Nova Legislação, Velhas Polêmicas: Afinal, o Agente de Contratação, Pregoeiro e Comissão de Contratação devem elaborar o Edital?

13 de novembro de 2023

Jamil Manasfi[1]

Amanda Guiomarino[2]

 

RESUMO
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA) inovou no ordenamento jurídico trazendo a figura do Agente de Contratação, ao lado de mais dois responsáveis pela condução do certame licitatório, quais sejam, o Pregoeiro e a Comissão de Contratação, bem como elencou suas atribuições à frente da fase de seleção do fornecedor (antiga fase externa). Assim, buscando solucionar questionamento encontrado na prática administrativa, os autores do presente artigo mergulharam na temática da responsabilidade da elaboração do edital, artefato da fase preparatória do processo licitatório com o intuito de esclarecer definitivamente de quem é a função de elaboração e assinatura do instrumento convocatório, à luz do princípio da segregação de funções, trazendo suas implicações e consequências jurídicas.

PALAVRAS-CHAVES
Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Agente de Contratação. Pregoeiro. Atribuições. Elaboração do Edital. Princípio da Segregação de Funções. Responsabilização. Consequências. Equipe de Apoio. Boas Práticas. Governança.

1 INTRODUÇÃO

A Lei n.º 14.133/2021 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA) trouxe preponderantemente a figura do Agente de Contratação em destaque, como o responsável por conduzir a licitação (art. 8º), podendo ser substituído em casos excepcionais, quais sejam bens ou serviços especiais, pela Comissão de Contratação, prevista no parágrafo segundo do referido dispositivo legal. No entanto, para as licitações na modalidade pregão (presencial ou eletrônico), positivou a figura do Pregoeiro (art.8º, §5º), anteriormente existente no âmbito da Lei nº 10.520/02 e dos Decretos Federais 3.555/2000 e 10.024/2019.

Muito se discutia, ainda na vigência dos Decretos regulamentadores da Lei nº 10.520/02, quais eram as atribuições do Pregoeiro e a sua responsabilidade frente à confecção do edital (instrumento convocatório).

Com intuito de aclarar a atuação dos agentes de contratação, pregoeiros e comissão de contratação, os autores do presente artigo mergulharam na temática da responsabilidade da elaboração do edital, artefato da fase preparatória do processo licitatório com o intuito de esclarecer definitivamente que não é função do agente de contratação, pregoeiro ou comissão de contratação. Ora, a confecção do edital está prevista na fase preparatória e a atuação dos personagens citados se dá na fase posterior (seleção do fornecedor ou fase externa). Assim, questiona-se, se não é responsabilidade do agente de contratação, pregoeiro e comissão de contratação, de quem é a responsabilidade pela elaboração e assinatura de tal artefato?

Na sequência, passaremos a desmistificar essa prática tão corriqueira na administração pública e urgente de ser solucionada à luz do princípio da segregação das funções.

2 CONFECÇÃO DO EDITAL E SUA LOCALIZAÇÃO NA FASE PREPARATÓRIA

A NLLCA, ao levantar as etapas da fase preparatória do processo licitatório em seu art. 18, menciona a elaboração do edital de licitação (inciso V), porém, não determina qual agente terá a missão da confecção de tal artefato de planejamento. Entretanto, a nova lei conceituou a figura do Agente de Contratação como o responsável pela condução da licitação (art.8º) e para sua designação a autoridade máxima deverá “observar o princípio da segregação de funções, vedada a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação” (art. 7º, § 1º).

O art. 53 da NLLCA, informa que ao final da fase preparatória (antiga fase interna), o processo licitatório seguirá para o órgão de assessoramento jurídico da Administração, que realizará controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação (encerrando a instrução processual sob o aspecto jurídico). Nota-se, que o legislador trata da análise da minuta do edital e de seus anexos, com último artefato produzido na fase preparatória.

No § 3º do art. 53, temos que, encerrada a instrução do processo sob os aspectos técnico e jurídico, a autoridade determinará a divulgação do edital de licitação conforme disposto no art. 54, fato que marca o começo da fase de seleção do fornecedor e o início da atuação do Agente de Contratação, Pregoeiro e Comissão de Contratação.

