e por seu secretário de Administração, o professor Adilson Abreu Dallari, e objetivava a efetivação de contratados para obras e designados instáveis que exerciam atividades de manejo de máquinas pesadas no serviço municipal sem terem cumprido prévio concurso público. Depois de acompanhados na manobra dos equipamentos por 22 fiscais, os operadores fizeram exame oral para avaliação de conhecimentos básicos sobre a manutenção e a conservação dos equipamentos. A Secretaria de Administração Municipal, segundo noticiou na ocasião o jornal o Estado de S. Paulo, “orientou os examinadores a aceitarem as explicações na linguagem própria dos operadores, que contam com um apelido para cada máquina e mesmo para as suas peças”. [[1]]

Quase 14 anos depois, a Emenda Constitucional nº 19, da Reforma Administrativa, publicada no DOU de 5 de junho de 1998, introduzia no preceito referente aos concursos públicos a exigência expressa de que os exames de ingresso deveriam ser realizados “de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei” (CF, Art. 37, II).  A exigência de concurso público, de provas ou de provas e títulos, permanecia requisito essencial para a investidura em cargo efetivo ou emprego público, porém deveria ajustar-se à natureza e complexidade do cargo ou emprego, a fim de apurar, com razoabilidade, conhecimentos, competências e habilidades interpessoais necessárias ao desempenho das atribuições do cargo ou emprego. Algo óbvio, às vezes observado, muitas vezes negligenciado em concursos públicos apressados e sem conexão com as atividades a desempenhar.

As provas referidas no artigo 37, II, da Constituição, podem ser provas práticas, não apenas provas de conhecimentos gerais ou provas técnicas de múltipla escolha. Pode-se exigir, por exemplo, que candidatos a trabalhar em cozinhas de escolas públicas, cozinhem; candidatos a jardineiros, tratem de plantas; candidatos a juízes elaborem despachos e sentenças; candidatos a promotores e advogados públicos concebam peças processuais e pareceres. Tudo isso é certo, e desde sempre, sendo reforçado pela redação aperfeiçoada do artigo 37, II, da Constituição pela EC 19/1998. Mas ainda é pouco. O concurso público de ingresso, embora instrumento essencial para a proteção da igualdade e publicidade no acesso aos cargos e empregos públicos, permanece sob a crítica de especialistas, e muitas vezes parece privilegiar a memorização de conteúdos gerais em detrimento de outras competências fundamentais para a boa prestação de serviços públicos.

Será possível eliminar dos concursos as provas de múltipla escolha? Pode-se valorizar a experiência concreta anterior em graus variados e não apenas como requisito uniforme a cumprir? Provas práticas podem ser mais bem customizadas nas seleções públicas? Concursos para cargos muito distintos podem ser unificados em um mesmo processo de seleção nacional sem violação do artigo 37, II, da Constituição?

É juridicamente legítima a realização de concursos públicos monofásicos e exclusivamente exigentes de provas escritas ou de múltipla escolha na Administração Pública? Como incorporar adequadamente nos concursos públicos a linguagem e a mundividência de grupos sociais específicos ou minorizados, ampliando efetivamente a diversidade no acesso aos cargos e empregos públicos? Concursos públicos podem ser disciplinados por uma lei nacional ou essa medida violaria, de modo incontornável, a Federação e a autonomia administrativa das unidades políticas subnacionais? Qual o estatuto de garantias mínimas obrigatórias inerente aos concursos públicos decorre das normas constitucionais?

Muitas dessas questões estão na agenda de debates do país de modo fragmentário, sem um tratamento articulado e abrangente. Porém, no atual contexto, acrescento uma pergunta essencial à resposta de todas as anteriores: a disciplina dos concursos públicos deve indicar procedimentos gerais e uniformes, inclusive em uma mesma unidade da Federação, ou decorrer da experimentação de formas distintas de recrutamento, testadas de modo controlado?

Críticas aos processos de concurso público
Concurso público é processo administrativo competitivo destinado ao recrutamento igualitário e eficiente de pessoal para o desempenho de cargo ou emprego na Administração Pública. É concluído com a nomeação dos aprovados: ato vinculado que observa regras objetivas e impessoais a fim de convocar, por ordem de classificação, os aprovados até o número de vagas disponíveis para a posse no cargo ou emprego. Por sua vez, a posse é decisão voluntária do aprovado nomeado e com ela inicia o vínculo do agente com a Administração Pública.

Depois de feito o concurso, efetuada a nomeação, não é simples afastar servidores empossados: a avaliação em efetivo exercício no estágio probatório em cargo público é geralmente leniente e há poucos incentivos para as comissões temporárias realizarem um controle rigoroso do processo de estágio probatório e da efetiva adequação do novo servidor aos processos de trabalho em suas funções.[[2]] Logo, o concurso é o momento central para a boa seleção de agentes que ocuparão cargos e empregos na Administração Pública por longo tempo. Mas há muitas críticas.