Diante das informações, fica evidente que não é função do agente de contratação, pregoeiro ou comissão de contratação a confecção do edital, tendo em vista que o documento é produzido na fase preparatória e a atuação dos referidos personagens só tem início na fase de seleção do fornecedor com a publicação do aviso de licitação e a divulgação do inteiro teor do edital e seus anexos.

3. RELAÇÃO DOS AGENTES DA FASE DE SELEÇÃO DO FORNECEDOR COM A IMPUGNAÇÃO AO EDITAL

O art.164, parágrafo único da Lei nº14.133/21, determina que a resposta à impugnação ou ao pedido de esclarecimento será divulgada em sítio eletrônico oficial no prazo de até 3 (três) dias úteis, limitado ao último dia útil anterior à data da abertura do certame. Nota-se que o referido dispositivo não apresenta maiores informações sobre como se dará a operacionalização, deixando para regulamentação infralegal tratar da matéria.

A Instrução Normativa SEGES/ME nº 73/22, foi o primeiro regulamento a tratar da matéria no seu art.16, § 1º:

§ 1º O agente de contratação ou a comissão de contratação, quando o substituir, responderá aos pedidos de esclarecimentos e/ou impugnação no prazo de até três dias úteis contado da data de recebimento do pedido, limitado ao último dia útil anterior à data da abertura do certame, e poderá requisitar subsídios formais aos responsáveis pela elaboração do edital de licitação e dos anexos. (Negritamos)

 Mais tarde, a matéria foi tratada também no art.14, inc. III, alínea “a” do Decreto Federal nº11.246/22, ao disciplinar sobre a atuação do agente de contratação.

Art. 14.  Caberá ao agente de contratação, em especial:
(…)
III – conduzir e coordenar a sessão pública da licitação e promover as seguintes ações:
a) receber, examinar e decidir as impugnações e os pedidos de esclarecimentos ao edital e aos seus anexos e requisitar subsídios formais aos responsáveis pela elaboração desses documentos, caso necessário; (Negritamos)

Nota-se que dos dispositivos colacionados podemos extrair que o agente de contratação, consequentemente o pregoeiro e comissão de contratação são responsáveis pelo recebimento, exame e decisão sobre as impugnações e os pedidos de esclarecimento ao instrumento convocatório e pode requisitar subsídios formais aos responsáveis pela elaboração desses documentos, caso necessário. A IN SEGES nº 73/22 fala ainda de requisitar subsídios formais aos responsáveis pela elaboração do edital de licitação e seus anexos, fato que comprova que os agentes envolvidos na seleção do fornecedor não são responsáveis pela elaboração do instrumento convocatório (fase preparatória).

Em verdade, é possível extrair da IN acima colacionada que ainda que a decisão formal às impugnações e pedidos de esclarecimento sejam de responsabilidade do agente de contratação/pregoeiro/comissão, quem vai fornecer os esclarecimentos técnicos para subsidiar a resposta será a equipe que elaborou o edital e seus anexos.

Porém, salientamos que esses agentes têm por obrigação conhecer o que está disposto no edital, para que possam realizar a condução do certame (fase de seleção do fornecedor) de forma segura. Em outras palavras, para conduzir o jogo, é necessário conhecer as regras, através de leitura minuciosa de seus termos.

4  A SEGREGAÇÃO DE FUNÇÕES E SUAS IMPLICAÇÕES

Isto é, diante da redação genérica e abrangente do art. 3º, IV, da Lei n.º 10.520/2002 e do art. 17 do Decreto n.º 10.024/2019, a dúvida pairava se a elaboração do edital cabia também ao Pregoeiro.

Lei n. 10.520/2002 – Art. 3º (…) IV – a autoridade competente designará, dentre os servidores do órgão ou entidade promotora da licitação, o pregoeiro e respectiva equipe de apoio, cuja atribuição inclui, dentre outras, o recebimento das propostas e lances, a análise de sua aceitabilidade e sua classificação, bem como a habilitação e a adjudicação do objeto do certame ao licitante vencedor.

Decreto n.º 10.024/2019 – Art. 17.  Caberá ao pregoeiro, em especial:
I – conduzir a sessão pública;
II – receber, examinar e decidir as impugnações e os pedidos de esclarecimentos ao edital e aos anexos, além de poder requisitar subsídios formais aos responsáveis pela elaboração desses documentos;
III – verificar a conformidade da proposta em relação aos requisitos estabelecidos no edital;
IV – coordenar a sessão pública e o envio de lances;
V – verificar e julgar as condições de habilitação;
VI – sanear erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, dos documentos de habilitação e sua validade jurídica;
VII – receber, examinar e decidir os recursos e encaminhá-los à autoridade competente quando mantiver sua decisão;
VIII – indicar o vencedor do certame;
IX – adjudicar o objeto, quando não houver recurso;
X – conduzir os trabalhos da equipe de apoio; e
XI – encaminhar o processo devidamente instruído à autoridade competente e propor a sua homologação.
Parágrafo único.  O pregoeiro poderá solicitar manifestação técnica da assessoria jurídica ou de outros setores do órgão ou da entidade, a fim de subsidiar sua decisão.

De fato, não se desconhece que a escolha das locuções “dentre outras” e “em especial” trazem ao rol ali elencado o viés exemplificativo, ou seja, é possível ao Pregoeiro, na condução do certame licitatório proceder a diligências e sugerir alterações que melhor solucionem os problemas que podem surgir durante a fase preparatória (antiga fase interna). Em outras palavras, o legislador não pôde prever todas as hipóteses que podem se apresentar na prática diária, já que, sabemos, a rotina da licitação é imprevisível e os problemas que podem surgir são inúmeros a depender do objeto, das exigências do edital, de intercorrências do sistema eletrônico, enfim, o terreno é fértil para os contratempos que podem nascer durante a fase preparatória.

O Tribunal de Contas da União – TCU, desde antes da vigência da NLLCA, já se manifestava no sentido de que não era atribuição do Pregoeiro a elaboração do edital. Confiram-se os seguintes acórdãos:

TCU – Acórdão 687/2007 – Cabe destacar que o caput do referido art. 51 traz as atribuições da comissão permanente de licitação – a qual expomos alhures – dentre as quais não se encontra a definição do objeto. Ademais, o seu §3º, transcrito, estipula a responsabilidade pelos atos praticados pela comissão. Ora, se o ato de definição do objeto da licitação não foi praticado pela comissão, essa não pode ser responsabilizada sob tal fundamento, não ocorrendo, no caso, a subsunção do fato à norma.

 TCU – Acórdão 686/2011 – Plenário – (…) Diversas condutas adotadas pelos responsáveis pelas licitações examinadas merecem reprovação do relator, em especial, a condição de um dos membros da Comissão de Licitação, que, ao mesmo tempo, seria Chefe do Setor de Compras do órgão. Tal situação seria inadequada, pois o referido membro, ao exercer dupla função de elaborar os editais licitatórios e de participar do julgamento das propostas, agiria em desconformidade com o princípio da segregação de funções.

TCU – Acórdão 1729/2015 – Primeira Câmara – O pregoeiro não pode ser responsabilizado por irregularidade em edital de licitação, já que sua elaboração não se insere no rol de competências que lhe foram legalmente atribuídas. No entanto, imputa-se responsabilidade a pregoeiro, quando contribui com a prática de atos omissivos e comissivos, na condução de certame cujo edital contenha cláusulas sabidamente em desacordo com as leis de licitações públicas, porque compete ao pregoeiro, na condição de servidor público, caso tenha ciência de manifesta ilegalidade, recusar-se ao cumprimento do edital e representar à autoridade superior (art. 116, incisos IV, VI e XII e parágrafo único, da Lei 8.112/90).

TCU – Acórdão 2146/2022 e 2448/2019 – Plenário – A atribuição, ao pregoeiro, da responsabilidade pela elaboração do edital cumulativamente às tarefas de sua estrita competência afronta o princípio da segregação de funções e não encontra respaldo no art. 3º, inciso IV, da Lei 10.520/2002 nem no art. 17 do Decreto 10.024/2019.