Diversos estudos e pesquisas, nos últimos anos, exploraram disfuncionalidades no processo de recrutamento dos servidores permanentes no serviço público, ressaltando problemas (a) no planejamento dos concursos; (b) na realização dos concursos; (c) no acesso aos concursos; (d) na disciplina normativa dos concursos; (e) na segurança, adequação e regularidade dos concursos. [[3]]

Em geral, destaca-se a ausência de uma política integrada de recursos humanos no planejamento dos concursos; a falta de critérios consistentes para a composição de bancas; a repetição de bancas e entidades organizadoras; o foco excessivamente jurídico na definição dos procedimentos do concurso; a simplificação rasteira das provas; a baixa atenção a aspectos gerenciais e a capacidades necessárias ao cargo ou emprego em disputa; a judicialização excessiva das provas e resultados; a ausência de regulação adequada da relação entre o Poder Público e a entidade organizadora do concurso; o abuso nas taxas de inscrição, sem parâmetros relacionados aos cargos em disputa ou aos custos efetivos de organização das provas; a utilização excessiva de cadastros de reserva e a ausência de previsão de estipulação mínima de cargos para imediato provimento, correlacionado ao número de cargos vagos; a ausência de disciplina sobre direitos ressarcitórios dos candidatos, especialmente em face de cancelamentos de provas e reagendamento de concursos; a disciplina adequada sobre a possibilidade de concursos em formato digital; a previsão de prazos mínimos para inscrição em concursos, para interposição de recursos e para análise de provas realizadas; a baixa valorização da experiência de trabalho dos candidatos e a excessiva valorização do treinamento para a resposta a perguntas objetivas e gerais;  a desatenção com os concursos da área meio; ausência de requisitos objetivos para definição sobre a prorrogação ou não da validade dos concursos, atendidos requisitos de planejamento financeiro e gerencial da própria Administração Pública.

Lei nacional ou normas locais?
Esse amplo conjunto de críticas e questões indiscutivelmente aponta para a necessidade de um maior detalhamento normativo e administrativo para os concursos públicos. Iniciativas não faltaram e diversos projetos tramitaram no Congresso sobre a matéria desde 2000 (a exemplo do PLS 92/2000). No entanto, projeto legislativo algum em curso no plano federal abrange todas as questões referidas ou consegue atender, sem invadir a autonomia de estados e municípios, a aspectos essenciais sobre os prazos do processo de concurso, composição das bancas examinadoras, direitos dos candidatos e alguns dos domínios destacados (v.g., taxas de inscrição, integração dos concursos com o planejamento governamental, prazos de recurso e valorização da experiência profissional em cada caso).

Pode a União ditar que Estados e Municípios não realizem concursos que se destinem, exclusivamente, à formação de cadastro de reserva? Fixar prazo mínimo de certo número de dias para a divulgação de edital antes do período final das inscrições? Proibir a repetição de bancas examinadoras em concursos sucessivos para o mesmo cargo? Como em outros casos, processos administrativos possuem uma dimensão organizatória e, conforme o procedimento, afeta-se a atribuição e o funcionamento de órgãos distintos e a própria arquitetura decisória da Administração Pública.

Soluções gerais e uniformes para todos os entes da Federação, e para todos os Poderes, parecem destinadas a vender ilusões: tendem a repetir a jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores sobre a matéria, adotar fórmulas muito gerais, vagas e pouco eficazes de compromisso, ou assumir regramentos facultativos que asseguram ampla margem de discrição para os órgãos afetados por suas normas.

Cada ente federativo deve dispor sobre os seus concursos públicos. À semelhança do que ocorreu com a Lei Federal 9784/99, Lei de Processo Administrativo da União, uma boa lei de normas estruturais e gerais na União será inevitavelmente mimetizada e adaptada nas leis dos entes subnacionais. Na ausência completa de regramento em entes subnacionais, pode-se adotar a solução decidida pelo Superior Tribunal de Justiça quanto à aplicação subsidiária da lei federal de processo (Lei 9.784/1999) aos estados e municípios quando inexistente norma legislativa própria das demais unidades federativas.

Essa operação hermenêutica foi realizada sem o reconhecimento da competência da União para legislar sobre normas gerais de processo ou procedimento administrativo. Determina-se a aplicação da legislação federal exclusivamente em caráter integrativo, ante lacuna da legislação local, com invocação de princípios e direitos fundamentais dos cidadãos de obrigatória vigência nacional, a exemplo da segurança jurídica, proporcionalidade e razoabilidade, e com expressa ressalva da superveniente aprovação de legislação própria pelos estados e municípios. É dizer: adota-se sistemática inversa àquela prevista no artigo 24 da Constituição, dado que esta última admite a competência plena do Estado-membro ante a inércia legislativa da União. Essa orientação integrativa é atualmente objeto da Súmula 633: “A Lei nº 9.784/1999, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria.”[ [4]]

Essa diretriz de interpretação, além de respeitosa da autonomia dos entes da Federação, permite também a adoção de normas subnacionais mais específicas, assentadas na experimentação de soluções locais e afirmativa de um direito administrativo menos uniforme e subserviente pelos entes subnacionais.