 Da leitura dos acórdãos acima transcritos, percebe-se que reiteradamente o TCU reconheceu violação ao princípio da segregação de funções, em razão de o mesmo agente (pregoeiro ou comissão de licitação) ter elaborado e feito publicar o edital do e participado do julgamento do certame. O Plenário da Corte de Contas da União tem reafirmou que essa irregularidade encontra vedação em sua jurisprudência majoritária.

Especificamente no que concerne ao Acórdão 2146/2022, de relatoria do Ministro  Aroldo Cedraz, que confirmou o entendimento anterior, reafirmando que  a elaboração do edital do pregão não se inclui entre as atribuições do pregoeiro previstas na lei 10.520/02, até mesmo, do recente decreto 10.024/19, importa transcrever trecho da fundamentação do referido Acórdão, que trouxe esclarecedora lição de Ronny Charles Lopes de Torres, apontando que Lei do Pregão não trouxe a competência de elaboração do edital, e que essa situação traz vantagens e desvantagens:

Há uma vantagem nesta delegação, pelo potencial aproveitamento da expertise do pregoeiro para o aperfeiçoamento da minuta; mas há também um risco, pela ausência de segregação de funções entre o gestor da licitação (responsável pela condução do certame) e o autor das regras que balizarão o procedimento competitivo.

Ainda na fundamentação dessa decisão do TCU[3], um dos coautores deste artigo defendeu que a função de confeccionar o edital não deve ser atribuída ao Pregoeiro, por ausência de determinação legal. Jamil Manasfi lembrou decisão proferida no Acórdão nº 686/2011 do TCU, que recomendou a abstenção de designar para compor a comissão de licitação o servidor ocupante de cargo com atuação na fase interna do procedimento licitatório, em atenção ao princípio da segregação das funções. A esse respeito, transcreve-se trecho:

Em suma, o princípio da segregação das funções estabelece que o Agente Público que edita determinado ato, com vistas a sua imparcialidade no julgamento, não deve ser também responsável pela sua fiscalização. Hipoteticamente, seria como o caso de um Juiz que cria uma lei e julga conforme sua criação.

De igual modo, a doutrina tradicionalmente imputou ao Pregoeiro, ainda de acordo com a Lei n.º 10.520/00 e Decretos do Pregão, a função de conduzir a fase externa da licitação (fase de seleção do fornecedor), portanto, fase posterior à elaboração do edital. Confira-se trecho de Joel de Menezes Niebuhr4:

Vê-se que o pregoeiro agrega praticamente as mesmas funções da comissão de licitação, tal qual disposta na Lei n. 8.666/1993, no que tange às demais modalidades. A função de ambos é pôr em prática o edital, conduzindo a fase externa da licitação, recebendo documentos e propostas, procedendo ao julgamento, à classificação das propostas, à habilitação, recebendo os recursos e adjudicando o objeto licitado ao vencedor.

Sob a égide da NLLCA nº 14.133/2021, observa-se que a própria legislação trouxe os conceitos e atribuições de cada agente envolvido no processo de contratação pública, no seu art. 6º, LX.

Assim, conceituou o agente de contratação (e por consequência, o pregoeiro) como pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.

Prossegue a legislação no mister de atribuição de funções aos agentes, no seu art. 8º:

Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.
(…)
§ 5º Em licitação na modalidade pregão, o agente responsável pela condução do certame será designado pregoeiro.

O Decreto Federal nº 11.246 de 27 de outubro de 2022, que dispõe sobre as regras para a atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, bem com funcionamento da comissão de contratação e a atuação dos gestores e fiscais de contratos, estabelece em seu art.14, quais são as atribuições do agente de contratação/pregoeiro, vejamos:

Art. 14.  Caberá ao agente de contratação, em especial:
I – tomar decisões em prol da boa condução da licitação, dar impulso ao procedimento, inclusive por meio de demandas às áreas das unidades de contratações, descentralizadas ou não, para fins de saneamento da fase preparatória, caso necessário;
II – acompanhar os trâmites da licitação e promover diligências, se for o caso, para que o calendário de contratação de que trata o inciso III do caput do art. 11 do Decreto nº 10.947, de 25 de janeiro de 2022, seja cumprido, observado, ainda, o grau de prioridade da contratação; e
III – conduzir e coordenar a sessão pública da licitação e promover as seguintes ações:
a) receber, examinar e decidir as impugnações e os pedidos de esclarecimentos ao edital e aos seus anexos e requisitar subsídios formais aos responsáveis pela elaboração desses documentos, caso necessário;
b) verificar a conformidade da proposta mais bem classificada com os requisitos estabelecidos no edital;
c) verificar e julgar as condições de habilitação;
d) sanear erros ou falhas que não alterem a substância das propostas; e
e) encaminhar à comissão de contratação, quando for o caso:
1. os documentos de habilitação, caso se verifique a possibilidade de saneamento de erros ou de falhas que não alterem a substância dos documentos e a sua validade jurídica, conforme o disposto no § 1º do art. 64 da Lei nº 14.133, de 2021; e
2. os documentos relativos aos procedimentos auxiliares previstos no art. 78 da Lei nº 14.133, de 2021;
f) negociar, quando for o caso, condições mais vantajosas com o primeiro colocado;
g) indicar o vencedor do certame;
h) conduzir os trabalhos da equipe de apoio; e
i) encaminhar o processo instruído, após encerradas as fases de julgamento e de habilitação e exauridos os recursos administrativos, à autoridade superior para adjudicação e para homologação

A intenção do legislador ao descrever as atribuições que caberiam ao responsável pela fase de seleção do fornecedor do processo licitatório, notadamente a condução do certame propriamente dito, certamente não pretendeu englobar todas as atribuições, como bem se observa da parte final “executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação”, contudo pretendeu especificar minimamente o caminho a ser seguido a partir da publicação do extrato do edital (aviso de licitação), do inteiro teor do edital de licitação e seus anexos, bem como a condução da sessão pública de licitação.

Tecendo comentários acerca do citado art. 8º da NLLCA, o festejado autor Marçal Justen Filho[4] assim esclarece que “o dispositivo estabelece previsões descritivas, sem pretensão à exaustividade. Refere-se à condução do certame licitatório, especialmente a partir da publicação do edital e até o julgamento das propostas e manifestações sobre eventuais recursos”.

Isso porque a elaboração do edital é fase imediatamente anterior à sua publicização, cabendo ao gestor, que é a autoridade competente, designar equipe ou servidor responsável para exercer essa função. Importa transcrever elucidativa lição de Joel de Menezes Niebuhr[5]:

A autoridade competente exerce funções mais de controle nas fases interna e externa da licitação. Na fase interna ou preparatória, dá a última palavra sobre o edital e na fase externa, dá a última palavra sobre a licitação. No entanto, quem atua diretamente na construção do edital é a equipe administrativa do órgão ou entidade, e quem atua diretamente na condução da etapa externa da licitação é o agente de contratação, pregoeiro, comissão de contratação.

Prossegue o citado autor[6]:

As funções do agente de contratação, do pregoeiro e de comissão de contratação são, em essência, as mesmas. A atribuição deles é pôr em prática o edital, conduzindo a fase externa da licitação, recebendo documentos e propostas, procedendo ao julgamento, à classificação das propostas, à habilitação, recebendo os recursos e, enfim, tomando todas as providências necessárias até levar o processo de licitação à autoridade competente para que ela decida sobre sua homologação ou não.

Repise-se, portanto, que a elaboração do edital fica a cargo da equipe administrativa do órgão, equipe de planejamento da contratação ou servidor designado, que atua em fase anterior ao Agente de Contratação/Pregoeiro/Comissão, responsável(eis) pela condução do certame licitatório. Em outras palavras, o certame inicia-se na fase de seleção do fornecedor (antiga fase externa da licitação) e será conduzido pelo Pregoeiro, Agente de Contratação ou Comissão de Contratação.

E a razão de ser dessa separação – ou segregação de funções, como trouxe a novel legislação em seus princípios arrolados no art. 5º da NLLCA –, é a apuração de responsabilidades.

Para a doutrina específica[7], segregação de funções: “consiste na separação de atribuições ou responsabilidades das funções consideradas incompatíveis entre diferentes pessoas”.