No estado da Bahia, por exemplo, a Lei 12.209, de 20 de abril de 2011, Lei de Processo Administrativo Estadual, disciplina em seu Capítulo V, de modo analítico, o “processo seletivo”: “”rocesso seletivo destinado a recrutar pessoal para o desempenho de cargo, emprego e função pública, na forma prevista na Constituição”.

A matéria é tratada desde 2011 em 31 artigos, sendo disciplinado no diploma estadual não apenas o concurso público propriamente dito, porém igualmente os processos administrativos simplificados para contratação temporária de pessoal para atendimento a necessidade eventual de excepcional interesse público. No atinente aos concursos, veda-se a adoção de critérios de recrutamento e avaliação que dificultem o controle e a fiscalização do processo seletivo (§ único do artigo 154); é assegurado ao candidato, ainda que não aprovado, o direito à obtenção de certidão e de informação sobre a correção de suas provas e as respectivas pontuações (artigo 156); limita-se o valor cobrado a título de inscrição ao máximo de 7% da remuneração inicial do cargo, emprego ou função em disputa, ressalvadas as hipóteses de isenção previstas no ato convocatório (artigo 157); é assegurado o direito à pessoa portadora de necessidades especiais de concorrer a vagas reservadas compatíveis (artigo 158); a escolaridade mínima e os demais requisitos e condições para o cargo ou emprego deverão ser comprovados no ato de posse ou na assunção da função, vedada a sua exigência no ato de inscrição, ressalvado o disposto em legislação específica (artigo 168); determina-se que o edital será publicado com antecedência mínima de 30 dias da realização da primeira prova (artigo 171), sendo renovado o prazo, por igual período, caso ocorra alteração de dispositivo do edital, exceto quando a alteração não afetar o conteúdo programático das provas ou critérios restritivos ou ampliativos quanto à participação dos interessados (artigo 172); são detalhadas as exigências do edital (artigo 173); obriga-se a gravação de prova oral, em sessão pública, na hipótese de sua previsão (artigo 174); as provas de aptidão física ficam limitadas a situações previstas em lei e o edital deve contemplar, de forma objetiva, o tipo de prova, as técnicas admitidas e o desempenho mínimo para a classificação (artigo 175) e outros tantos temas são abordados, em grau que seria demasiado específico tratar aqui.

A lei baiana não é completa ou perfeita. Merece se atualizada e ampliada, inclusive para considerar novas realidades surgidas depois de 2011, que merecem atenção. Porém, essas situações podem ser ajustadas em Editais e na lei com maior realismo exatamente porque são locais, apoiadas na realidade da administração estadual, e não concebidas a partir de uniformes e padronizadas normas nacionais. O concurso público é tema que merece ser debatido e mais bem planejado e integrado às políticas de pessoal dos entes subnacionais. Experiências como as da Prefeitura de São Paulo, de 39 anos atrás, podem ser replicadas e aperfeiçoadas. O federalismo administrativo é uma decisão constitucional na República brasileira; realizá-lo é ato de afirmação da Constituição e viabiliza a criação de laboratórios locais de experimentação eficazes. Esperar que normas sobre concursos públicos sejam ditadas pela União para os entes subnacionais é erro que se prolonga há mais de vinte anos e que não se deve insistir.

Este artigo é uma homenagem ao eminente professor Adilson Abreu Dallari, gestor pioneiro e notável municipalista.


[1] Reportagem – “Funcionalismo – Máquinas no campo: é a prova prática”, Jornal o Estado de São Paulo, Edição de 14 de agosto de 1984, página 17, disponível em https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19840814-33573-nac-0017-999-17-not/busca

[2] Sobre o tema, cf. MODESTO, Paulo. Estágio probatório: questões controversas. Texto publicado originalmente no livro Direito do Estado: novos rumos, vol. 2, São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 49-88, porém também disponível na internet em https://www.academia.edu/1035234

[3] Cf., por todos, COELHO, Fernando de Souza Coelho; MENON, Isabela de Oliveira. A quantas anda a gestão de recursos humanos no setor público brasileiro? Um ensaio a partir das (dis)funções do processo de recrutamento e seleção – os concursos públicos. Rev. Serv. Público Brasília 69, edição especial, Repensando o Estado Brasileiro,  p. 151-180, dez 2018. Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/3497/2046; FONTAINHA, F. C. et al. Processos seletivos para a contratação de servidores públicos: Brasil, o país dos concursos? Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro : Direito Rio, 2014. 184p. (Novas ideias em direito). Disponível em: https://repositorio.fgv.br/items/fffcea29-c716-4e65-a01d-d15e5748afbf/full

[4] Renovo nessa passagem considerações feitas em artigo anterior: MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Conjur, Coluna Interesse Público, 8/12/2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao/

Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-07/concurso-publico-experimentacao-administrativa-ou-lei-nacional/

*Paulo Modesto
é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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