E para desvendarmos quais funções são consideradas incompatíveis, complementa o autor “quando é possível que um indivíduo cometa um erro ou fraude e esteja em posição que lhe permita esconder o erro ou a fraude no curso normal de suas atribuições[8].”

Com efeito, o professor Ronny Charles, em sua obra Lei de Licitações Públicas Comentadas[9], também é categórico:

O § 1º do artigo 7º exige que a autoridade competente do órgão ou entidade observe o princípio da segregação de funções, vedando a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e da ocorrência de fraudes na respectiva contratação.

A segregação de funções visa determinar quais agentes públicos detém atribuição para a prática dos atos relacionados às fases que compõem o processo de contratação pública, desde a confecção dos artefatos de planejamento, elaboração do edital (instrumento convocatório), passando pela designação dos agentes, condução do certame licitatório, assinatura de contrato, emissão de empenhos, gestão e fiscalização dos contratos etc.

Ao se prever, portanto, a segregação das atividades, busca-se a mitigação dos riscos ou irregularidades que possam macular o procedimento, haja vista que a centralização de atividades correlatas e subsequentes a um mesmo agente pode facilitar a ocorrência de fraudes ou mesmo erros, que poderiam ser evitados caso fossem estabelecidos procedimentos, padronizações e normativas estabelecendo a separação das atividades entre vários agentes públicos e equipes.

A consequência lógica dessa atribuição para a prática dos atos é a apuração de responsabilidades, caso o agente público aja com dolo ou erro grosseiro, subordinando-se ao disposto no art. 28, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, introduzida pela Lei n.º 13.655/2018 – Lei da Segurança para Inovação Pública.

Ora, só é possível imputar responsabilidades a quem é o responsável pelo ato. Se determinado agente não atuou na elaboração do ato e nem possui competência de revisar a prática de tal ato, mas com ele posteriormente apenas teve contato, não cabe a sua responsabilização.

É o que acontece na relação Edital e Pregoeiro, Agente ou Comissão de Contratação. Tais agentes públicos não elaboram, não analisam juridicamente e nem revisam o edital, essas são atribuições de outros personagens, v.g. equipe administrativa, assessor jurídico, controle interno.

Isto é, o edital já é entregue pronto para disponibilização do seu inteiro teor, a publicação do aviso de licitação e condução do certame pelo Pregoeiro. Por essa razão, qualquer verificação de atuação com dolo ou erro grosseiro nessas etapas anteriores não deve recair sob o Pregoeiro.

Quanto a este ponto, segue excerto de Niebuhr[10]:

Sob essa premissa, ao tratar da responsabilidade do agente de contratação, do pregoeiro e da comissão de contratação, é preciso salientar insistentemente que eles não são os responsáveis pelo edital. Quem responde pelo edital é a autoridade competente e os agentes administrativos que o elaboraram e aprovaram. O pregoeiro recebe o edital pronto e tem a função de dar-lhe cumprimento, realizando o procedimento nele previsto.

Tem-se, desta maneira, que a elaboração do edital pelo Agente de Contratação/Pregoeiro/Comissão é rechaçada e não recomendada pelos órgãos de controle e pela doutrina específica. Não se desconhece a realidade existente nos municípios brasileiros e organizações públicas com menor quantitativo de pessoal, no entanto, entende-se que essas barreiras não podem servir de escudo para a adequação à nova legislação e impeça a mudança necessária para as boas práticas administrativas.

Com efeito, a NLLCA trouxe a obrigatoriedade de contínua capacitação de pessoal para aplicação da lei, como forma de melhorar a prestação do serviço público, realizar melhores contratações e melhor utilizar o Erário. Destarte, vislumbra-se que se a lei trouxe um problema (a segregação de funções), ela mesma trouxe a solução (capacitação contínua).

5 CONCLUSÃO

A falta de agentes públicos capacitados não deve ser justificativa ad aeternum dos gestores públicos para a irregularidade e insistência de vícios antigos, com a invocação da velha síndrome de Gabriela, de que “sempre foi feito assim”, visto que tais argumentos não devem ser motivo para a não adequação da estrutura administrativa para recepcionar a NLLCA.

Não se vive uma utopia de acreditar que uma vez se tornando obrigatória a NLLCA, todos os órgãos de todos os municípios e estados do País, passarão a observar integralmente os ditames da Lei. Mas, colocar em prática os princípios e fundamentos da Lei n.º 14.133/2021, é matéria que deve ser priorizada para que tenhamos um dia a boa governança das contratações públicas.

Recomendamos que os agentes públicos designados para exercer funções na fase preparatória (antiga fase interna) se abstenham de participar da fase de seleção do fornecedor (fase externa), sob pena de ferir o princípio da segregação de funções, exceto prestando auxílio e esclarecendo dúvidas.

Caso, diante da falta de pessoal capacitado e apto ao mister, o agente público designado como pregoeiro, agente de contratação ou membro da comissão de contratação seja convocado para atuar na fase preparatória, ele deixará automaticamente de exercer a função e passará a atuar como agente público em seu cargo de origem. Assim, até poderá atuar nessa fase anterior, porém, não poderá participar da condução do processo de seleção do fornecedor, em observância ao princípio da segregação de funções.

O advento da nova legislação trouxe a oportunidade perfeita para a correção de práticas que podem violar a boa governança pública, de modo que cabe aos gestores a escorreita aplicação dos novos ditames legais, com vistas a melhorar a prestação desse serviço público que move a administração e é a base para construirmos uma Administração Pública célere, eficaz e com melhor aproveitamento dos recursos públicos.


[1] Bacharel em Direito e Administração Pública. MBA em Licitações e Contratos, MBA em Gestão Pública, Especialista em Metodologia do Ensino Superior, Professor e Orientador de TCC dos MBAs em Licitações e Contratos da Faculdade Polis Civitas-PR, Grancursos, Faculdade Baiana de Direito, Instituto Navigare e do Centro Universitário São Lucas – RO, Professor do Grupo Negócios Públicos – NP, servidor público de carreira da Prefeitura Municipal de Porto Velho – Secretaria Municipal de Administração – SEMAD, Pregoeiro e Coordenador de Licitações do CRA-RO, palestrante e instrutor na área de Licitações e contratos, planejamento das contratações e formação de pregoeiros, e-mail: adm_jamil@hotmail.com Instagram: @jamilmanasfi. LinkedIn: Jamil Manasfi

[2] Servidora pública. Analista Jurídico do Ministério Público do Estado do Pará desde 2013. Atuou na assessoria jurídica dos contratos administrativos. Atualmente é Pregoeira/Agente de Contratação. Graduada em Direito e Pós-Graduada em Direito Administrativo e Gestão Pública. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Pará. Integrante do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Direito Administrativo Contemporâneo e do Centro de Estudos Empírico-Jurídicos. E-mail: amandagguiomarino@gmail.com. Instagram: Amanda Guiomarino. LinkedIn: Amanda Guiomarino.

[3]Acórdão 2146/2022 – Plenário – TCU – Rel. Min. Aroldo Cedraz.

[4]JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 214.

[5]NIEBURH, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5ª ed. revista e ampliada. Editora Fórum.2022. Versão eletrônica. p. 559.

[6]Ibidem. p. 564.

[7]SOUZA, Kleberson Roberto deSANTOS, Franklin Brasil. Como Combater O Desperdício No Setor Público. 1.ED.. Belo Horizonte: Fórum, 2019. Versão eletrônica. p. 159/160.

[8]     Ibidem.

[9] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. São Paulo: JusPODIVM, 2023. p. 109.

[10]NIEBURH, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5ª ed. revista e ampliada. Editora Fórum.2022. Versão eletrônica. p. 566.

 

REFERÊNCIAS


 NIEBURH, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 5ª ed. revista e ampliada. Editora Fórum.2022. Versão eletrônica.

SOUZA, Kleberson Roberto de SANTOS, Franklin Brasil. Como Combater O Desperdício No Setor Público. 1.ED.. Belo Horizonte: Fórum, 2019. Versão eletrônica.

TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. São Paulo: JusPODIVM, 2023.

JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

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